A comunidade de judeus ultra-ortodoxos em Israel tem meio milhão
de integrantes e está crescendo. Eles vivem em um universo
paralelo, sem contato com o mundo moderno, em comunidades fechadas
onde tudo gira em torno da religião. Somente uns poucos ousam
abandonar essa vida – e o preço pago por isso é
elevado.
Quando partiu, ela deixou tudo para trás –
até mesmo o seu nome. Ela não desejava mais ser conhecida
como Sarah, o nome que os seus pais lhe deram. Ela sentiu-se prisioneira
daquele nome durante muito tempo; um nome fazia com que ela se sentisse
diferente e sujeita a leis que outros lhe impuseram. Assim, ela deu
início a uma nova vida com um novo nome, Mayan, a palavra hebraica
para designar “fonte”.
Faz sete anos que Mayan “aterrissou no planeta
Terra”, conforme ela gosta de dizer. Mas Mayan, de 27 anos,
não se sente ainda totalmente em casa. Ela é uma mulher
israelense jovem e moderna. Mesmo assim, apesar da tatuagem de dragão
no ombro e da camisa larga que possibilita que se vislumbre ocasionalmente
o seu sutiã, sempre há momentos que traem o passado
dela. Por exemplo, quando os seus amigos falam sobre seriados antigos
de televisão, música popular tradicional ou as primeiras
paqueras na escola, Mayan é incapaz de participar da conversa.
Até os 17 anos de idade, Mayan viveu em um outro mundo, um
mundo onde essas coisas simplesmente não existiam.
Uma vida completamente focada na religião
O “universo paralelo” em que Mayan vivia anteriormente
possui cerca de 550 mil habitantes. Aquele é o mundo dos judeus
ortodoxos de Israel, cujos integrantes moram em comunidades fechadas
onde tudo gira em torno da religião. Eles distanciam-se radicalmente
da vida moderna. A televisão é desprezada, assim como
a música não religiosa, os telefones e a Internet. As
notícias que têm importância para a comunidade
são disseminadas por meio de cartazes colados em paredes. Meninos
e meninas frequentam a escola, mas a educação deles
concentra-se basicamente na religião.
“Todos sabem ler e escrever, mas o aprendizado
da matemática termina após a multiplicação
simples”, diz Mayan. “Quando deixei a escola, eu não
sabia sequer onde ficava Nova York, e eu nunca tinha visto um cachorro
porque ninguém tem animais de estimação”.
Segundo Irit Paneth, é esta ausência
de educação, sobremaneira, que faz com que seja quase
impossível que os indivíduos dessas comunidades que
trazem dúvidas quanto a esse estilo de vida rompam com essa
estrutura de crença inflexível. Paneth é uma
integrante da “Hillel – The Right to Choose” (“Hillel
– O Direito à Escolha”), uma organização
que ajuda aqueles que deixam a fé ortodoxa a começar
uma vida nova. “Não somos contrários à
religião”, explica Paneth. “Porém, a ultra-ortodoxia
é mais como um culto que incapacita intelectualmente as crianças
em nome da religião”. Ela diz que, para a maioria dos
jovens que rompem com a vida ortodoxa, o processo é como um
salto do alto de uma montanha em direção ao desconhecido.
“Eles chegam sem dinheiro, sem educação no sentido
clássico, sem qualquer chance de obterem emprego”, afirma
Paneth.
Um dos grupos de crescimento mais rápido
em Israel
Segundo estimativas governamentais, os judeus
ultraortodoxos formam um dos grupos de crescimento mais rápido
na sociedade israelense. O governo prevê que, até 2025,
cerca de 22% das crianças israelenses em idade escolar serão
oriundas de um desses grupos caracterizados por fortes sentimentos
religiosos.
No decorrer dos 19 anos de atuação da organização,
apenas cerca de 2.000 desses desertores religiosos recorreram à
Hillel. “Há dezenas de milhares que têm dúvidas
quanto à ortodoxia e desejam sair”, diz Paneth. Mas apenas
um pequeno número está pronto e disposto a fazer os
sacrifícios exigidos pela deserção. Por exemplo,
a maioria das famílias rompe completamente o contato com os
desertores. “Alguns organizam até velórios, como
se a filha ou o filho tivesse realmente morrido”.
Mayan cresceu em Beitar Illit, um assentamento ortodoxo
ao sul de Jerusalém, nas Montanhas da Judeia, no território
ocupado da Cisjordânia. Lá, os homens usam ternos negros
e chapéus de abas largas. As mulheres – cujo estilo de
vestuário tem como único objetivo denotar castidade
– usam blusas de gola alta, saias compridas e lenço de
cabeça. De forma similar, os homens não têm empregos.
Em vez disso, eles dedicam a vida ao estudo da Bíblia. As mulheres
alimentam as suas famílias e muitas vezes criam até
12 filhos.
A infância de Mayan terminou quando ela tinha
sete anos, assim que a sua mãe viúva casou novamente.
Daí por diante, ela teve que usar meias e calças compridas
debaixo da camisola na hora de dormir – até mesmo no
verão –, devido ao temor de que a sua coberta escorregasse
e expusesse a sua pele aos olhos do padrasto. E, como o padrasto não
era um parente com laços de sangue, ele não tinha permissão
de tocá-la. Na verdade, ela mal falava com ele.
Nenhuma preparação para a
puberdade
A puberdade foi um período de grande ansiedade
para Mayan. Quando os seios dela começaram a crescer, Mayan
achou que tinha câncer. O tabu quanto a tudo de natureza física
era tão grande que ela procurou o médico em vez de perguntar
à mãe o que estava acontecendo. A sua primeira menstruação
renovou a sua sensação de pânico e vergonha. Mayan
escondeu as suas roupas íntimas sujas. E quando a mãe
de Mayan encontrou as roupas, ela brigou com a filha, em vez de explicar
o que tinha acontecido. E se o padrasto tivesse encontrado a calcinha
suja?
Mayan começou a nutrir dúvidas a respeito
do seu estilo de vida quando foi transferida para uma escola no centro
de Jerusalém. Ela viu jovens vestidas na moda e percebeu que
os garotos “do outro mundo” olhavam para ela com interesse.
Aos 14 anos de idade, ela elaborou um plano junto com outras amigas
de escola curiosas. Elas disseram às suas mães que havia
uma reunião de um grupo de estudos. Mas, a seguir, as garotas
usaram o dinheiro que ganharam trabalhando como babás para
pegar um ônibus para o Luna Park, um parque de diversões
em Tel Aviv. Até hoje, Mayan fica radiante ao falar sobre as
luzes e a música. “Eu me senti como Cinderela. Foi como
se eu estivesse em um sonho”, conta a jovem.
Nenhum contato com a família ou os
amigos
Mas a segunda expedição que Mayan organizou com as amigas
terminou em desastre. Elas foram até a praia, mas o bronzeado
recente que adquiriram as traiu ao chegarem em casa. O resultado –
para Maia, pelo menos – foi uma odisseia de três anos
por vários reformatórios e famílias substitutas
ultraortodoxos. A insubordinação tinha que ser expurgada
dela – por meio de mentiras, se necessário fosse. “Nos
diziam constantemente que o mundo secular só estava aguardando
para nos transformar em prostitutas e escravas”, explica Mayan.
“Falaram também que no mundo moderno a única coisa
que nos aguardava era a toxicomania”.
Com a ajuda da Hillel, Mayan acabou conseguindo abandonar
a sua vida religiosa. A organização a ajudou financeiramente,
de forma que ela pudesse frequentar uma escola e obter o diploma de
conclusão do segundo grau. A seguir, Mayan concluiu o serviço
militar obrigatório que todas as mulheres israelenses precisam
prestar e, hoje em dia, ela estuda educação especial
em uma faculdade. Ela não tem mais nenhum contato com a família,
e suspeita que as suas irmãs pagaram um preço alto pela
sua deserção. “Quando os casamentos das minhas
irmãs forem arranjados, elas não conseguirão
os homens que merecem”, lamenta Mayan.
“Ficar teria significado a morte”
Toda semana, Shimy Levy, de 25 anos, tem que pagar novamente o preço
por ter abandonado a sua religião. Os rabinos do tribunal de
divórcio ultraortodoxo concederam a ele apenas duas horas por
semana com os dois filhos. E, toda vez que o tempo acaba, Levy percebe
uma vez mais o preço alto pago pela sua liberdade. “Mas
partir foi a decisão”, diz Levy. “Ficar teria significado
a morte mental – e eu não poderia ter me matado pelo
bem dos meus filhos”.
Levy cresceu dentro da fé ortodoxa, e –
assim como Mayan – ele passou a ter dúvidas quando chegou
à puberdade. As regras da escola religiosa na qual ele teria
passado o resto da vida o deixavam cada vez mais nervoso. “Com
o auxílio da Bíblia, eles conseguiam controlar todos
os mínimos detalhes da minha vida”, conta Levy. Ele cita
exemplos: de manhã, é preciso calçar o sapato
direito antes do esquerdo. A seguir, os sapatos têm que ser
amarrados de maneira oposta – o sapato esquerdo primeiro, depois
o direito. No sabbath, o indivíduo só pode comer peixe
se não tocar em nenhum osso. Na melhor das hipóteses,
um jovem só tem permissão para se encontrar duas vezes
com a sua potencial noiva – e depois disso apenas por uma hora
em uma conversa supervisionada. Depois, ele tem que decidir se casará
ou não com a moça.
Levy acabou comprando um pequeno rádio com
fones de ouvido. À noite, sob as cobertas, no dormitório
coletivo da yeshiva – a instituição religiosa
exclusiva para homens, na qual ele estudava –, ele escutava
o mundo externo. Mas, assim como Mayan, ele foi descoberto e passou
um período em reformatórios. Aos 20 anos de idade, ele
estava casado – em mais uma tentativa de conter o seu desejo
de liberdade. Durante quatro anos, ele desempenhou o papel de marido
e pai estritamente religioso antes de decidir que não conseguiria
mais viver daquela forma. Ele confessou à mulher que tinha
perdido a fé e pediu o divórcio.
“Se Deus existir, ele não deseja
isto”
A seguir, sem qualquer arrependimento especial, ele cortou as longas
tranças tradicionais sobre as têmporas que havia usado
a vida toda. “Já estava claro para mim que todos aqueles
rituais eram apenas gestos vazios”, conta ele.
Para Levy, o último ano foi marcado por uma
longa tentativa de recuperar o tempo perdido. Com grande rapidez,
ele desenvolveu um gosto pela música – incluindo tudo,
do conjunto Abba ao ritmo techno – e, depois de descobrir a
televisão, comprou um iPhone. Depois chegou o momento do primeiro
par de tênis, do primeiro filme, ad primeira costela de porco.
“Todos os dias eu experimentava algo que anteriormente me fora
excluído”, conta Levy. Ele já está preocupado
com a doutrinação a que os filhos estarão expostos.
“Toda vez que os vejo, eles me dizem que a família toda
está orando pelo meu retorno à fé”, diz
ele.
Irit Paneth, da organização Hillel,
ouve histórias como estas contadas por Mayan e Levy com um
sentimento misto. Ela diz que é claro que sente orgulho, “como
qualquer mãe”, quando os seus pupilos encontram seus
caminhos no mundo moderno. “Mas, e quanto aos vários
outros?”, questiona ela. “E quanto aqueles que não
são suficientemente fortes para se libertar? Eles têm
que se adaptar a uma vida na qual fingem que são religiosos
e que seguem as regras de uma religião na qual não acreditam.
Se Deus existir, ele não deseja isto".