Ademar Arthur Chioro dos Reis
> Sobre a saúde e a doença
INTRODUÇÃO
Para definir a saúde e doença há
muitas definições distintas. Mesmo para quem lida com
o tema como profissional ou estudioso da área de saúde,
não é fácil observar posições consensuais.
Dos modelos biomédicos, que reduzem a doença a alterações
bioquímicas em nível celular, às mais elaboradas,
como a proposta em 1949 pela Organização Mundial da
Saúde, que define saúde como "o estado de completo
bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência
de doença", percebe-se uma insuficiência conceitual
e enorme dificuldade em se compreender a complexidade representada
pelo binômio saúde-doença, ainda mais quando se
considera o atual estágio de desenvolvimento científico
e tecnológico, a transição demográfica
e a mudança no perfil epidemiológico em praticamente
todos os países e o impacto das relações intersetoriais
sobre as condições de existência dos seres humanos,
do ambiente e das próprias comunidades.
Com a mesma dificuldade, em diferentes momentos da história
da humanidade, várias teorias foram formuladas para explicar
a determinação do processo saúde-doença:
mítica, natural, religiosa, miasmática, da unicausalidade,
da multicausalidade e da determinação social do processo
saúde-doença.
Este trabalho procura discutir distintos modelos existentes para definir
o processo saúde-doença, as teorias formuladas para
explicar a sua determinação e desenvolver uma análise
sobre o tema a partir da obra de Allan Kardec, fundadora de uma certa
visão de mundo denominada espiritismo, capaz de ampliar os
paradigmas do processo saúde-doença e de seus determinantes.
Os modelos teóricos utilizados para explicar o processo saúde-doença
e seus determinantes resultam em práticas de intervenção
e de controle que a sociedade adota frente ao processo mórbido.
Portanto, um "modelo espírita" para conceituar e
explicar a determinação da doença resulta, consequentemente,
em posturas e práticas de intervenção alinhadas
a essa corrente de pensamento. É desta maneira que a mediunidade,
a obsessão, a reencarnação, a lei de causa e
efeito, terapias energéticas oriundas do magnetismo e de filosofias
esotéricas, expiações coletivas, entre outros
temas, têm sido utilizados de maneira absolutamente acrítica
ou deturpada para explicar afoita e inadequadamente a gênese
das enfermidades, dos sofrimentos físicos, mentais e morais
ou propor práticas de intervenção, muitas vezes
se contrapondo ou em substituição às terapêuticas
instituídas de base científica.
Uma concepção de saúde fundamentada na filosofia
espírita parte, antes de tudo, do conceito de fraternidade
e justiça social, envidando esforços para promover condições
dignas de vida e acesso aos serviços de atenção
à saúde (prevenção, promoção,
assistência e reabilitação) a todos os cidadãos.
Entendo a saúde como uma responsabilidade do Estado, da sociedade
e de cada um de nós, a quem cabe empreender mecanismos solidários
de cuidado, individuais e coletivos, inclusive no tocante à
proteção da natureza, destinados à promoção
da saúde e ao alívio da dor e do sofrimento.
Sobretudo, o espiritismo se diferencia de outras correntes humanistas
comprometidas com a vida, na medida em que agrega à nossa estrutura
físico-mental a dimensão energética e espiritual,
uma visão mais ampla da vida, capaz de trazer uma significativa
contribuição para o progresso da humanidade.
Estas são algumas das abordagens relativas ao tema da saúde
e da doença — sem nenhuma pretensão de esgotá-las
ou tratá-las em toda a potencialidade — que pretendemos
aqui analisar como nossa contribuição ao 10° Simpósio
Brasileiro do Pensamento Espírita.
CONCEITO DE SAÚDE E DE DOENÇA
Usualmente, há certa tendência em definir saúde
e doença por contraposição. Saúde é
a ausência de doença. Doença é quando não
se tem saúde. Naturalmente se trata de uma visão muito
simplista, que não dá conta da complexidade do tema.
Existem modelos, como o biomédico, hegemônico no meio
científico, que reduzem a doença às alterações
bioquímicas que ocorrem em nível celular. Outras correntes
tratam a doença como alteração ou desvio do estado
de equilíbrio de um indivíduo com o meio.
As enfermidades podem também ser definidas como a incapacidade
dos mecanismos de adaptação de um organismo para neutralizar
os estímulos ou solicitações a que está
sujeito, resultando em transtorno da função ou estrutura
de qualquer parte, órgão ou sistema do organismo. Ou
ainda como reação a uma lesão, moléstia
ou enfermidade.
Alguns autores tratam a doença como uma entidade específica,
que é a soma total das numerosas expressões de um ou
mais processos patológicos. A causa de uma entidade mórbida
e representada pela causa do processo patológico básico
associado a importantes fatores causais secundários.
A palavra tem origem no latim dolentia e pode ser compreendida como
o processo mórbido definido, com um conjunto característico
de sintomas, que pode afetar o corpo inteiro ou qualquer de suas partes;
sua etiologia, patologia e prognóstico podem ou não
ser conhecidos.
Na Enciclopédia Britânica, a palavra disease é
considerada "uma alteração do organismo da
condição fisiológica normal, suficiente para
produzir sinais e sintomas evidentes". Duas complicações
se impõem. A primeira, definir o que é normal. Nem sempre,
em saúde, o conceito de normal é uma medida biológica.
Muitas vezes descamba para medidas culturais e sociais. A segunda,
como encarar os processos mórbidos que acometem as pessoas,
muitas vezes com alterações histológicas e bioquímicas,
fisiopatológicas, ou mesmo psicoafetivas e que ainda não
ultrapassaram o horizonte clínico, portanto sem produzir durante
meses, anos ou décadas sinais e sintomas?
Cada cultura produz, portanto, em contextos históricos específicos,
determinados significados que resultam em distintas práticas.
Veja-se o exemplo do grande Mahatma Gandhi, em 1923, quando afirma
que "as indisposições, as doenças, não
são nada mais do que um aviso da natureza, a qual nos adverte
que as imundices foram se acumulando nesta ou naquela parte do corpo,
e certamente seria sábio deixar que a natureza agisse, ao invés
de cobrir a sujeira às custas de medicamentos".
A saúde, por outro lado, origina-se do latim salutis: "salvação",
"bom estado", "conservação".
É definida, por uns, como o estado normal das funções
orgânicas e faculdades mentais. Ou ainda como o estado de equilíbrio
dinâmico entre o organismo e seu ambiente o qual mantém
características estruturais e funcionais do organismo dentro
dos limites normais para a forma particular de vida (raça,
gênero e espécie) e para diferentes fases de seu ciclo
vital. Outros, simplesmente, definem a saúde com "estado
de estar firme no corpo e na mente; bem-estar, saudável, sadio".
Na prática, costuma-se definir a saúde como o estado
do indivíduo cujas funções orgânicas, físicas
e mentais se acham em situação normal; o estado do que
é sadio ou são. É comum, ainda, associar a definição
de saúde à força, robustez ou ao vigor ("que
bebê saudável!", se diz de uma criança, ainda
que com enormes chances de desenvolver hipertensão e diabetes
na fase adulta). Utiliza-se a expressão também para
a disposição do organismo ("que saúde
tem essa empregada!") ou a disposição moral
ou mental das pessoas, sem obviamente esquecer do voto ou saudação
que se faz bebendo à saúde de alguém (o brinde,
que muitas vezes, em excesso, produz a dependência química
e a cirrose hepática, entre tantas outras graves sequelas).
Em 1946, no contexto de reconstrução da Europa arrasada
pela II Grande Guerra Mundial e sob forte inspiração
da socialdemocracia europeia que se instalara em diversos países
no velho continente no pós-guerra, a Organização
Mundial de Saúde, órgão da ONU, por ocasião
de sua instalação, formulou um novo conceito, o mais
amplo, vago e subjetivo possível, para definir o que é
saúde: "Saúde é o estado de completo
bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência
de doença" (OMS).
Percebe-se, assim, uma insuficiência conceitual e enorme dificuldade
em compreender a complexidade representada pelo binômio saúde-doença,
ainda mais quando se considera, como já destacamos na introdução,
o atual estágio de desenvolvimento científico e tecnológico,
a transição demográfica e a mudança no
perfil epidemiológico em praticamente todos os países.
As doenças infectocontagiosas (a maioria pestilenciais) que
assolavam todos os povos praticamente desapareceram do cenário
dos países desenvolvidos. Restringem-se, atualmente, aos bolsões
de pobreza dos países subdesenvolvidos (ou periféricos,
em uma linguagem mais atual). As mudanças observadas na Europa
e nos Estados Unidos a partir da Revolução Industrial
e, mais particularmente, com o desenvolvimento do processo de urbanização
e industrialização em massa teve forte impacto na mudança
no perfil de morbimortalidade da população. Alterações
na taxa de natalidade, diminuição da mortalidade infantil
e aumento da expectativa média de vida foram sendo observadas,
ainda que em ritmos surpreendentemente diferentes, em todos os cantos
do planeta.
Dois modelos sobre saúde passam a ser disputados. Um deles
liderado pelos EUA e copiado por um número pequeno de países
— embora sua influência seja maior do que se possa imaginar
— trata a saúde como mais um bem de consumo a ser regido
pelas regras de mercado, ou seja, como valor de uso e de troca definidos
pelas mãos invisíveis do mercado. Para estes, a saúde
e a doença (a vida, portanto) constituem-se em uma mercadoria.
Desta forma, compete ao mercado prover as necessidades de saúde
e o acesso passa a ser um problema a ser resolvido pela lei da oferta
e da procura. Têm direito à saúde as pessoas inseridas
no mercado de trabalho formal ou que acumulam recursos para o pagamento
por desembolso direto. As demais são tratadas como indigentes,
como acontecia no Brasil até a Constituição de
1988, contando apenas com o apoio de benzedeiras, curandeiros, médiuns,
magnetizadores ou de instituições de assistência
beneficente, como as Santas Casas e os Hospitais Psiquiátricos
espíritas, por exemplo.
Outros países, por outro lado, influenciados pelos ideais da
socialdemocracia, do socialismo, do humanismo ou, simplesmente, por
entenderem que mesmo na lógica do capital era necessário
garantir a reprodução da força de trabalho e
atenuar as pressões sociais mediante a concessão de
"políticas públicas", passaram a lidar com
a saúde enquanto um direito social (com maior ou menor abrangência
de acordo com cada contexto específico).
É o caso do Brasil. Fruto de intensa mobilização
social, a população brasileira conquistou o direito
à saúde com a promulgação da Constituição
Federal de 1988 (Título VIII, capítulo II, seção
II, Da Saúde), que em seu artigo 196 preconiza: "A
saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido
mediante políticas sociais e econômicas que visem à
redução do risco de doença e de outros agravos
e ao acesso universal igualitário às ações
e serviços para sua promoção, proteção
e recuperação".
Embora o sistema de saúde ainda esteja longe da qualidade esperada
no cotidiano de milhões de pessoas, o conceito de saúde
passa a ser assumido de forma ampliada (enquanto qualidade de vida),
na medida em que depende de condições dignas de trabalho,
de renda, moradia, saneamento, proteção ao meio ambiente,
alimentação e nutrição, educação,
liberdade, acesso e posse da terra, transporte, lazer e garantia de
acesso às ações e serviços de saúde.
A saúde passou a ser entendida como direito social universal,
direito de cidadania, que se confunde com o direito à vida.
Desta forma, as ações e serviços de saúde
são caracterizados como de relevância pública
e enquanto direito social (direito à saúde) deve ser
assegurado pelo Estado (no caso brasileiro pela criação
de um Sistema Único de Saúde –
o SUS).
A saúde, portanto, passa a ser compreendida como uma das condições
essenciais da liberdade individual e da igualdade de todos perante
a lei. O direito à saúde é inerente à
pessoa humana, constituindo-se em direito público subjetivo.
E o dever do Poder Público de prover as condições
e as garantias para o exercício do direito individual à
saúde não exclui o das pessoas, da família, das
empresas e da sociedade (Código de Saúde do Estado de
São Paulo, 1995).
É extremamente importante reconceituar saúde-doença
pelas implicações objetivas e práticas na vida
das pessoas. A partir de um conceito mais amplo, como aqui discutido,
a assistência à saúde, prestada pelo Poder Público
ou pela iniciativa privada, passa a ser entendida como instrumento
que possibilite à pessoa o uso e gozo de seu potencial físico
e mental, reconhecendo e salvaguardando os direitos do indivíduo,
como sujeito das ações e dos serviços de assistência
em saúde, possibilitando-lhe:
a.) Exigir,
por si ou por meio de entidade que o representante e defenda os
seus direitos, serviços de qualidade prestados oportunamente
e de modo eficaz;
b.) Decidir, livremente, sobre a aceitação ou recusa
da prestação da assistência à saúde
oferecida pelo Poder Público e pela sociedade, salvo nos
casos de iminente perigo de vida.
c.) Ser tratado por meios adequados e com presteza, correção
técnica, privacidade e respeito;
d.) Ser informado sobre o seu estado de saúde, as alternativas
possíveis de tratamento e a evolução provável
do quadro nosológico e, quando for o caso, sobre situações
atinentes à saúde coletiva e formas de prevenção
de doenças e agravos à saúde; e
e.) Ter garantido e respeitado o sigilo sobre os dados pessoais
revelados.
O Código
de Ética Médica em vigor no Brasil, de 1988, capta muito
bem essa mudança ao afirmar:
"Todo
ser humano, sem distinção de qualquer espécie
seja de raça cor, sexo, língua, religião, ideologia,
idade, opinião política ou de outra natureza, origem
nacional ou condição sócio econômica, nascimento
ou qualquer outra condição, tem direito a um padrão
de vida que lhe assegure saúde e cuidados médicos. Entende-se
por saúde não a ausência de doenças, mas
o resultante das adequadas condições de alimentação,
habitação, saneamento, educação, renda,
meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso
e posse da terra e acesso aos serviços de saúde. Deste
conceito amplo significa a garantia pelo Estado dos direitos fundamentais
de cidadania. Assim entendida a Saúde de uma comunidade não
pode ser a ação isolada de uma única profissão,
mas sim das atividades multiprofissionais. A medicina, enquanto profissão,
tem por fim a promoção, preservação e
recuperação da saúde, e seu exercício
é uma atividade eminentemente humanitária e social.
É missão do médico zelar pela saúde das
pessoas e da coletividade, aliviar e atenuar o sofrimento de seus
pacientes, mantendo o máximo de respeito pela vida humana,
não usando os seus conhecimentos contrariamente aos princípios
humanitários".
Mesmo que ainda tão distante da prática médica
cotidiana ou da generosidade e excelência proposta pelo SUS,
há de se convir que essa concepção permite profundas
mudanças no modo de conceber a saúde e a doença.
Chega-se à conclusão, entretanto, que nenhuma das definições
acima é suficiente para explicar a complexidade do processo
saúde-doença, ainda que restrito a sua dimensão
biopsicossocial.
A verdade é que a saúde e a doença variam conforme
o observador. São julgadas de forma diferente se quem faz análise
é a própria pessoa, um parente ou amigos ou por profissionais
de saúde (e quantas opiniões distintas permitam!).
É inegável, entretanto, que três componentes estão
interligados. Na doença há um fato objetivo, corporal,
uma alteração de algum órgão, aparelho,
sistema ou função, mais ou menos demonstrável.
Isso determina maior ou menor conhecimento do mal. Por fim, permite
uma ideia e uma medida, derivadas do conhecimento, dos prejuízos,
dos interesses da época. É, portanto, um juízo
de valor, uma interpretação ética, além
de científica (Berlinguer, 1988).
A doença é um fenômeno vital, uma das maneiras
que a vida se manifesta em corpos organizados. Uma definição
que não contrapõe a saúde e a doença diretamente,
mas que as tornam aspectos inexoráveis da vida (mesmo que a
doença, de alguma forma, tenha uma noção negativa).
Daí preferir tratá-las pelo binômio saúde-doença.
Outra convicção é que a doença é
um processo, ação e reação, mediação
entre o conflito, agressão e defesa, uma luta constante entre
a homeostasia e o desequilíbrio. Uma incapacidade permanente
ou transitória de manter a homeostasia, o equilíbrio
entre as funções mentais ou orgânicas. E que tem
sempre um desenlace: a cura, a cronificação, a sequela
ou a morte física (um início, uma história e
uma conclusão, característica de algo processual).
Na verdade, é preciso refletir um pouco mais sobre os vários
sentidos da doença. O que tem em comum um resfriado e a esclerose
múltipla? Entre a hipertensão arterial e a Síndrome
de Down? Um tumor e a diarreia? A esquizofrenia e a lesão por
esforço repetido (LER)? E se consideramos as diferenças
entre os indivíduos, os povos e o comportamento frente às
doenças ao longo da própria história?
Certas doenças dominaram períodos específicos
da história. Determinaram a sorte, o apogeu ou a derrocada
de certas culturas. Influenciaram até mesmo a política,
a cultura, a arte e a arquitetura. Abreviaram carreiras de gênios
e personalidades que poderiam dar outros rumos ou sentidos à
história da humanidade. A peste, no século 14, a tuberculose
no século 19, a gripe espanhola, no início do século
20, assim como a AIDS, mais recentemente, são exemplos claros
e inquestionáveis.
A questão toma outra dimensão, conforme já discutido
anteriormente, quando se consideram as distintas chances de adoecer
e morrer, mensuráveis já no momento da gestação,
por exemplo, para futuros cidadãos que tiverem mães
com baixa escolaridade ou nível de renda familiar. As nações,
as classes, os indivíduos, são atingidos pelas doenças
de forma muito distinta.
Se nenhum conceito é satisfatório para definir a doença
ou explicar a sua causalidade, talvez seja necessário alargar
a discussão, abrindo-se novas possibilidades, a partir de outras
dimensões correlacionadas.
Pode-se abordar saúde-doença a partir de outros eixos,
outras possibilidades, procurando compreender como assume diferentes
significados e dimensões quando esse binômio é
analisado enquanto sofrimento, diferenças e anomalias, perigos,
sinais ou oportunidades, a partir dos estímulos que a enfermidade
pode desencadear e o quanto pode influir na vida de um indivíduo,
nas suas relações sociais e na sociedade. Mas isso será
assunto a ser desenvolvido em outra oportunidade.
A DETERMINAÇÃO DO PROCESSO
SAÚDE-DOENÇA
A mesma dificuldade, em diferentes momentos da história da
humanidade, se observa no tocante a explicação da causalidade
das enfermidades. Várias teorias foram formuladas para explicar
a determinação do processo saúde-doença.
As civilizações primitivas já se interrogavam
sobre a origem das doenças, atribuindo aos elementos da natureza
a responsabilidade pelo sofrimento e morte advindos das moléstias.
Aos pajés, xamãs ou sacerdotes cabia a responsabilidade
de operar os sistemas ritualísticos que poderiam operar a cura
das doenças (ou uma colheita farta, muitos filhos, mais chuva
ou qualquer outro evento considerado natural). É o que os estudiosos
chamam de teoria mítica.
Uma das mais antigas teorias, formuladas a partir dos preceitos que
deram origem à medicina tradicional chinesa, baseava-se na
ideia de que as doenças fossem resultantes da ausência
ou supressão de algum princípio vital. Esta concepção,
fortemente influenciada pelo taoísmo e pelo budismo, resultou
não apenas nos sistemas terapêuticos fundamentados na
medicina oriental como também, recodificada com as bases ocidentais,
no século 18, deu margem à fundamentação
filosófica da Homeopatia, fundada por Samuel Hahneman.
A medicina da Grécia antiga introduziu a ideia de desarmonia
dos fatores, desequilibrados entre si. A doença passaria a
existir quando houvesse predominância de um elemento: úmido-seco,
quente-frio, amargo-doce. A saúde era a isonomia ou igualdade,
dizia Alameão, século 4 a.C., o primeiro a intuir que
o cérebro é o órgão do pensamento. Hipócrates
aprofundou e tornou mais complexa essa análise, sem dogmas
e sem limites, procurando conhecer a fundo o modo particular como
cada um reage às agressões e ao conceber a investigação
da origem da doença (fundando a clínica) como forma
de orientar a terapêutica adequada.
As obras de Galeano (129-210 d.C.) foram estudadas como textos sacros
(por vezes escondida do Santo Ofício) até o Renascimento.
Nela estavam contidas todo saber médico e a explicação
para todos os problemas de saúde.
Durante o período medieval, quando os domínios da Igreja
Católica se tornaram uma ameaça ao progresso da ciência
e obscureceram práticas que se apoiavam em explicações
naturais, sob a égide de Santo Tomás de Aquino e Santo
Agostinho, a origem da doença passa a ser explicada pela presença
estranha e nociva de corpúsculos de uma matéria peccans,
matéria impura, demônios ou animais perversos (Berlinguer,
1988).
A doença foi frequentemente entendida, nesse longo período
da história da humanidade (que ainda parece introjetado em
nosso inconsciente coletivo) como sinal diabólico ou como punição
divina frente aos pecados humanos, em geral, associada à sexualidade.
Não é por menos, como indica Foucault, que os primeiros
hospitais a se constituírem são exatamente as Santas
Casas, em um período que a figura do médico é
banida e substituída pelo padre (apoiada pela freira), afinal,
o que estava doente era a alma...
A história dos hospitais nos dá ideia deste processo:
até meados do século 19 o hospital não existia
para curar (Foucault, 1986; Credídio, 1987). Era essencialmente
uma instituição de assistência a pobres e inválidos.
Ali eram abandonados os portadores de doenças, pois existia
a possibilidade de contágio. O hospital possuía a função
tanto de recolher o pobre, como de proteger o restante da população
— leia-se: abastada — do perigo. Era lugar de alguém
que necessitava de ajuda material e espiritual, afinal, estava morrendo.
Eram os religiosos que dirigiam os hospitais, e realizavam a transição
entre a vida e a morte.
Só a partir do século 17 é que o conhecimento
sobre a saúde e a doença voltou a progredir, com Morgagni
(anatomia-patológica) e, já no século 19, com
Claude Bernard (fisiopatologia).
Entretanto, em virtude do quadro sanitário e epidemiológico
marcadamente dominado pelas doenças pestilenciais, passou-se
a predominar a teoria dos miasmas, crença compartilhada por
grande parte do saber médico-científico do século
19, que acreditava que as febres epidêmicas e grande parte das
doenças tinham origem na matéria vegetal e animal em
putrefação, nas emanações das águas
estagnadas. Parte dos médicos aderiu à teoria do contágio,
muito embora, é importante ressaltar, o significado do mundo
dos seres microscópicos só tenha sido desvendado a partir
das descobertas de Pasteur e Koch, em 1870, até então
prevalecendo a teoria da geração espontânea.
As descobertas da microbiologia, por meio do trabalho de Pasteur e
Koch, permitiram "individualizar" a causa das doenças.
Para todo efeito era necessário buscar uma causa. As doenças
infecciosas eram produzidas por microrganismos e não pelas
emanações miasmáticas. Agora a medicina ganhava
status científico, livrando-se da tola prisão religiosa
ou da fantasiosa e mística teoria dos miasmas e dos fluidos
vitais.
Passava a vigorar a teoria da unicausalidade e a partir desta é
possível conhecer os mecanismos de transmissão das doenças,
formular e implementar medidas preventivas e higiênicas (profilaxia)
para muitas enfermidades infecciosas (peste, malária, varíola,
tuberculose etc.), com impacto considerável sobre chagas que
assolavam a humanidade a séculos.
O êxito alcançado no final do século 19 e primeiras
décadas do século 20 permitiu imaginar que o microscópio
permitiria encontrar a solução para todos os problemas
de saúde, por meio de soros e vacinas.
Como ensina Berlinguer (1988), não se levou em consideração,
entretanto, "que cada condição de existência
do homem pode igualmente transformar-se em fonte de doenças.
Os mesmos fatores que permitem ao homem viver (alimento, ar, clima,
habitação, trabalho, técnica, relações
familiares, sociais etc.) podem causar doenças, se agem com
determinada intensidade, se pesam em excesso ou falta, se agem sem
controle". Desta forma, um mesmo elemento pode assumir dois
valores, sendo fonte de saúde ou razão de mal-estar.
Segundo esse professor italiano, "a mesma ambivalência
que circunda as causas de saúde ou de doença valem para
as manifestações dos dois fenômenos".
A definição demasiadamente ampla da OMS (saúde
como bem-estar físico, mental e social), apresentada anteriormente,
teve efeitos positivos por certo tempo, na medida em que ampliou a
atenção para aspectos até então negligenciados:
a dimensão mental e social dos seres humanos. Mas a extrapolação
do seu significado, confundindo mal-estar mental e social com doença,
tem levado a sociedade à práticas de medicalização
(entregar a médicos e psicólogos a responsabilidade
de resolver problemas relacionados à dificuldades de aprendizado
ou a dependência à benzodiazepínicos, usadas sem
critério para "tratar" dos que sofrem de perdas sentimentais,
desemprego e outras frustrações ou problemas de ordem
emocional, apenas para citar dois exemplos corriqueiros).
Nas décadas de 50 e 60 do século passado, uma nova teoria
para explicar a origem das doenças vai se consolidar, permanecendo
hegemônica até os dias atuais. Trata-se da teoria da
multicausalidade, formulada a partir de autores como MacMaholl, Leavel
& Clark, fortemente fundamentada na teoria de sistemas, que ganha
força nesse período em todos os ramos do conhecimento
científico. Em síntese, procura explicar o processo
saúde-doença como o "conjunto formado pelos
fatores vinculados ao ambiente, ao agente etiológico e ao suscetível,
dotado de uma organização interna que define as interações
determinantes da produção de doença (um sistema
epidemiológico)" (Rouquayrol, 2003).
O envelhecimento populacional, a industrialização e
a urbanização tiveram impacto considerável sobre
o perfil de morbimortalidade. Proporcionaram o aumento considerável,
na medida em que as pessoas vivem mais, das doenças crônico-degenerativas
(cardiovasculares, neoplasias, doenças metabólicas etc.),
assim como os problemas decorrentes do trabalho (acidentes e doenças
ocupacionais) e os problemas decorrentes da violência (acidentes
automobilísticos, armas de fogo, armas brancas, suicídios
etc.). Ao mesmo tempo, observou-se importante diminuição
das chamadas doenças infecto-contagiosas.
A teoria da multicausalidade, entretanto, rapidamente foi capaz de
promover alterações e adaptar-se às novas exigências
teóricas e conceituais. O agente etiológico foi substituído
na análise das doenças não infecciosas por "fatores
de risco" (álcool, tabagismo, obesidade, stress,
dieta, sedentarismo etc.). A noção de hospedeiro reformulada
para a de suscetível, na medida em que é possível
medir a probabilidade (estatisticamente significante) de desenvolver
determinada enfermidade a partir da utilização de desenhos
de pesquisa da epidemiologia e o uso da informática.
Esperava-se, entretanto, que a partir das consequências práticas
desse modelo, reforçadas com o advento dos medicamentos, exames
complementares cada vez mais sofisticados na área de patologia,
imagem, medicina nuclear etc. e serviços terapêuticos
que ampliaram consideravelmente a divisão social do trabalho
em saúde, com o surgimento de novas profissões e modalidades
assistenciais, houvesse efetivamente uma mudança no perfil
epidemiológico das comunidades.
Esse processo efetivamente se deu em países desenvolvidos da
Europa, da América do Norte e no Japão. No restante
do mundo, entretanto, prevaleceu o quadro sanitário lastimável,
como se pode observar na África, na Ásia e Oriente Médio,
típico dos países europeus há dois séculos
e meio atrás, ou um perfil epidemiológico de transição,
com o observado em países como o Brasil, nossos vizinhos da
América do Sul, o México e países do Leste Europeu,
caracterizado pela predominância das doenças crônico-degenerativas
como principais causas de morte, com altíssimos coeficientes
de óbitos por causas externas (mortes violentas) e, embora
já não tão significativas como no passado, a
manutenção de elevados coeficientes de doenças
infectocontagiosas, mesmo com a diminuição do número
de óbitos.
Observando essa transição interrompida em países
de Terceiro Mundo, intelectuais da América Latina formularam
ao longo das décadas de 80 e 90 a teoria da determinação
social do processo saúde-doença, a partir da crítica
à teoria da multicausalidade.
Esses autores (Laurell, Breihl, Arouca, dentre outros), a partir da
concepção de social enquanto conjunto de características
que compõe o complexo das relações humanas em
sociedade, propõem que o processo saúde-doença
não deva ser entendido como uma relação imediata,
direta, do tipo causa-efeito, entre o social e a doença. Ou
seja, questionam a linearidade proposta pelo modelo hegemônico.
Para eles, a determinação do processo saúde-doença
deve ser analisada em dois planos: o das condições econômicas,
sociais e políticas, em que ocorre o processo; e, as práticas
de intervenção e de controle que a sociedade adota frente
ao processo mórbido. Entendem que as condições
sociais gerais e as práticas históricas definidas de
intervenção refletem-se na explicação
para o processo saúde-doença, condicionando o próprio
saber, ou seja, a visão teórica do que seja o tema (e,
obviamente, as explicações e práticas dele decorrentes).
Demonstram, claramente, que as doenças e óbitos prevalecem
de maneira distinta nas diferentes classes socais, produzindo um padrão
de iniquidade e injustiça social.
Nessa teoria o social não pode ser apresentado como uma variável
ao lado de outros fatores causais da doença, mas como um campo
onde a doença adquire um significado específico. O social
deve aparecer como relações sociais de produção,
responsáveis pela posição de segmentos da população
na estrutura social, e não como indicador de consumo. O estado
sanitário de uma população é a expressão
da evolução das condições de vida das
classes sociais, num dado período. As condições
de vida, por outro lado, são reflexo das condições
mais gerais de produção e distribuição
dos bens e do acesso a serviços nessa sociedade. Na prática,
a partir desta teoria, os profissionais de saúde e a sociedade
são chamados a responder a conjunturas sociais específicas,
pois enquanto prática coletiva, as ciências da saúde
devem intervir no próprio social e este fato se reflete nos
resultados (assistência, produção de conhecimento
etc.).
Entretanto, assim como apontado para a definição do
processo saúde-doença, parece-nos necessário
reconhecer que as teorias são também insuficientes para
dar conta da complexa tarefa de apontar a origem das enfermidades.
Mudam o conhecimento e os valores científicos e com eles a
cultura geral. Muda o poder, e com ele o juízo de valores da
sociedade sobre temas como saúde-doença e sua determinação.
A SAÚDE E A DOENÇA EM KARDEC
Mesmo com toda a objetividade empregada por Allan Kardec na construção
do corpo de conhecimentos da filosofia espírita, a partir de
"O Livro dos Espíritos"
(1857) e "O Que é o Espiritismo"
(1859), é necessário reconhecer que o mestre lionês
trata do tema da saúde e da doença apenas tangencialmente.
A expressão saúde é utilizada em sua principal
obra, fundadora de uma certa visão de mundo denominada espiritismo,
apenas sete vezes. Doença, moléstia ou enfermidade,
apenas onze vezes. Ainda sim em contextos nem sempre objetivamente
diretos para tratar destes temas. Isso não impede, entretanto,
que a filosofia espírita seja capaz de ampliar significativamente
os paradigmas do processo saúde-doença e de seus determinantes.
Inevitavelmente é preciso reconhecer que Kardec concebeu o
processo saúde-doença, na visão espírita,
em uma perspectiva vitalista. A alma, imaterial e individual, que
existe em nós e sobrevive à morte do corpo físico,
necessita do corpo físico para cumprir sua jornada evolutiva.
Esse corpo, por sua vez, é animado pelo princípio vital,
"princípio da vida material e orgânica, qualquer
que seja a fonte donde promane, princípio este comum a todos
os seres vivos, desde as plantas até o homem" (OLE,
Introdução).
Como já discutimos em outro momento, Kardec trabalha com duas
hipóteses para explicar o fenômeno vital: como propriedade
da matéria ou residente em um fluido especial, universalmente
espalhado e do qual cada ser absorveria e assimilaria uma parcela
durante a vida. Em sua obra "A Gênese,
os Milagres e as Predições Segundo o Espiritismo",
acaba definindo-se pela segunda hipótese. Pois bem, é
esse fluido vital que garante a vitalidade dos órgãos,
devendo ser renovado constantemente para que haja a manutenção
do estado de saúde (do ponto de vista orgânico). A perturbação
ou escassez desse fluido levaria ao desenvolvimento das enfermidades.
Mais ainda, da mesma maneira que a presença do fluido vital
anima a matéria, a morte física seria consequência
exatamente do esgotamento deste fluido vital, a cessação
do princípio vital.
O espiritismo dá um sentido mais amplo ao processo saúde-doença,
ao considerar a dimensão espiritual e corpórea de cada
criatura. Na primeira, mais sutil, operam as estruturas psíquicas,
mentais, cognitivas e a vontade. A segunda, formada pelo complexo
físico-químico e energético. As duas profundamente
interligadas, constituindo o indivíduo.
Como há uma interligação entre a dimensão
material e a espiritual, a influência que um exerce sobre outra
é imensa. Kardec atribui ao perispírito significativa
importância na fisiopatologia das enfermidades, na medida em
que é o elo (energético) entre o espírito e a
matéria. A partir de Kardec, diversos outros autores espíritas
passarão a construir uma fundamentação que toma
o perispírito como o modelo central explicativo para o surgimento
das enfermidades.
Como a quantidade deste fluido é diferente entre os indivíduos
e pode ser transmitida para outros seres vivos, passa a dar sentido
as práticas já existentes que se pautavam no Vitalismo
e no Magnetismo, como a homeopatia, os passes fluídicos e a
água fluídica, agora associados à mediunidade
e outros práticas genuinamente espíritas.
Na pergunta 192, Kardec questiona os espíritos se "pode
alguém, por um proceder impecável na vida atual, transpor
todos os graus da escala do aperfeiçoamento e tornar-se Espírito
puro, sem passar por outros graus intermédios?",
obtendo a seguinte resposta: "Não, pois o que o homem
julga perfeito longe está da perfeição. Há
qualidades que lhe são desconhecidas e incompreensíveis.
Poderá ser tão perfeito quanto o comporte a sua natureza
terrena, mas isso não é a perfeição absoluta.
Dá-se com o Espírito o que se verifica com a criança
que, por mais precoce que seja, tem de passar pela juventude, antes
de chegar à idade da madureza; e também com o enfermo
que, para recobrar a saúde, tem que passar pela convalescença.
Demais, ao Espírito cumpre progredir em ciência e em
moral. Se somente se adiantou num sentido, importa se adiante no outro,
para atingir o extremo superior da escala. Contudo, quanto mais o
homem se adiantar na sua vida atual, tanto menos longas e penosas
lhe serão as provas que se seguirem."
É possível perceber que os espíritos, embora
não tratem diretamente da questão, concebem a saúde-doença
como um processo natural da vida, tal qual os diferentes estágios
etários ou, de forma mais profunda, a evolução
espiritual que se dá a partir das experiências acumuladas
e do desenvolvimento intelecto-moral que o espírito vai acumulando
progressivamente a cada existência.
A segunda menção à saúde pode ser encontrada
nos comentários de Kardec à pergunta 707, tratando da
Lei de Conservação. Nesta questão, Kardec pergunta
aos espíritos:
"É
frequente a certos indivíduos faltarem os meios de subsistência,
ainda quando os cerca a abundância. A que se deve atribuir isso?
Ao egoísmo dos homens, que nem sempre fazem o que lhes
cumpre. Depois e as mais das vezes, devem-no a si mesmos. Buscai e
achareis; estas palavras não querem dizer que, para achar o
que deseje, basta que o homem olhe para a terra, mas que lhe é
preciso procurá-lo, não com indolência, e sim
com ardor e perseverança, sem desanimar ante os obstáculos,
que muito amiúde são simples meios de que se utiliza
a Providência, para lhe experimentar a constância, a paciência
e a firmeza", respondem os espíritos.
Vejamos o comentário de Kardec: "Se é certo
que a Civilização multiplica as necessidades, também
o é que multiplica as fontes de trabalho e os meios de viver.
Forçoso, porém, é convir em que, a tal respeito,
muito ainda lhe resta fazer. quando ela houver concluído a
sua obra, ninguém deverá haver que possa queixar-se
de lhe faltar o necessário, a não ser por própria
culpa. A desgraça, para muitos, provém de enveredarem
por uma senda diversa da que a Natureza lhes traça. É
então que lhes falece a inteligência para o bom êxito.
Para todos há lugar ao Sol, mas com a condição
de que cada um ocupe o seu e não o dos outros. A Natureza não
pode ser responsável pelos defeitos da organização
social, nem pelas consequências da ambição e do
amor-próprio. Fora preciso, entretanto, ser-se cego, para se
não reconhecer o progresso que, por esse lado, têm feito
os povos mais adiantados. Graças aos louváveis esforços
que, juntas, a Filantropia e a Ciência não cessam de
despender para melhorar a condição material dos homens
e mal grado ao crescimento incessante das populações,
a insuficiência da produção se acha atenuada,
pelo menos em grande parte, e os anos mais calamitosos do presente
não se podem de modo algum comparar aos de outrora. A higiene
pública, elemento tão essencial da força e da
saúde, a higiene pública, que nossos pais não
conheceram, é objeto de esclarecida solicitude. O infortúnio
e o sofrimento encontram onde se refugiem. Por toda parte a Ciência
contribui para acrescer o bem-estar. Poder-se-á dizer que já
se haja chegado à perfeição? Oh! Não,
certamente; mas, o que já se fez deixa prever o que, com perseverança,
se logrará conseguir, se o homem se mostrar bastante avisado
para procurar a sua felicidade nas coisas positivas e sérias
e não em utopias que o levam a recuar em vez de fazê-lo
avançar".
A situação sanitária (Rosen, 1979), resultante
do processo conturbado em que se dava a urbanização
e que em última instância traduzia a miséria social
que proliferava nas cidades emergentes, era caracterizada por péssimas
condições de higiene, promiscuidade, grandes epidemias,
acidentes de trabalho, desnutrição, enfim, de uma massa
de trabalhadores muito pobre. Pobreza esta, componente e retrato de
uma população imensa e mendiga, com condições
propícias para criar a doença, a delinquência,
o banditismo, a violência e a prostituição.
Neste cenário, as classes dirigentes europeias, influenciadas
pelos ideais mercantilistas e preocupadas em aumentar o poder nacional,
tiveram que eleger o trabalho como elemento essencial de geração
de riqueza, tornando necessária a formulação
de políticas de saúde que enfrentassem as grandes epidemias,
a doença e a morte, evitando perdas de produtividade e assegurando
o crescimento populacional e o fornecimento da força de trabalho;
questões centrais para o desenvolvimento do capitalismo (Costa,
1986).
Na França, no período que compreende fins do século
18 e a primeira metade do século 19, o "movimento higienista"
traduziu, de certa forma, a resposta social ao perigo representado
pela miséria reinante. As medidas realizadas foram, primeiro,
no sentido da efetuação de vigilância intensa
da natalidade (estímulo ao crescimento), sobre a mortalidade,
aos projetos de reclusão, prevenção, assistência
aos pobres e higienização das cidades, principalmente
dos cemitérios e matadouros (Foucault, 1986). Secundariamente,
no controle da circulação, não dos indivíduos,
mas das coisas. Essencialmente da água e do ar, já que
a teoria miasmática ainda era hegemônica, ocorrendo intervenções
na higienização das cidades, principalmente em Paris.
Construíram-se corredores de ar, avenidas etc. Mesmo limitada
cientificamente, a prática sanitária demonstrou grande
permeabilidade e aplicação nos programas de prevenção,
de medidas de engenharia sanitária e saneamento do meio ambiente.
Essas intervenções eram realizadas e implementadas pelas
academias de ciências (de médicos, químicos e
biólogos), tendo o Estado como grande estimulador das ações
em prol da saúde pública, fornecendo pioneiramente o
atendimento médico – ainda coletivo – àquela
multidão que, até então, não possuía
condições de ter orientação médica
individual devido ao seu alto custo e a ineficácia de uma prática
inconsistente e altamente lesiva. Cabe ressaltar que a prática
cirúrgica ainda não havia sido incorporada à
prática médica, o que só ocorreu após
o advento da anestesia. Já as práticas medicamentosas
eram extremamente limitadas e agressivas.
A Saúde Pública, enquanto Sanitarismo, configurou neste
período aquilo que foram as práticas sanitárias,
restringindo-as a um conjunto de ações sobre os fatores
que foram encarados como responsáveis pelo aparecimento da
doença coletivamente, e identificados com o meio urbano, que
foi reduzido à disponibilidade maior ou menor das condições
adequadas de moradia, esgoto etc. O cuidado médico individual
não tinha a saúde como objeto, mas a doença e,
por isso, foi tido como limitado, dentro da visão miasmática.
Após a segunda metade do século 19, período em
que surge o espiritismo, os Estados europeus já garantiam uma
intervenção considerável, em termos de políticas
sociais, representada de um lado pelo cuidado ao pobre, de outro,
pela implementação de medidas de proteção
e controle do ambiente, bem como das doenças transmissíveis
e das epidemias (Donnangelo, 1975). A resolução em parte
destes graves problemas, a pobreza e as condições sanitárias,
juntamente com o desenvolvimento de um novo referencial teórico
para a explicação da determinação da causalidade
do processo saúde-doença, bem como a perspectiva concreta
de intervenção que proporcionaram, explicam, em parte,
o recrudescimento das políticas sanitárias e a supremacia
da assistência individual.
A questão passa a ser analisada sobre outro ponto de vista
por Kardec a parir da Lei de Conservação, quando trata
das privações voluntárias e mortificações.
Ali, questiona os espíritos se esta lei obriga o homem a prover
às necessidades do corpo, obtendo como resposta uma afirmativa,
na medida em que os espíritos avaliam que "sem força
e saúde, impossível é o trabalho.". Na verdade,
o papel que desempenha o trabalho no processo evolutivo dos espíritos
é central na tese espírita. É por meio dele que
podemos transformar a nossa realidade e galgar importantes experiências
em nossa trajetória evolutiva. Daí que, sem a saúde,
queda-se limitado o espírito em atuar plenamente, com toda
sua potencialidade. De alguma forma, poder-se-ia imaginar que essa
tese, muito próxima à concepção da Reforma
proposta por Calvino e Lutero, atenderia plenamente as necessidades
do emergente sistema capitalista.
Não obstante, é inegável que a filosofia espírita,
da mesma forma que coloca o trabalho como elemento essencial para
o processo evolutivo, dá enorme importância à
caridade, na medida em que delega a responsabilidade aos mais fortes
(hígidos, sadios, abastados etc.) de cuidar dos mais fracos.
Mais ainda, dá novo sentido às dificuldades enfrentadas
pelos deficientes e para o sofrimento advindo da doença e da
incapacidade, pois essas situações propiciam oportunidades
de aprendizado para os portadores de deficiências, enfermos,
familiares e cuidadores (profissionais de saúde ou não),
no exercício da caridade, da benevolência, da doação
e da paciência (ou resignação, como querem os
cristãos, embora possa assumir essa expressão conotação
excessivamente conservadora).
Kardec procura, ainda, reforçar o compromisso que a sociedade
deve ter com aqueles que são incapazes de cuidar de si próprios.
Na pergunta 930, preocupa-se com as "pessoas que se veem
na impossibilidade de prover às suas necessidades, em consequência
de moléstias ou outras causas independentes da vontade delas".
O ensinamento espírita, neste caso, reforça a concepção
de saúde enquanto direito humano, um direito social, na medida
em que os espíritos afirmam: "Numa sociedade organizada
segundo a lei do Cristo ninguém deve morrer de fome.",
ideia de enorme generosidade complementada pelo judicioso comentário
de Kardec: "Com uma organização social criteriosa
e previdente, ao homem só por culpa sua pode faltar o necessário.
Porém, suas próprias faltas são frequentemente
resultado do meio onde se acha colocado. Quando praticar a lei de
Deus, terá uma ordem social fundada na justiça e na
solidariedade e ele próprio também será melhor."
Na questão 722, Kardec, ainda no contexto da Lei de Conservação,
aponta para a discussão sobre alimentação, questionando
se seria "racional a abstenção de certos alimentos,
prescrita a diversos povos?". Os espíritos afirmam
categoricamente: "Permitido é ao homem alimentar-se
de tudo o que lhe não prejudique a saúde (...)."
Na questão seguinte argui explicitamente os espíritos
se a alimentação animal para os homens é contrária
à lei da Natureza. Ao que respondem: "Dada a vossa
constituição física, a carne alimenta a carne,
do contrário o homem perece. A lei de conservação
lhe prescreve, como um dever, que mantenha suas forças e sua
saúde, para cumprir a lei do trabalho. Ele, pois, tem que se
alimentar conforme o reclame a sua organização."
A filosofia espírita, na medida em que não prescreve
o que é certo ou errado, não impõe dogmas ou
punições; remete à livre consciência de
cada um as escolhas que devam fazer para tratar das mais variadas
questões, apontando a necessidade de equilíbrio e bom-senso.
O espiritismo propõe uma superação da concepção
de que saúde e doença são regalias ou castigos,
respectivamente, proporcionadas por um Deus mesquinho e vingativo.
Na pergunta 964 de "O Livro dos Espíritos",
Kardec lança o seguinte questionamento:
"Mas, será necessário que Deus atente em cada
um dos nossos atos, para nos recompensar ou punir? Esses atos não
são, na sua maioria, insignificantes para Ele?
A resposta fornecida pelos espíritos não deixa margem
de dúvidas para outro tipo de interpretação:
"Deus tem suas leis a regerem todas as vossas ações.
Se as violais, vossa é a culpa. Indubitavelmente, quando um
homem comete um excesso qualquer, Deus não profere contra ele
um julgamento, dizendo-lhe, por exemplo: Foste guloso, vou punir-te.
Ele traçou um limite; as enfermidades e muitas vezes a morte
são a consequência dos excessos. Eis aí a punição;
é o resultado da infração da lei. Assim em tudo."
No comentário à questão 714, Kardec faz a respeito
judicioso comentário:
"O homem, que procura nos excessos de todo gênero o
requinte do gozo, coloca-se abaixo do bruto, pois que este sabe deter-se,
quando satisfeita a sua necessidade, Abdica da razão que Deus
lhe deu por guia e quanto maiores forem seus excessos, tanto maior
preponderância confere ele à sua natureza animal sobre
a sua natureza espiritual. As doenças, são, ao mesmo
tempo, o castigo à transgressão da lei de Deus".
Ressalte-se que Kardec afirma que as enfermidades têm, além
de outros determinantes, uma dimensão de transgressão
às leis naturais (de Deus), mas não diz que se trata
de um castigo imposto por Deus, o que equivocadamente aproximaria
à tese espírita de concepções religiosas
mais conservadoras.
A quarte parte de "O Livro dos Espíritos"
trata (ainda que indiretamente) do processo saúde-doença,
tanto na dimensão terrena quanto na vida no mundo dos espíritos.
Na pergunta 927, Kardec afirma "que à felicidade,
o supérfluo não é forçosamente indispensável,
porém o mesmo não se dá com o necessário.
Ora, não será real a infelicidade daqueles a quem falta
o necessário?"
Os espíritos, entretanto, afirmam: "Verdadeiramente
infeliz o homem só o é quando sofre a falta do necessário
à vida e à saúde do corpo. Todavia, pode acontecer
que essa privação seja de sua culpa. Então, só
tem que se queixar de si mesmo. Se for ocasionada por outrem, a responsabilidade
recairá sobre aquele que lhe houver dado causa."
Abrem-se, a partir destas possibilidades, diferentes entendimentos,
que muito avançam ao encontro da teoria da determinação
social do processo saúde-doença, embora com uma amplitude
ainda maior. A enfermidade pode sim ser explicada pelas escolhas,
atitudes, hábitos e distintos modos de viver que cada um assume
ao longo de sua(s) vida(s). O hábito de fumar, beber, os excessos
físicos e alimentares, a atividade sexual desregrada e promíscua,
o uso de drogas, a displicência em relação ao
controle de peso, ao sedentarismo ou de uma doença preexistente
são exemplos objetivos de situações em que nós
mesmos acabamos "determinando" as consequências. É
a lei de causa e efeito agindo, sem determinismo, simplesmente operando
em harmonia com o livre-arbítrio que cada um de nós
temos.
Na medida em que a vida e a morte constituem-se em um processo contínuo
e que cada espírito carrega em sua consciência marcas,
remorsos, culpas, dores e arrependimentos de erros ou oportunidades
desperdiçadas, é possível imaginar que algumas
enfermidades possam ter forte influência psíquico-energética,
ou seja, de alguma forma são derivadas ou se impõem
como mais um dos fatores de risco para o surgimento da enfermidade
(que pode ou não ocorrer, dependendo das circunstâncias).
É possível imaginar, por exemplo, e sem que se constitua
em uma regra inexorável, que um espírito suicida, extremamente
perturbado, sofra desequilíbrio energético tão
intenso que seja capaz de interferir "naturalmente" no processo
de desenvolvimento embrionário, favorecendo o surgimento de
uma deficiência mental.
Mas os espíritos, nessa mesma resposta citada anteriormente,
dão abertura para outras possibilidades explicativas, tão
coerentes e possíveis quanto as que mencionamos acima. Se a
privação da saúde for "ocasionada por
outrem, a responsabilidade recairá sobre aquele que lhe houver
dado causa." É possível que um casal, dependente
químico de drogas, gere uma criança com deficiências
físicas e mentais. Neste caso, não é possível
imaginar que a responsabilidade seja necessariamente do espírito
reencarnante. Um jovem dirige seu carro em alta velocidade, completamente
alcoolizado, perde o controle da direção e atropela,
mata e aleija diversas pessoas. A responsabilidade só deve
ser atribuída ao condutor irresponsável, que assumirá
as responsabilidades advindas de seu insano desatino à justiça
dos homens e à própria consciência, maneira implacável
e natural pela qual opera a justiça divina. Um industrial sabe
que sua fábrica polui o ar e produz milhares de casos de doenças
respiratórias. A responsabilidade é sua, em virtude
de sua ganância sem limites, ou dos enfermos cidadãos
indefesos? Parece-nos que o espiritismo aponta claramente para uma
concepção que trata a saúde e a doença
a partir da perspectiva da justiça social.
É Kardec que nos orienta, no Ensaio Teórico
das Sensações nos Espíritos:
"Os sofrimentos deste mundo independem, algumas vezes, de
nós; muito mais vezes, contudo, são devidos à
nossa vontade. Remonte cada um à origem deles e verá
que a maior parte de tais sofrimentos são efeitos de causas
que lhe teria sido possível evitar. Quantos males, quantas
enfermidades não deve o homem aos seus excessos, à sua
ambição, numa palavra: às suas paixões?
Aquele que sempre vivesse com sobriedade, que de nada abusasse, que
fosse sempre simples nos gostos e modesto nos desejos, a muitas tribulações
se forraria".
E acrescenta que o mesmo se dá com o Espírito, embora
livre das dores de ordem física.
Uma visão sem regras, mas natural, dentro das muitas possibilidades
experienciadas em cada situação. Assim é a visão
natural da vida, da saúde, da doença e da morte que
se deve apreender a partir da filosofia espírita. Nada de castigos,
mas em cada situação, independente da responsabilidade
causal, mais uma oportunidade de crescimento intelecto-moral.
Um enorme consolo, um alento proporcionado, acima de tudo, pela certeza
no futuro. O Espiritismo permite compreender como a vida física
é importante, mas ao mesmo tempo passageira. Como é
acalentador saber que nenhum sofrimento é eterno (OLE,
p. 1009). Como diz a comunicação
atribuída ao espírito de Santo Agostinho (OLE,
p. 919): "Que é esse descanso
de alguns dias, turbado sempre pelas enfermidades do corpo, em comparação
com o que espera o homem de bem?" Uma certeza que vai se
deslumbrando a partir do processo de autoconsciência, das conquistas
advindas do desenvolvimento intelecto-moral.
O processo saúde-doença assume, portanto, a partir da
visão espírita, diversos significados que não
são excludentes e não se conformam em regras a serem
absolutizadas.
A doença pode se expressar, como já afirmamos anteriormente,
em distintas situações, como sofrimento, diversidade,
perigo, sinal, estímulo ou oportunidade. Por vezes em profundas
e complexas combinações.
A despeito das formulações contidas nas obras básicas
do espiritismo, entretanto, pensadores espíritas (encarnados
e desencarnados) e o movimento espírita de matiz religioso,
de maneira geral, a partir do sincretismo entre o referencial kardequiano
e outras correntes de pensamento religioso e filosófico, em
particular o judaísmo e o cristianismo, terminam concebendo
um olhar sobre a doença e a saúde que se opõem
à visão evolucionista e libertadora de homem e de mundo
que se pode apreender a partir da filosofia espírita.
Os modelos teóricos utilizados para explicar o processo saúde-doença
e seus determinantes resultam em práticas de intervenção
e de controle que a sociedade adota frente ao processo mórbido.
Portanto, um "modelo espírita" para conceituar e
explicar a determinação da doença resulta, consequentemente,
em posturas e práticas de intervenção alinhadas
a essa corrente de pensamento.
Um modelo espírita de saúde-doença, impregnado
de concepções equivocadas, determinísticas, em
que os processos mórbidos são desencadeados pela punição
divina aos erros cometidos em outras existências, em uma pena
de talião sem fim, resulta em práticas conservadoras
e adequadas a esta visão.
O fatalismo e o determinismo pretendem a tudo explicar. Atribui-se
as doenças às faltas do passado. A mediunidade de cura
é tratada como missão divina. Há um endeusamento
de médiuns de cura e um superdimensionamento do papel de determinados
espíritos, como Bezerra de Menezes e o dr. Fritz.
Até a obtenção de processos de cura ou a melhoria
observada frente aos processos mórbidos são encarados
fanaticamente como obtenção de moratória divina
(vinculada a mérito moral), enviesando a justiça divina
ou o livre-arbítrio das criaturas.
Práticas inaceitáveis, como promessas de curas e exploração
de mídia, substituição ou interrupção
de tratamento médico, utilização de objetos perfurocortantes,
prescrição de drogas e medicamentos (inclusive plantas)
sem autorização médica, mercantilização
do tratamento mediúnico e a própria ausência de
acompanhamento dos resultados passam a fazer parte do cotidiano do
movimento espírita (e são utilizadas de forme proselitista,
no sentido de trazer maior número de adeptos).
É desta maneira que a mediunidade, a obsessão, a reencarnação,
a lei de causa e efeito, vegetarianismo, terapias energéticas
oriundas do magnetismo e de filosofias esotéricas, expiações
coletivas, entre outros temas, têm sido utilizados de maneira
absolutamente acrítica ou deturpada para explicar, afoita e
inadequadamente, a gênese das enfermidades, dos sofrimentos
físicos, psíquicos, mentais e morais ou propor práticas
de intervenção, muitas vezes se contrapondo ou em substituição
às terapêuticas instituídas em bases científicas.
O espiritismo não despreza, ainda que secundarize o impacto
frente a tudo o quanto foi aqui exposto, o potencial da própria
mediunidade de cura, prática muito antiga e natural, a partir
do "dom que possuem certas pessoas de curar pelo simples
toque, pelo olhar, mesmo por um gesto, sem o concurso de qualquer
mediação", como nos ensina Kardec em "O
Livro dos Médiuns". Aponta o potencial e
as possibilidades advindas do magnetismo (quando ocorre a ampliação
da "força magnética" do médium), ou
a intervenção de uma outra individualidade ("potência
oculta"), representada pela ação dos espíritos.
Leva em consideração a ação mental-intuitiva,
tanto do paciente como de outros sujeitos encarnados e desencarnados
que se dispõe, por meio da vontade, a se colocar como instrumento
de apoio aos que sofrem ou estão enfermos. Ou ainda a ação
"direta" sobre o mundo material (energética).
Potencializa outras possibilidades, como as emissões energéticas
próximas (passe) ou à distância, com a qual conta
com a ação do encarnado, a ação combinada
médium-espírito ou a ação dos espíritos
sem a participação do médium (utilizando os elementos
da natureza).
Portanto, o espiritismo, sem se contrapor a visão científica
de base materialista, abre a possibilidade para a utilização
racional de práticas e cuidados à saúde complementares:
terapias energéticas, prescrições mediúnicas,
mediunidade de cura, outros usos da mediunidade no tratamento da obsessão
e os problemas de origem espiritual.
Obviamente é necessário levar em consideração,
na ação complementar dos espíritos, que estas
estão sujeitas à ação do efeito placebo
e de outras interferências. Mas há evidências científicas
acumuladas que demonstram a utilidade das emissões energéticas,
do passe, da prece e da ação mediúnica curadora,
particularmente quando são utilizadas em associação
terapêutica positiva.
Devemos ser a favor de todo e qualquer benefício efetivo que
possa satisfazer nossas necessidades, melhorar a qualidade de vida,
aliviar o sofrimento e proporcionar prazer e felicidade. Neste sentido,
a intervenção do homem sobre a natureza e o intercâmbio
com os espíritos devem ser melhor aproveitados. Isto não
deve obscurecer, entretanto, que a contribuição maior
que o espiritismo pode dar é a sua a filosofia, baseada na
existência do espírito, a imortalidade da alma, a evolução
infinita e a educação para a "morte".
Todas essas práticas têm seu valor, mas a mediunidade
pode e deve ser melhor explorada em sua totalidade. Apesar desses
avanços, não se tem caminhado no sentido de utilizar
esses processos terapêuticos e as consequências advindas
de sua utilização para a comprovação da
imortalidade da alma, o que alargaria substancialmente o potencial
de influência do espiritismo sobre a ciência. Apresentam,
sem sombra de dúvidas, enormes possibilidades de evidenciar
a sobrevivência da alma e chamar a atenção da
ciência para a dimensão energética do homem, a
intervenção e relação dos espíritos
com o mundo material e as potencialidades deste intercâmbio
(particularmente na produção de novos conhecimentos).
O Espiritismo dá sentido à vida diante da perspectiva
da morte e, a partir de sua visão de mundo, permite a consolação
e esperança no futuro.
NOVOS SIGNIFICADOS PARA A VIDA E
A MORTE
É possível, portanto, fazer uma releitura do processo
saúde-doença a partir da filosofia espírita.
A vida é a expressão de um fenômeno material e
espiritual, pois a mente é o espírito que interpreta
sensações, cria as ideias e sente as emoções
que através do pensamento e da linguagem exteriorizam os nossos
desejos. Para tanto, entre a dimensão física e espiritual
existe o perispírito.
Entretanto, somos apenas aquilo que nosso corpo físico nos
permite ser, e não tudo aquilo que nosso espírito é
ou já foi (ou gostaríamos de ser). O ser vivo está
sujeito à evolução, através de vidas sucessivas,
favorecendo a oportunidade de crescimento intelectual e moral, com
destino à perfeição. Nas lições
que vivencia, acertos e erros, aprimora habilidades, preferências,
virtudes e aptidões.
A consciência toma progressivamente conhecimento do Eu, do mundo
exterior e do seu significado. Desenvolvemos a consciência temporal
e, portanto, a noção de passado, presente e futuro (potencialidade
restrita à espécie humana e que nos diferencia dos demais
seres vivos). Usamos cada vez mais o nosso livre-arbítrio (ampliando-se
a responsabilidade). Daí dizermos que o processo evolutivo
é fundamentalmente intelectual e moral.
O espírito conquista paulatinamente a consciência da
espiritualidade que nos envolve, o que nos permite expandi-la a outras
dimensões.
Nossos pensamentos criam um ambiente psíquico, um campo mental,
onde estão esculpidas as imagens mentais que idealizamos com
mais persistência (de forma que convivemos materialmente com
nossos próprios desejos). As projeções de nossas
vibrações mentais indubitavelmente têm potencial
gerador de doenças e ao mesmo tempo de preservar ou restabelecer
a saúde, dentro dos limites impostos pelas Leis da Natureza.
Ao tratar da volta do espírito à vida corporal, Kardec
lida diretamente com o tema da morte (e, indiretamente, apresenta
uma concepção mais elaborada do processo mórbido).
A morte, na visão espírita, é apenas a volta
do ser "ao mundo dos Espíritos, donde se apartara
momentaneamente." ("O
Livro dos Espíritos", pergunta 149),
que mantém sua individualidade a partir da formação
do corpo espiritual. Parte levando consigo, deste mundo, apenas a
lembrança e o desejo de ir para um mundo melhor, "que
será cheia de doçura ou de amargor, conforme o uso que
ela fez da vida. Quanto mais pura for, melhor compreenderá
a futilidade do que deixa na Terra." (idem,
p. 150)
Uma separação que não é dolorosa para
o espírito, uma vez que "o corpo quase sempre sofre
mais durante a vida do que no momento da morte". Na verdade,
"os sofrimentos que algumas vezes se experimentam no instante
da morte são um gozo para o Espírito, que vê chegar
o termo do seu exílio. Na morte natural, a que sobrevém
pelo esgotamento dos órgãos, em consequência da
idade, o homem deixa a vida sem o perceber: é uma lâmpada
que se apaga por falta de óleo". (idem,
p. 154)
Uma separação que se origina a partir da ruptura (abrupta)
ou de um processo em que os laços energéticos que mantinham
unidos o espírito ao corpo vão se desatando, progressiva
e lentamente, dependendo do tipo de morte.
A maior contribuição que o espiritismo apresenta é
exatamente a sua visão positiva da morte. Como nos ensina Kardec
(comentário à questão
155):
"Durante a vida, o Espírito se acha preso ao corpo
pelo seu envoltório semimaterial ou perispírito. A morte
é a destruição do corpo somente, não a
desse outro invólucro, que do corpo se separa quando cessa
neste a vida orgânica. A observação demonstra
que, no instante da morte, o desprendimento do perispírito
não se completa subitamente; que, ao contrário, se opera
gradualmente e com uma lentidão muito variável conforme
os indivíduos. Em uns é bastante rápido, podendo
dizer-se que o momento da morte é mais ou menos o da libertação.
Em outros, naqueles sobretudo cuja vida é toda material e sensual,
o desprendimento é muito menos rápido, durando algumas
vezes dias, semanas e até meses, o que não implica existir,
no corpo, a menor vitalidade, nem a possibilidade de volver à
vida, mas uma simples afinidade com o Espírito, afinidade que
guarda sempre proporção com a preponderância que,
durante a vida, o Espírito deu à matéria. É,
com efeito, racional conceber-se que, quanto mais o Espírito
se haja identificado com a matéria, tanto mais penoso lhe seja
separar-se dela; ao passo que a atividade intelectual e moral, a elevação
dos pensamentos operam um começo de desprendimento, mesmo durante
a vida do corpo, de modo que, em chegando a morte, ele é quase
instantâneo. Tal o resultado dos estudos feitos em todos os
indivíduos que se têm podido observar por ocasião
da morte. Essas observações ainda provam que a afinidade,
persiste entre a alma e o corpo, em certos indivíduos, é,
às vezes, muito penosa, porquanto o Espírito pode experimentar
o horror da decomposição. Este caso, porém, é
excepcional e peculiar a certos gêneros de vida e a certos gêneros
de morte. Verifica-se com alguns suicidas".
A separação definitiva, muitas vezes, ocorre antes mesmo
da morte física, mantendo-se apenas algumas funções
orgânicas (o que dá novo sentido para compreender e condenar
a manutenção artificial da vida de forma penosa e desnecessária).
Mesmo em situações de morte violentas, a separação
é muito rápida, advindo um estado de inconsciência
com duração variável de acordo com o estágio
evolutivo de cada criatura.
Além disso, permite dar novos sentidos a nossa existência
e a vida em sociedade, permitindo uma nova dinâmica de relações
sociais. Ainda mais que vivemos, inegavelmente, uma crise do desenvolvimento.
O modelo hegemônico biomédico reduziu o conceito de saúde
à ausência de doença. Hoje já se sabe que
apenas o aumento do fluxo de recursos para serviços de saúde
causa pouco impacto nos indicadores de saúde. Enfrentamos seríssimos
problemas decorrentes da incorporação tecnológica
crescente e irracional. É preciso não esquecer Hipócrates
de Cós, o "pai da medicina", que viveu em 460 a.C.:
"O primeiro dever da medicina é de ajudar os doentes e
o segundo é não causar-lhes danos."
Mas a crise do modelo biomédico é parte da crise da
modernidade, que não conseguiu cumprir suas promessas de desenvolvimento:
há mais pobreza, mais concentração de riqueza,
mais contaminação e destruição ambiental,
sofrimento, violência, mais guerras...
O peso social das doenças, sequelas e mortes prematuras atuais
está cada vez menos vinculado a mudanças e expansão
dos serviços de saúde. Há evidências suficientes
de que intervenções e mudanças estruturais fora
da assistência médica têm maior potencialidade
de alterar tendências epidemiológicas.
Segundo a Carta de Otawa, amplamente difundida pela OMS, para a produção
de saúde é preciso associar um conjunto de iniciativas,
tais como a construção de políticas públicas
saudáveis, a criação de ambientes favoráveis
à saúde, o reforço da ação comunitária,
o desenvolvimento de habilidades pessoais e a reorientação
dos serviços de saúde.
Como vimos anteriormente, uma concepção de saúde
fundamentada na filosofia espírita parte, antes de tudo, do
conceito de fraternidade e justiça social, envidando esforços
para promover condições dignas de vida e acesso aos
serviços de atenção à saúde (prevenção,
promoção, assistência e reabilitação)
a todos os cidadãos.
Entende a saúde como "o resultante das adequadas condições
de alimentação, habitação, saneamento,
educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte,
emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso aos serviços
de saúde", como exposto no atual Código de
Ética Médica brasileiro. É inegável que
o espiritismo nos leva a considerar a nossa responsabilidade como
"co-construtores do universo" (JH
Pires). É, portanto, uma responsabilidade
do Estado, da sociedade e de cada um de nós, empreendermos
mecanismos solidários de cuidado, individuais e coletivos,
inclusive no tocante à proteção da natureza,
destinados à promoção da saúde e ao alívio
da dor e do sofrimento.
Outro ponto para reflexão é a postura em relação
ao doente. Entendo que é muito melhor compreende-lo como alguém
que precisa de solidariedade e não ser transformado em mercadoria
a ser explorada. Daí pode advir uma diferença fundamental
na maneira de lidar, cuidar e produzir saúde.
Mas o espiritismo se diferencia de outras correntes humanistas, comprometidas
com a vida, na medida em que agrega à nossa estrutura físico-mental
a dimensão energética e espiritual.
Uma visão mais ampla da vida, a partir da dinâmica evolutiva
concebida pela filosofia espírita, permite compreender a vida,
a saúde, a doença e a morte como processos efetivamente
regidos pelas leis da natureza. Saúde passa a ser uma capacidade
(ético-pessoal) e não um resultado, um estado mais ou
menos temporário de corpo, da mente ou do espírito.
A visão espírita, inexoravelmente, coloca em pauta o
tema da autonomia e da responsabilidade de cada sujeito encarnado
com o processo de manutenção da sua saúde (física
e mental). Dá, ainda, novo sentido para a vida e para morte,
superando o velho paradigma da medicina clínica no qual o saber
do "paciente" não faz parte do conhecimento científico
acumulado (evidência), nem sua livre vontade influencia na cura.
Leva-nos, portanto, a conceber o tema a partir de novos referenciais,
valorizando a responsabilização e consciência
sanitária.
Deve-se preferir a saúde substancial, como diz Berlinguer,
do que a saúde instrumental. Buscar o bem-estar, o sentir bem,
o estar no mundo mais saudável, do que uma vida restrita às
pressões com base em critérios de produtividade ou adaptação.
A fragilidade vivida conscientemente pelo homem, sua individualidade
e seu relacionamento com os demais fazem da experiência da dor,
da doença e da morte uma parte integrante de sua vida. A habilidade
de lidar com essa trinca passa a ser de fundamental importância
para sua saúde.
Desta concepção pode resultar uma nova postura ética,
comprometida com a ideia de que é melhor acrescentar vida aos
anos a serem vividos do que anos a uma vida precariamente vivida.
Mesmo quem está diante da morte, a partir deste referencial,
pode vivê-la com saúde.
O espiritismo permite pensar o cuidado integral à saúde
por uma nova ótica, um verdadeiro pacto pela vida!
Sem dicotomizar ou eleger como objeto exclusivo e prioritário
do cuidado com a saúde o corpo (ou seus órgãos),
a mente, a vontade, o autocuidado. Indo além, permite repensar
as terapias, a nossa responsabilidade individual, social (sanitária)
e com o meio ambiente. E a partir daí estabelecer novos paradigmas
para a saúde, que levem em consideração a necessidade
de estabelecer novos estilos de vida, fundamentados no estímulo
à autonomia, à constituição de sujeito
e à construção da cidadania, como nos ensinou
Paulo Freire.
Isso é possível, mas passa também pelo resgate
da dimensão energética, de uma nova dimensão
espiritual e na busca de mais qualidade de vida, pois é sempre
melhor acrescentar vida aos anos a serem vividos do que anos à
vida precariamente vivida.
Nesta perspectiva, passamos a compreender a saúde como Paccha
Mama, para quem "a saúde é a relação
harmônica do individuo consigo mesmo, com a natureza e com os
demais, na busca de uma tranquilidade espiritual". Quando
nos preocupamos com o outro, com a sociedade, nos transformamos. Cuidar
do outro nos revela a nós mesmo. Quando conhecemos o outro,
conhecemos a nós mesmos. Se o reino estivesse somente no interior,
poderíamos abandonar o mundo e viver apenas em meditação.
O amor é aquilo que o ser humano tem de mais interior e, ao
mesmo tempo, ele tem consequências no mundo exterior.
Se é tão fácil, por que complicamos tanto? O
Dalai Lama proporcionou um importante ensinamento ao tentar responder
uma simples questão: o que mais te surpreende na Humanidade?
Ele respondeu: "Os homens... Porque perdem a saúde
para juntar dinheiro, depois perdem dinheiro para recuperar a saúde.
E por pensarem ansiosamente no futuro, esquecem-se do presente de
tal forma que acabam por não viver nem o presente nem o futuro.
E vivem como se nunca fossem morrer... e morrem como se nunca tivessem
vivido".
Outros temas relacionados à saúde e à doença
poderiam ser discutidos sob uma lente muito maior proporcionada pela
dimensão espiritual e energética. Não tivemos,
neste trabalho, o objetivo de desenvolvê-los. Novos e velhos
desafios se abrem para a humanidade. Temas como o processo de envelhecimento,
a violência como problema de saúde, a saúde e
a desigualdade social, a incorporação tecnológica,
novos modelos assistenciais e terapêuticos, a saúde mental,
a mediunidade, as questões da bioética, apenas para
citar alguns exemplos, são temas a serem explorados e que aqui,
dada a limitação de espaço, não puderam
ser tratadas (embora pretendamos analisá-los futuramente).
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de 2007, em Santos-SP.
- http://www.viasantos.com/pense/arquivo/1383.html
Ademar Arthur Chioro dos Reis,
médico especializado em saúde pública, foi Secretário
de Saúde de São Bernardo do Campo-SP. Membro do Centro
de Pesquisa e Documentação Espírita (CPDoc), foi
presidente do CE Allan Kardec, de Santos-SP e presidente do Departamento
de Mocidade da União Municipal Espírita de Santos. Escreveu
os livros "Magnetismo e Vitalismo" e "Mecanismos da Mediunidade
- Processo de Comunicação Mediúnica".
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