Como se sabe,
uma das características do Estado moderno é a presença
de um corpo jurídico, racionalmente definido, como meio de
legitimar a sua ação perante o mundo social. Essa sua
marca segue a tentativa de criar um ambiente social coerente com determinado
projeto de sociedade. Sendo inicialmente marcado pelo elemento coercitivo,
esse Estado, já a partir do final do século XIX e início
do XX, começa a avançar em direção ao
consenso. De qualquer forma, seja como elemento de coerção,
seja de consenso, o aparelho estatal moderno teve como motivação
histórica a educação do seu cidadão, seguindo
determinados interesses socioeconômicos. Conformar a massa de
seus cidadãos a um horizonte histórico-social passou
a ser sua fundamental tarefa.
Desse modo, o Estado atuou como uma força jurídica,
e também política, para coibir as manifestações
sociais que pudessem romper com a unidade desejada. Ainda que historicamente
isso tenha provocado certo grau de harmonia entre os indivíduos,
tornados cidadãos, não ocorreu, no entanto, sem profundas
contradições. Afinal, a perspectiva de eliminar as diferenças
existentes no mundo social teve importantes desdobramentos para a
própria organização da sociedade. A perseguição
e a violência a diversos indivíduos, grupos e classes
sociais que, em algum momento de suas existências, provocaram
a ordem estabelecida, acabaram sendo a postura do Estado. Assim, a
chamada intolerância esteve presente nessa instituição
perante massas inteiras. E o direito esteve a seu serviço.
E esse processo deu-se a partir das suas tradicionais e atuantes marcas
de classe e religiosa que, agora, devem ser acompanhadas das definições
recentes, como gênero e raça, entre outros.
A crise dessa forma do Estado se relacionar com seus cidadãos
veio, no início do século XX, com a emergência
dos regimes nazi-fascistas. Esse foi o momento em que o Estado, enquanto
força política homogeneizadora, assumiu a sua forma
mais agressiva e desumana frente aos sujeitos constituídos
historicamente fora do Ocidente hegemônico. No caso alemão,
esse aparelho incorporou concepções racistas, defensoras
de uma suposta pureza humana, o que acabou alimentando a tendência
uniformizadora das ações do Estado moderno.
O direito, nesse momento, também acabou trabalhando a serviço
de tal processo. Sua contribuição à punição
e à criminalização dos "inimigos" da
ordem e da sociedade fora decisiva. A rejeição à
diversidade social, cultural e política foi a marca desse direito.
Os tribunais são instituições difíceis
de serem superadas. Por sua característica de dar racionalidade
e legalidade ao Estado, resistem aos diversos regimes políticos.
Com a crise desse direito voltado à homogeneização,
surge a necessidade, após o fim da Segunda Guerra Mundial,
de se criar um novo ordenamento jurídico que pudesse interferir
na organização dos Estados. Essa alteração
fez a própria instituição estatal ganhar uma
nova configuração.
Com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de
1948, os Estados que a adotaram passaram formalmente a ter a obrigação
de se relacionar de outro modo com a sociedade. Não mais no
sentido de acabar com a multiplicidade, mas, ao contrário,
admiti-la como legítima. Em seu Artigo II, afirma-se: "Toda
pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos
nesta Declaração, sem distinção de qualquer
espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião,
opinião política ou de outra natureza, origem nacional
ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição."
Aqui, há uma tentativa de fazer o Estado expandir a sua proteção
sobre seus cidadãos. O que significa fazer da sua organização
uma instância avessa a qualquer tipo de ação agressiva
contra o cidadão – pelo menos, a partir da referência
acima destacada.
O objetivo desses direitos universais é fazer o Estado não
apenas proteger a diversidade que compõe o mundo social, mas
também não violentar, a partir de suas próprias
ações, seus cidadãos. Nesse momento, a universalidade
jurídica passa a traduzir, por meio de leis, uma humanidade
rica em sua diversidade, isto é, não uniformizada.
Fruto da ação política dos inúmeros setores
da sociedade civil, os organismos estatais foram levados a incorporar
e construir um corpo jurídico voltado à defesa da multiplicidade
étnica, religiosa, racial etc., reconhecida pela humanidade
a partir do grande holocausto.
Entretanto, esses processos não são evolutivos, isto
é, não há uma superação natural
e mecânica entre uma perspectiva histórica restrita e
outra expansiva. Há, sim, o convívio entre ambas, em
que uma se sobrepõe à outra de acordo com o contexto
histórico. Em momentos de relativa estabilidade socioeconômica,
o Estado tende ampliar a sua tolerância política perante
o mundo social; já em situações opostas, tende
a se recolher enquanto instituição reconhecedora de
alteridade. Em épocas de crise social ou econômica, os
aparelhos de Estados recorrem ao poder da força de forma a
se sobrepor aos aspectos de consenso.
Ao que parece, os dias atuais estão sinalizando o predomínio
desse último aspecto. Não é difícil constatar
empiricamente essa situação, ou seja, a crescente agressão
aos inúmeros setores tradicionalmente marginalizados na sociedade
brasileira, por exemplo. Agressão que parte tanto da sociedade
civil quanto do Estado.
No entanto, um elemento importante chama a atenção:
o fato desse processo estar assentado em um contexto em que os ganhos,
em termos jurídicos, são significativos. Principalmente
em relação aos grupos subalternos, as conquistas no
campo das leis são importantes nas últimas décadas
na sociedade brasileira. Como explicar esse fato? Como compreender
essa situação, já que mesmo diante de um corpo
jurídico que possui uma perspectiva que busca entender a realidade
a partir das particularidades, ainda assim, não consegue impedir
diversas formas de violência contra aqueles a quem serve? Violência
cometida tanto pelo Estado como pela sociedade.
Atualmente, a sociedade brasileira tem à sua disposição
inúmeros dispositivos legais para que haja a garantia do respeito
à integridade de diversos setores sociais, historicamente perseguidos
por suas crenças religiosas, por suas manifestações
culturais, por sua cor de pele, por sua idade, por seu gênero
e por sua condição socioeconômica. E essas conquistas,
frutos da reivindicação dos afetados, em grande medida
foram incorporadas pelo próprio Estado. Portanto, formalmente,
temos um corpo estatal que atende aos anseios históricos, surgidos
pós Segunda Guerra Mundial, justamente preocupados em coibir
a barbárie ocorrida contra os "inimigos da pureza e da
"civilização". No entanto, o cotidiano demonstra
um profundo descolamento entre essa dimensão formal e aquilo
que ocorre com os indivíduos concretamente.
Nesse sentido, mesmo quando a universalidade das leis está
em diálogo com as particularidades constituídas no mundo
social, existem obstáculos concretos que impedem a sua aplicação
efetiva. Tais impedimentos são de inúmeras características:
econômica, cultural, social, educacional etc. Aqui, entretanto,
destacaremos o político.
É certo que as leis assumem um papel pedagógico diante
dos cidadãos, mesmo que tenha seu elemento coercitivo presente.
Todavia, a sua efetivação não se dá por
meio de força mecânica, como se uma vez instituídas
nada mais se põe como necessário a fazer. Para elas
se efetivarem, é preciso a organização de outros
espaços que reforcem o processo educativo. E um deles é,
sem dúvida, o espaço político.
É certo que, nas últimas décadas, inúmeras
conquistas foram efetivadas acerca da garantia de direitos para um
número considerável de grupos sociais, historicamente
subalternizados. Na sociedade brasileira, índios, negros, mulheres,
homossexuais, entre outros, foram contemplados por uma série
de avanços jurídicos. O que significa a aplicação
de uma leitura sobre as leis, na qual a sua universalidade está
em pleno diálogo com as múltiplas manifestações
do mundo social. De qualquer forma, ainda se faz necessário
enfrentar alguns desafios para que, concretamente, tais avanços
sejam colocados em prática. Em muitos casos houve – e
ainda há – uma sobreposição da luta por
meio jurídico, em relação ao político.
E, aos poucos, essa forma de encaminhar as ações, cada
vez mais demonstra que o esvaziamento do político, em benefício
do jurídico, pode ser um equívoco. Afinal, a concentração,
das forças sociais que visam o avanço democrático,
no campo do direito, pode trazer consequências importantes como,
por exemplo, o esvaziamento da luta política.
Retirar-se dos espaços das marchas e das mobilizações
de rua, para se limitar ao escrito da lei, enfraquece decisivamente
o poder dos grupos sociais subalternos. A organização
política, por parte dos setores historicamente marginalizados,
aliás, é uma aliada indispensável para o avanço
nas conquistas no campo das leis. Portanto, a eficácia da universalidade
das leis, no sentido de atender as particularidades existentes no
mundo social, somente avança quando está acompanhada
da organização política. O poder necessário
para que tais grupos possam ter seus direitos respeitados será
alcançado a partir do avanço político conquistado.
Assiste-se diariamente a diversos tipos de ataques à dignidade
humana. Quanto a isso não é possível ir contra.
E, na maioria das vezes, essa situação se dá
justamente em desrespeito às leis. Crimes contra mulheres,
crianças e adolescentes, negros, moradores das periferias e
índios. Setores historicamente subalternizados e que, por esse
motivo, necessitam muito mais do que leis, mas fundamentalmente de
organização política. Afinal, sem disputar o
poder nesse campo, fica praticamente impossível se retirar
da condição de subalterno.
Neste momento, o que está em questão é a tentativa
de se construir uma outra hegemonia, isto é, uma nova e massificada
concepção de mundo. A edificação de uma
nova leitura sobre a vida e sobre o outro, com características
que levem em conta a dialética entre o universal e o particular,
o gênero humano e suas formas específicas de manifestação.
É certo que o direito exerce um papel importante para a elaboração
desse processo, entretanto, não pode ser isoladamente reconhecido.
É preciso interligá-lo às demais esferas da vida
social, ou seja, ao cultural, ao econômico, ao filosófico
etc. Aqui tentou-se ressaltar a importância do seu diálogo
com o político, como uma forma de avançar no processo
de conquistas e garantias para os subalternizados.
Para finalizar, deve-se salientar que essa construção
visa justamente à superação das noções
de "intolerância" e "tolerância" –
afinal, essas dimensões são expressões de um
contexto histórico específico, marcado por inúmeros
estranhamentos –, em direção à concretização
da plena alteridade.
Claudio
Reis é doutor em ciências sociais pela Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp) e professor de teoria política
da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).