Francisco Razzo
> Um legítimo filho da mãe - Do ponto de
vista ontológico o direito à vida antecede todos os outros
direitos
Um dos argumentos
para descriminalizar o aborto consiste em tratar o tema como decisão
de foro íntimo da mulher. Diz o defensor do aborto: “A
decisão cabe à gestante. O Estado não deveria
se intrometer num assunto da esfera íntima do indivíduo”.
A força aparente desse tipo de argumento está na estratégia
de não precisar lidar com a polêmica acerca do estatuto
antropológico e moral do embrião e, a partir disso,
focar exclusivamente na autonomia do corpo da mulher. A mulher, proprietária
soberana do seu corpo, é a única responsável
pela decisão. O embrião não passa de um intruso.
Se ela deseja abortar, nada deverá impedi-la.
A analogia padrão usada para sustentar esse argumento
é a do assaltante: análogo ao caso do intruso de uma
propriedade privada, a gestante estaria no mesmo nível do dono
ao expulsar um intruso de sua propriedade para se defender. Em última
instância, liberar o aborto garantiria ao indivíduo a
total responsabilidade moral e legal de se proteger. A sociedade,
mediante o poder do Estado, não tem nada com isso (pelo menos
até a hora de pagar a conta). Alega o defensor do aborto: assim
como a decisão de levar adiante a gravidez implica a responsabilidade
exclusiva da mãe em relação ao filho, a decisão
pelo aborto cabe igualmente à gestante.
Do
ponto de vista ontológico — e não cronológico
—, o direito à vida antecede todos os outros direitos
Esse argumento traz a aparente vantagem
de contornar o problema do estatuto do embrião: tanto a mulher
como o feto gozam do direito à vida. Ambos são plenamente
pessoas. Isso não se discute. Porém, mesmo o feto sendo
plenamente uma pessoa, isso não quer dizer que a mulher deverá
ser condenada — moral e criminalmente — por decidir não
levar adiante sua gravidez. Sendo assim, a mulher, se assim desejar,
teria pleno direito de violar o direito do feto à vida caso
ele violasse o direito da mulher à liberdade, à privacidade
e à integridade do seu corpo. O feto, tal como o intruso de
uma propriedade, deveria ser igualmente responsabilizado como agressor
pelo que faz. E cumprir sua inevitável sentença de morte.
Há dois grandes problemas com esse argumento.
Primeiro: o argumento da autonomia
do corpo não exclui a dificuldade de que, se o feto for realmente
uma pessoa, então o aborto fere um direito fundamental: o
direito à vida — sobretudo a vida de um completo inocente.
O direito à vida se impõe como condição
necessária para todos os outros direitos. Do ponto de vista
ontológico — e não cronológico —,
o direito à vida antecede todos os outros direitos: o direito
à privacidade, o direito à liberdade, o direito à
propriedade privada e o direito à integridade do corpo próprio.
A possibilidade de qualquer pessoa gozar de tais direitos depende
desse respeito radical à vida.
Segundo: a fraqueza da analogia do invasor está no fato de
o feto ser moral e criminalmente inocente, enquanto um assaltante
não. Diferentemente de um intruso, o embrião não
desenvolveu a capacidade de agir segundo sua vontade. Ele não
escolheu invadir e prejudicar o corpo da mulher. Assim como uma
criança, o embrião não tem qualquer capacidade
de responsabilidade até se tornar um adulto. Por sua vez,
um assaltante, ao ter praticado por iniciativa própria um
ato deliberadamente violento, não goza de qualquer relação
com o dono da propriedade. Do embrião, pelo contrário,
emerge uma relação antropológica fundamental:
não ser completamente o estranho invasor, mas ser o filho
legítimo da mãe.
Francisco Razzo, mestre em Filosofia
pela PUC-SP, é professor de Filosofia.
Fonte: http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/artigos/um-legitimo-filho-da-mae-4z1op1mq562962x6hczypfkxl
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