Resumo:
- O artigo tem como objetivo refletir sobre o modo
como as novas concepções de mente esgarçam as
fronteiras entre homens, animais e máquinas, colocando em questão
a subjetividade e o lugar do humano no mundo. Na primeira seção,
o texto mostra como na modernidade a mente era exclusiva do sujeito,
e garantia a sua singularidade e superioridade sobre animais e máquinas.
Na segunda parte, discute-se como pesquisadores de áreas como
ciências cognitivas, neurociências, inteligência
artificial e filosofia têm dissociado a inteligência e
o pensamento da existência de uma consciência de si, trazendo
questionamentos sobre o que é pensar? e quem pensa?
Ciências & Cognição
2006; Vol. 09.
“[Diz o médico:] Sr. Garson Poole,
proprietário da Tri-Plan Eletrônica. (...) É
um homem de sucesso, sr. Poole. Mas o senhor não é
um homem. É uma formiga elétrica”.
A formiga elétrica, Philip K. Dick
Na segunda metade do século XX, os estudos
sobre a organização dos seres vivos e dos maquínicos
convergem em torno dos conceitos de informação, código
e programa, desafiando de modo inquietante as concepções
modernas de humano.
No século XIX, a biologia invocou a idéia
de vitalismo – um princípio de origem desconhecida, uma
força ou energia vital intrínseca aos seres vivos –
defendendo a irredutibilidade da vida às explicações
físico-químicas. O homem foi então definido como
um ser natural, pensante e de vontade livre, características
que demarcavam sua superioridade sobre animais e máquinas.
Hoje, ao explicar os mecanismos da vida em termos de interações
moleculares e programa genético, a biologia molecular elimina
a possibilidade de vitalismo, produzindo uma “maquinação”
do humano a nível bioquímico. Quando aplicadas a seres
vivos, as noções de informação, código
e programa referem-se à constituição bioquímica
do corpo orgânico. Situam-se no ponto de articulação
entre matéria, vida e pensamento, trazendo questionamentos
sobre organização e evolução do mundo
vivo.
Nesse processo de automatização do humano,
o que interessa a este artigo é analisar as mudanças
nas concepções de mente e suas implicações
para os processos subjetivos. Como se sabe, na modernidade, a mente
era exclusiva do sujeito e garantia sua superioridade sobre animais
e máquinas. Hoje, as ciências cognitivas têm demonstrado
que 95% das atividades que pensávamos depender de processos
da consciência, como razão e inteligência, são
realizadas automaticamente (Lakoff e Johnson, 1999). Por sua vez,
filósofos como Daniel Dennett (1996) propõem que há
seres que realizam comportamentos inteligentes sem ter nenhum tipo
de consciência. Dennett argumenta que seres vivos e maquínicos
devem ser tratados como sistemas que processam informações,
diferindo apenas em grau de complexidade e não de natureza.
Estas concepções mostram como cognição
e inteligência têm sido dissociadas da consciência
de si, deixando de ser faculdades exclusivas do humano. Deste modo,
a faculdade de pensar é estendida a animais e máquinas,
colocando em xeque o sujeito pensante e autônomo da modernidade.
O artigo tem como objetivo refletir
sobre o modo como as novas concepções de mente das
ciências cognitivas, neurociências e filosofia esgarçam
as fronteiras ontológicas modernas entre homens, animais
e máquinas, trazendo questionamentos sobre o que é
pensar? e quem pensa? hoje.
O espelho da mente cartesiano
Para a tradição filosófica ocidental, o pensamento,
a inteligência e os processos cognitivos são faculdades
exclusivas dos humanos. Inaugurando o racionalismo clássico,
René Descartes segue um longo processo dedutivo para chegar
ao cogito “Penso, logo existo”. A evidência do “eu
penso” cartesiano está fundada na singularidade do modo
de ser do pensamento: ele é a única coisa que para existir
basta que seja pensada [1]. O cogito
cartesiano descobre que todo pensamento é pensado (Foucault,
1992). Esse modo de ser do pensamento implica a existência
de uma consciência transparente a si mesma, sempre presente
a si. Essa consciência presente a si garante a reflexividade
do ato de representar. Pois, a consciência apreende tanto o
mundo quanto a si mesma no ato de representação. É
nesse sentido que Richard Rorty (1994)
define a mente cartesiana como um espelho.
Em Descartes é precisamente a faculdade de
pensar que difere e garante a superioridade dos homens sobre animais
e máquinas. O pensador define os animais como sistemas mecânicos
de ações reflexas. Sendo assim, os animais não
diferem em nada dos autômatos:
“se houvesse máquinas assim, que tivessem
os órgãos e a figura de um macaco, ou de qualquer
outro animal sem razão, não disporíamos de
nenhum meio para reconhecer que elas não seriam em tudo da
mesma natureza que esses animais.” (1641/1996:
111)
Entretanto, um autômato que emulasse o corpo humano e suas ações
poderia ser distinguido dos verdadeiros humanos por dois modos. O
primeiro é que não seriam capazes de usar nenhum código
lingüístico para declarar aos outros seus pensamentos.
E o segundo é que não agem pelo pensamento, mas somente
pela disposição de seus órgãos. Cabe ressaltar
que os dois critérios de diferenciação entre
homens e autômatos propostos por Descartes referem-se à
faculdade de representar. A capacidade de dar respostas a situações
inusitadas e a habilidade de agir pelo conhecimento (que implica a
constituição de cadeias de razões, baseadas nas
idéias claras e distintas) implicam o uso da representação,
conferido pela alma racional. A comparação entre homens
e autômatos ratifica a absoluta prioridade da mente para a singularidade
humana no pensamento cartesiano.
O cogito cartesiano sofre um forte abalo já
na Modernidade. Michel Foucault (1992)
explica que na curva dos séculos XVIII e XIX surgem novos procedimentos
de investigação empírica que não se reduzem
a formalizações lógico-matemáticas, tendo
suas condições de investigação no exterior
da representação. As ciências empíricas
como biologia, economia e filologia não podem prescindir do
mundo físico, do contexto e da ação do tempo
em suas investigações. Seus objetos de estudo –
a vida, o trabalho e a linguagem – possuem espessura e temporalidade,
escapando do espaço bidimensional do quadro representacionista
clássico.
Quando o homem é pensado em relação
às suas condições concretas de existência
corporal (vida) e do contexto histórico e cultural em que está
inserido (trabalho e linguagem), revela-se que não é
apenas sujeito do conhecimento, mas também seu objeto. O sujeito
moderno está no mundo e sofre determinações da
natureza (a vida) e da cultura (o trabalho e a linguagem). Ao ser
submetido às suas reais condições de existência,
o homem descobre sua vinculação com a natureza “bestial”
dos animais e com as organizações produtivas e lingüísticas.
Esses vínculos – a vida, o trabalho e a linguagem –
revelam-se anteriores e exteriores ao indivíduo, rompendo com
a noção de total transparência a si do sujeito
cartesiano.
O sujeito moderno tem a sensação de
não estar em sintonia consigo mesmo porque desconhece a história
que o precede e condiciona o seu ser, porque seu corpo é possuído
por um desejo que age em segredo e lhe determina e, porque seu pensamento
se articula com conteúdos exteriores à consciência
(Foucault, 1992). História, corpo e inconsciente (pensemos
respectivamente nos trabalhos de Marx, Nietzsche e Freud) são
campos de saber externos à consciência e que, no entanto,
a determinam.
O pensamento moderno abre uma distância no interior do sujeito,
uma defasagem dele com ele mesmo. Mas, é precisamente aí
que reside toda a singularidade e a profundidade subjetiva do sujeito.
Ele é o único ser vivo de natureza racional, o único
a constituir cultura. É o pensamento racional que lhe permitirá
vencer as determinações impostas pela natureza e pela
cultura, assumir o comando de sua existência, descobrir a sua
verdade e construir a sociedade “civilizada”. Mais uma
vez são faculdades de pensar e ter consciência de si
que diferenciam o sujeito, conferindo-lhe superioridade sobre animais
e objetos do mundo.
Sistemas que processam informações
Desde a segunda metade do século XX, as ciências
cognitivas – que estudam as operações e processos
realizados pela mente – têm demonstrado que o pensamento
na maior parte das vezes opera independente dos estados conscientes.
Lakoff e Johnson (1999) contabilizam
que 95% das atividades que pensávamos depender de processos
da consciência, como razão e inteligência, são
realizadas automaticamente. Daniel Dennett, filósofo da Tufts
University fornece um bom exemplo. O pensador sugere que analisemos
a seguinte situação:
“como é, por exemplo, usar informações
sobre o fluxo óptico de formas da visão periférica
para ajustar a extensão do seu passo enquanto você
caminha por um terreno acidentado?”
(Dennett, 1996: 13)
Ele mesmo responde:
“isto não é como nada. Você
não pode prestar atenção a esse processo mesmo
se tentar. ... O que quer que aconteça nos humanos para governar
este tipo de comportamento – considerado inteligente –
não tem nenhuma relação com nossas mentes.”
(Dennett, 1996: 13) [2]
Para pensadores desse campo, a faculdade da razão
é evolutiva, surge das interações entre cérebro,
corpo e experiências com o ambiente. A razão faz uso
de nossa natureza animal. Não é a essência que
nos diferencia dos animais, mas o que nos coloca em continuidade com
eles.
Se por um lado, as ciências que estudam o pensamento humano
tendem a automatizá-lo, afirmando que há processos mentais
sem consciência, por outro lado, os estudos de inteligência
artificial tendem a modelizar ações cognitivas que antes
eram exclusivas dos humanos, como por exemplo, atividades mentais
que dependem da tomada de decisões e do raciocínio lógico-formal
– como jogar xadrez.
A inteligência torna-se um atributo concedido
também às máquinas e o comportamento inteligente
não depende da consciência.
Da mente à instância intencional
Daniel Dennett é um dos pensadores da atualidade
que se dedica ao estudo dos processos mentais. Argumenta que, como
todo organismo sobrevive da troca de informação com
o ambiente, o objetivo da mente é procurar pistas no presente
que antecipem ocorrências futuras e decidir sobre as melhores
opções. Sob este ponto de vista, existem animais e máquinas
que, assim como os humanos, produzem antecipações. Se
os humanos exibem comportamento inteligente ao realizar tarefas automáticas
nada impede de pensar que outras entidades que agem de modo programado
também possuam mentes. Como não se pode ter acesso aos
processos que ocorrem em outras entidades, como distinguir um ser
que tenha mente, mas não tenha a capacidade de se comunicar
e dizer o que pensa, de um ser que não tenha mente nenhuma?
Sua hipótese é que devem existir entidades que tenham
mentes, mas que não tenham capacidade lingüística
e, neste caso, não podem expor o que estão pensando.
Dennett supõe que existem outros modos de pensamento distintos
dos do humano. Para estudar esses outros tipos de mentes biológicas
e artificiais, Dennett propõe que todo sistema que exibe comportamento
inteligente age segundo um fim, devendo ser tratado como um sistema
intencional. É preciso interpretar o comportamento do outro
e atribuir-lhe intencionalidade.
Tradicionalmente a filosofia entende intencionalidade
[3] como uma característica de
nossos estados mentais. Segundo o filósofo John Searle os fenômenos
mentais são causados por processos que têm lugar no cérebro
sendo justamente características do cérebro. Portanto,
a intencionalidade se associa à consciência original
(de nós mesmos) e à consciência derivada (acerca
do mundo). Searle destaca ainda que a consciência é específica
de organismos biológicos. Em sua proposta de estender aos não-humanos
a capacidade de ter intencionalidade, Daniel Dennett dissocia intencionalidade
de consciência e a associa à exibição de
comportamento inteligente ou realização de atividades
cognitivas. Cria o conceito de instância intencional, que define
como “a estratégia de interpretar o comportamento de
uma entidade (pessoa, animal, artefato, qualquer coisa) tratando-a
como se existisse um agente racional que governasse suas ‘opções'
de ‘ação' em ‘consideração'
a suas ‘crenças' e ‘desejos'” (Dennett,
1996: 27). Seguindo esta linha de raciocínio John MacCarthy,
o criador do termo inteligência artificial, afirma que até
mesmo máquinas extremamente simples como termostatos têm
crenças. Ao ser interrogado sobre quais as crenças de
seu termostato, MacCarthy responde: “O meu termostato tem três
crenças - está demasiado quente aqui, está demasiado
frio aqui e está bem aqui” (Apud
Searle, 1987: 38).
O argumento de Dennett fundamenta-se na suposição
de que a mente humana evoluiu de sistemas mais simples como, por exemplo,
as macromoléculas e os sistemas imunológico e metabólico.
Tais sistemas realizam tarefas extremamente necessárias à
sua organização auto-reguladora, auto-protetora e auto-replicadora.
No entanto, nesse nível embora haja comportamento inteligente,
não há nenhuma consciência. As macromoléculas
sequer estão vivas. A intencionalidade aqui demonstrada é
falsa. Para Dennett:
“Se as mentes humanas são produtos
não-milagrosos da evolução, então elas
são, necessariamente, artefatos, e todos os seus poderes
devem ter no fundo uma explicação ‘mecânica'”
O ser humano para Dennett é composto por micro-sistemas
intencionais (homúnculos), cada um responsável por uma
atividade. O corpo organiza-se a partir da disposição
e interação entre micro-sistemas. A consciência
surge a partir de uma rede distribuída pelos órgãos,
envolvendo corpo, cérebro e suas interações com
o meio ambiente. Não há soberania do cérebro
sobre os outros órgãos. Também os estados de
sensibilidade do ser vivo são decompostos em termos puramente
algorítmicos. Estados emocionais, perceptivos e de memória
exibem alvo sem necessariamente serem intencionais, no sentido filosófico
tradicional (Dennett, 1996).
Pela teoria de Dennett todas as entidades que existem
são sistemas que trocam informações com o ambiente.
Neste âmbito não há mais objeto submetido aos
métodos de conhecimento, não existe mais o sujeito do
conhecimento, nem profundidade subjetiva. O ser humano é mais
um sistema que troca informações em seu meio ambiente
de acordo com um programa genético projetado pela seleção
natural. Dennett defende a existência de inteligência
e cognição independentes de consciência de si.
A aposta é que existem processos mentais sem consciência
e sem sujeito. Os sistemas intencionais permitem falar de agentes
atuantes em processos de pensamento, mas não em sujeitos.
Download da mente
Pensadores como Daniel Dennett e Lakoff e Johnson
explicam a mente como o resultado de um longo processo evolutivo que
envolve as relações entre corpo e cérebro e suas
interações com o ambiente. Para eles a mente é
corporificada e depende da história biológica e cultural
vivenciada em situações concretas pelos seres.
Já Hans Paul Moravec e Marvin Minsky, cientistas
do Massachusetts Institute of Technology – MIT, defendem a tese
conhecida como inteligência artificial forte
[4]. Eles definem processos mentais como a manipulação
de representações simbólicas de acordo com regras
da lógica formal. Segundo esta visão, a simulação
de computador é capaz de modelar inteiramente a vida mental
humana. A correspondência entre cérebro e computador
baseia-se na concepção funcionalista da mente: a idéia
de que emoções e sentimentos como dor, medo, ciúmes
não se definem como experiências sensíveis ou
eventos físicos no cérebro, mas por seu papel funcional
abstrato. Se a atividade cognitiva depende principalmente de meios
formais e representacionais, a ação concreta sobre o
mundo não é fundamental para o pensamento. Esses pesquisadores
alegam que máquinas são capazes de experimentar estados
mentais cognitivos genuínos e que é possível
construir um computador com emoções e consciência
reais.
Por este ponto de vista, não há diferença
essencial ou demarcações absolutas entre existência
corporal e simulação no computador. O desdobramento
máximo do humano como sistema que processa informações
é a crença de que é possível realizar
a transmigração – conhecida como download –
da mente para o computador.
As possibilidades de modelização da
mente humana no computador problematizam as articulações
entre pensamento e matéria, consciência e cognição,
mente e intencionalidade. Embora não constitua objetivo desta
pesquisa aprofundar a problemática que envolve as delimitações
entre inteligência humana e inteligência artificial, convém
ressaltar algumas das questões fundamentais que estão
aqui associadas: o que é pensar, o que é a consciência?,
como é possível conhecer?, quem pensa?, quem tem consciência?
. A importância dessas questões é que ao problematizar
as fronteiras que caracterizavam o humano como um ser natural e pensante,
o desenvolvimento tecnocientífico afirma seu vigor em interrogar
o humano e seu lugar no mundo.
O filósofo John Searle é um dos principais
detratores da inteligência artificial forte. Considera que o
zumbi é a figura que melhor define a concepção
de humano postulada por essa abordagem (1998).
Argumenta que estas correntes de pensamento não explicam os
qualia – as sensações qualitativas de
sensibilidade que afetam os humanos quando submetidos a estímulos
tais como os provocados pelo sabor de um vinho, fragrância de
um perfume, visão do céu estrelado, beijo da pessoa
amada. A questão é como esses processos subjetivos e
qualitativos poderiam ser causados por fenômenos físicos
tais como descargas neuronais eletroquímicas que ocorrem nas
sinapses dos neurônios. Os processos subjetivos tornam-se a
grande interrogação sobre a relação entre
vida, corpo e pensamento. Os qualia parecem ser o último
reduto dos processos subjetivos e mantêm acesa a última
chama da esperança de uma diferença qualitativa entre
os seres vivos superiores e as máquinas. Para investigar essas
interrogações é preciso compreender de que modo
os processos bio-físico-químicos podem originar os estados
de sensibilidade. António Damásio, neurologista português
naturalizado americano, é um dos cientistas que tem se dedicado
ao problema.
Uma mente, um corpo
Damásio já havia mostrado em O
erro de Descartes (1996) que
sentimentos e emoções articulam-se diretamente com nossos
estados corporais, constituindo um elo essencial entre corpo e consciência.
Em O mistério da consciência (2000)
disserta sobre a natureza física da consciência e descreve
o modo como ela é construída no cérebro humano.
Damásio mostra que a capacidade do corpo para sentir estímulos
e reagir aos seus próprios processos e ao meio é a chave
para o fenômeno da consciência. Para o neurologista português,
dois problemas constituem a questão da consciência. O
primeiro refere-se ao modo como o cérebro engendra padrões
mentais, que Damásio denomina, “as imagens de um objeto”
(2000: 24-5), sendo que objeto pode ser
uma pessoa, um lugar, uma melodia, uma dor de dente ou um estado de
êxtase. Imagem designa um padrão mental em qualquer modalidade
sensorial, como, por exemplo, uma imagem sonora, uma imagem tátil,
a imagem de um estado de bem-estar (2000).
Estas imagens comunicam não apenas características físicas
do objeto, como também afetos em relação a ele
e à rede de relações deste objeto em meio a outros
objetos. Metaforicamente o autor revela que este primeiro problema
da consciência é o problema de como se obtém um
“filme no cérebro”, entendendo que o filme terá
tantas trilhas sensoriais quantos são os portais sensoriais
do sistema nervoso – visão, audição, paladar,
olfato, tato, sensações viscerais, entre outros. Para
resolver este problema é preciso descobrir como as células
nervosas produzem padrões neurais e como o cérebro consegue
converter esses padrões neurais nos padrões mentais
que constituem o nível mais elevado de fenômeno biológico,
designado por imagens. Para isso, é necessário que se
aborde a questão filosófica dos qualia. Embora
não tenha explicação científica para os
qualia, Damásio não os renega:
“Acredito que essas qualidades serão
um dia explicadas pela neurobiologia, embora neste momento a explicação
neurobiológica seja incompleta e lacunar.” (2000:
25)
O segundo problema relativo à consciência
refere-se ao modo como paralelamente à produção
de padrões mentais, o cérebro também engendra
um sentido de self no ato de conhecer. Como o próprio
autor destaca sua interpretação de consciência
é diferente da de outros autores, entre eles Daniel Dennett,
que consideram a consciência como um fenômeno pós-lingüístico.
No entender de Damásio “A consciência é
um fenômeno inteiramente privado, de primeira pessoa, que ocorre
como parte do processo privado de primeira pessoa, que denominamos
mente” (2000: 425). A mente, por
sua vez, “constitui-se de operações conscientes
e inconscientes e refere-se a um processo e não a uma coisa.
O que conhecemos como mente, com a ajuda da consciência, é
um fluxo contínuo de padrões mentais, e muitos deles
se revelam logicamente inter-relacionados”
(2000: 426). Consciência e mente vinculam-se a comportamentos
externos e podem ser observados por terceiras pessoas. A consciência
é dividida em dois níveis de fenômenos. O tipo
mais simples, a consciência central, fornece ao organismo um
sentido de self concernente a um momento – agora – e a
um lugar – aqui. O campo de ação da consciência
central é o aqui e o agora. Ela não ilumina o futuro
e, do passado permite apenas vislumbrar vagamente o instante imediatamente
anterior. O outro tipo de consciência - a consciência
ampliada – possui muitos níveis e graus, fornecendo ao
organismo um complexo sentido de self: uma identidade e uma
pessoa, você ou eu. Situa essa pessoa em um ponto histórico
individual, ricamente ciente do passado vivido e do futuro antevisto,
e profundamente conhecedora do mundo além desse ponto. A consciência
central é um fenômeno biológico simples. Possui
apenas um nível de organização, é estável
no decorrer da vida do organismo, não é exclusivamente
humana e não depende da memória do raciocínio
ou da linguagem. A consciência ampliada é um fenômeno
biológico complexo, conta com vários níveis de
organização e evolui no decorrer da vida do organismo.
Damásio acredita que, em níveis simples, a consciência
ampliada também esteja presente em alguns não-humanos.
Aos dois tipos de consciência correspondem dois
tipos de self. O self central emerge da consciência central
e é uma entidade transitória, incessantemente recriada
para cada objeto com o qual o cérebro interage. A noção
tradicional de self está ligada à idéia
de identidade. É o self autobiográfico que
concatena as lembranças de situações e características
que constituem a biografia do organismo. Os dois tipos de self
são inter-relacionados e o self autobiográfico
emerge do self central (Damásio, 2000).
As conseqüências do pensamento de Damásio
são claras e incisivas: a consciência depende do corpo
em que está estabelecida. Não apenas existe conexão
entre emoção e consciência, como também
há relações estreitas entre ambas e o corpo.
A singularidade do self é explicitada pelo autor: “Podemos
nunca ter dado importância a essa relação simples,
mas é assim que é: uma pessoa, um corpo; uma mente,
um corpo – esse é um princípio básico”
(2000: 186). Damásio defende não
apenas a indissociabilidade entre corpo e mente, como também
discorda sobre a possibilidade do download da mente: “A ‘aparência'
da emoção pode ser simulada, mas o modo como os sentimentos
são sentidos não pode ser copiado em uma peça
de silício” (2000: 397).
Considerações finais
Vimos como a consciência reflexiva de Descartes
inspirou o sujeito presente a si. Ainda na modernidade, Nietzsche,
Marx e Freud são os principais articuladores de campos de saber
que irão tratar o corpo, a história e o inconsciente
como fatores exteriores que, no entanto, determinam a consciência.
O sujeito cartesiano, portador da consciência transparente a
si, entra em crise em prol de uma maior complexidade subjetiva do
humano. Hoje, ao estender as faculdades de cognição,
inteligência e pensamento a entidades destituídas de
consciência, as novas teorias sobre o humano geram uma nova
crise na consciência de si. Essa ruptura enevoa as fronteiras
do humano, ao conferir a animais e máquinas aquilo que na modernidade
nos diferenciava deles.
Para termos uma visão mais acurada das implicações
das novas concepções da mente, é preciso entender
seus efeitos éticos sobre a subjetividade. Tratar o humano
como um sistema que processa informações é liberá-lo
das questões éticas e responsabilidades morais. A idéia
de que o comportamento é gerado por reações químicas
e pode ter explicações fisiológicas, orienta
pesquisas no campo da naturalização da ética.
Esses estudos tentam associar a presença ou a ausência
de substâncias químicas a certos tipos de comportamento.
O amor estaria relacionado ao feromônio, a violência ao
excesso de serotonina. Em julgamentos de criminosos já se usa
como argumento de defesa alguma característica física
ou biológica que teria gerado a disfunção, como
o tamanho do córtex reduzido ou a quantidade excessiva de serotonina.
A idéia de programação como base do funcionamento
do organismo, do comportamento e do pensamento coloca em questão
a liberdade de vontade e o controle de si. O comportamento humano
é previamente determinado pelo código genético
e a quantidade de substâncias químicas presentes em nosso
metabolismo. Ao desnudar o humano, retirando-lhe as indumentárias
de razão, desejo, linguagem com que os modernos lhe haviam
adornado, o que sobra é a 'rude carne', mero suporte material
onde ocorrem interações moleculares e trocas de sinais
neurossensoriais. A sombra da besta se desvanece não porque
tenhamos alcançado o estado máximo de civilização,
mas porque a intensidade no homem e no animal perde a cor. Não
há a besta no limiar da vida. Força e selvageria cedem
lugar à programação genética. O corpo,
tornado carne, é campo de experimentações para
misturas entre matéria viva e inerte, seres orgânicos
e maquínicos, interior e exterior.
Damásio, A. (1996) O erro de Descartes. (Trad.
Vicente, D e Segurado, G.). São Paulo: Companhia das Letras.
(Original publicado em 1994).
Damásio, A. (2000) O mistério da consciência.
(Trad. Motta, L.T.). São Paulo: Companhia das Letras. (Original
publicado em 1999).
Dennett, D. (1996) Kinds of minds. Nova York: Basic
Books.
Dennett, D. (1998). A perigosa idéia de Darwin:
a evolução e os significados da vida. (Trad. Rodrigues,
T.M.). Rio de Janeiro: Editora Rocco. (Original publicado em 1995).
Descartes, R. (1996). O discurso do método .
Em: Coleção Os Pensadores (Descartes). (Trad. Guinsburg,
J. e Prado Jr., Bento). São Paulo: Editora Nova Cultural. (Original
publicado em 1641)
Foucault, M. (1992). As palavras e as coisas. (Trad.
Muchail, S.T.) São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora. (Original
publicado em 1966).
Lakoff, G. e Johnson, M. (1999). Philosophy in the
flesh: the embodied mind and its challenge to western thought. Nova
York : Basic Books.
Moravec, H. P. (1988). Mind children: the future of
robot and human intelligence. Massachusetts: Harvard University Press.
Rorty, R. (1994). A filosofia e o espelho da natureza.
(Trad. Trânsito, A.). Rio de Janeiro: Editora Relume-Dumará.
(Original publicado em 1979)
Searle, J. (1987). Rev. Mente cérebro e ciência.
(Trad. Morão, A.). Lisboa: Edições 70. (Original
publicado em 1984).
Searle, J. (1998). O mistério da consciência.
(Trad. Uema, A.Y.P. e Safatle, V.). São Paulo: Paz e Terra. (Original
publicado em 1997).
(1) Como se sabe, para demonstrar racionalmente a existência
de todas as outras coisas do mundo físico e a possibilidade do
conhecimento humano, o filósofo recorre à existência
de Deus, garantia última de qualquer subsistência e, portanto,
fundamento absoluto da objetividade.
(2) Tradução minha. No original: “What
is it like, for instance, to use information about the optic flow of
shapes in peripheral vision to adjust the lenght of your stride as you
walk across rough terrain?” e “It isn't like anything. You
can't pay attention to this process even if you try. ...; whatever happened
in us to govern these clever behaviors wasn't a part of our mental lives
at all.
(3) John Searle define intencionalidade como “a
característica pela qual os nossos estados mentais se dirigem
a, ou são acerca de, ou se referem a, ou são de objetos
e estados de coisas no mundo diferentes deles mesmos. ... Intencionalidade
não se refere somente a intenções, mas também
a crenças, desejos, esperanças, temores, amor, ódio,
prazer ..., e a todos aqueles estados mentais (quer conscientes ou inconscientes)
que se referem a, ou são acerca do Mundo, diverso da mente”.
Searle, J. Rev. Mente, Cérebro e Ciência. Lisboa: Edições
70, 1987, p 21.
(4) Já para a inteligência artificial
fraca o computador é uma ferramenta útil apenas para simular
a mente, favorecendo as pesquisas sobre os processos mentais. Searle,
J. O Mistério da consciência. São Paulo: Editora
Paz e Terra , 1998, p. 11.