Mary del Priore
> Quilombos e Quilombolas
Palmares foi o maior quilombo colonial,
nascido no bojo das guerras do açúcar; e antes dele,
contudo, movimentos de resistência já tinham se esboçado
na própria África. Entre 1568 e 1573, por exemplo, a
conhecida como Longa Marcha dos Jaga, que reuniu milhares de guerreiros,
homens e mulheres, para lutar contra o invasor português, teve
como pontos de apoio acampamentos fortificados denominados kilombos.
Deles emanava uma forte organização política,
religiosa e militar, capaz de agir em vastas regiões. Ao longo
de suas expedições, invadiram e devastaram o Congo;
seu objetivo era a destruição dos reinos aliados dos
europeus. Na Guiné, atuaram com o mesmo propósito, os
bijagós. Na América do Norte, Central e do Sul, os revoltosos
intitulavam-se palenques, mambises, cumbes, saramakas, cimarrones,
mocambolas ou quilombolas.
No Nordeste, desde os fins do século XVI, foram registradas
fugas de escravos. Sabia-se, então, que os fugitivos se concentravam
na área que se estendia entre o norte do curso inferior do
rio São Francisco, em Alagoas, às vizinhanças
do cabo São Agostinho, em Pernambuco. Tratava-se de uma região
acidentada, coberta de mata tropical onde abundava a palmeira pindoba,
daí o nome: Palmares. Em 1602, a primeira expedição
punitiva, comandada por Bartolomeu Bezerra, tentou pôr um fim
a esses ajuntamentos de fugidos. Em vão, pois, a partir de
1630, a desarticulação dos engenhos, graças às
guerras do açúcar, acelerou o crescimento do quilombo.
Nessa mesma década, na Bahia, os ajuntamentos de negros fugidos,
localizados no Rio Vermelho e Itapicuru, também cresciam. Durante
o tempo dos flamengos, quilombos menos importantes do que Palmares
formaram-se também na Paraíba. Reunidos em Craúnas
e Cumbe, os negros provocavam desordens, invadindo e queimando casas,
incitando a fuga de outros cativos. Entre 1644 e 1645, os holandeses,
sob o comando de Rodolfo Baro e João Blaer, atacaram Palmares.
Em 1671, o governador de Pernambuco, Fernão de Souza Coutinho,
chegou a escrever para Portugal afirmando que os negros eram muito
mais temidos do que os holandeses porque os moradores, “nas
suas mesmas casas e engenhos, têm inimigos que podem os conquistar”.
Como se vê, a percepção das tensões entre
os grupos livres e escravos era evidente!
Gaspar Barléu, cronista e amigo de Nassau, deixou uma detalhada
descrição da sociedade palmariana:
“Há dois desses
quilombos” – explica –,“o Palmares Grande
e o Palmares Pequeno. Este (Palmares Pequeno) é escondido
no meio das matas, às margens do rio Gungouí, afluente
do célebre Paraíba. Distam da Alagoas vinte léguas,
e da Paraíba, para o norte, seis. Conforme se diz, contam
6 mil habitantes, vivendo em choças numerosas, mas de construção
ligeira, feitas de ramos de capim. Por trás dessas habitações
há hortas e palmares. Imitam a religião dos portugueses,
assim como seu modo de governar: àquela presidem os seus
sacerdotes, e ao governo, os seus juízes. Qualquer escravo
que leva de outro lugar um negro cativo fica alforriado; mas consideram-se
emancipados todos quanto espontaneamente querem ser recebidos na
sociedade. As produções da terra são os frutos
das palmeiras, feijões, batatas-doces, mandioca, milho, cana-de-açúcar.
Por outro lado, o rio setentrional das Alagoas fornece peixes com
fartura. Deleitam-se os negros com carne de animais silvestres,
por não terem a dos domésticos. Duas vezes por ano,
faz-se o plantio e a colheita do milho [...] O Palmares Grande,
à raiz da serra Behé (serra da Barriga), dista trinta
léguas de Santo Amaro. São habitados por cerca de
5 mil negros que se estabeleceram nos vales. Moram em casas esparsas,
por eles construídas nas próprias entradas das matas,
onde há portas escusas que, em casos duvidosos, lhes dão
caminho, cortado através das brenhas, para fugirem e se esconderem.
Cautos, examinam por vigias se o inimigo se aproxima”.
Na época em que Barléu fez sua descrição,
os holandeses tramavam a invasão do quilombo. Chegaram a introduzir
em Palmares Pequeno Bartolomeu Lintz, encarregado de conhecer seu
modo de vida e, depois, atraiçoar os antigos companheiros.
Sua aceitação entre os quilombolas significa que estes
estavam acostumados com a convivência com outros grupos étnicos.
Problemas de ordem política retardaram o ataque, só
realizado em 1644. Tendo à frente Rodolfo Baro, a expedição
reunia cem tapuias bem armados. Palmares Grande foi parcialmente destruído,
a ferro e fogo, mas se recompôs com rapidez. Em 1675, contava
com cerca de 10 mil habitantes, tendo sofrido, depois da expulsão
dos holandeses, apenas escaramuças com bandos armados enviados
por senhores de engenho.
Por essa época, as autoridades portuguesas puseram em funcionamento
um plano de destruição sistemática de Palmares.
Expedições anuais às aldeias e missões
de reconhecimento visavam não apenas combater os rebeldes,
como também impedir os contatos entre os negros fugidos e os
colonos que os abasteciam de comida e armas. Entre 1670 e 1678, o
quilombo foi governado por Ganga Zumba, ou o Grande Senhor, que vivia
na cerca real do Macaco, erguida em 1642. Contra ele bateram-se Antônio
Bezerra, Cristóvão Lins e Manoel Lopes. No ataque desfechado
por este último, em 1675, a resistência fora organizada
com grande brilho pelo sobrinho de Ganga Zumba, Zumbi. Seu nome em
banto, nzumbi, referia-se ao seu provável papel de guerreiro
e líder espiritual na comunidade. Em 1676 e 1677, novas expedições
encontraram pela frente aldeias fortificadas que tinham sido queimadas
e abandonadas, técnica, aliás, largamente empregada
pelos rebeldes. Na última, chefiada por Fernão Carrilho,
foram feitos prisioneiros dois filhos de Ganga Zumba. Logo após
esse episódio, representantes de Palmares e portugueses se
encontraram em Recife para celebrar a paz. Em troca da legalização
das terras como sesmarias, Ganga Zumba prometeu devolver às
autoridades os membros da comunidade que não houvessem nascido
no quilombo. O desfecho, contudo, não agradou a alguns líderes
quilombolas, entre os quais Zumbi, que foi, então, proclamado
“rei”, ao passo que seu tio e ex-líder foi, em
1680, assassinado por envenenamento. Os quinze anos seguintes caracterizaram-se
por combates violentos, enquanto inúmeros capitães tentavam,
sem sucesso, dobrar os negros fugidos e seus aliados índios,
brancos, cafuzos e mulatos. Ao explicar por que tinham conseguido
expulsar os holandeses, fracassando, todavia, diante dos aquilombados,
Carrilho dizia: “na guerra contra os flamengos pelejava-se contra
homens”. Em Palmares, a luta era contra “o sofrimento”,
“a fome do sertão”, “o inacessível
dos montes”, “o impenetrável dos bosques”
e “os brutos que os habitam”. Ele descrevia Palmares como
“um bosque de tão excessiva grandeza [...] maior do que
Portugal”, no interior do qual se podia viver seguro, sem “domicílio
certo” para não ser descoberto. Ganhava aí a guerra
do mato. A mesma que vencera os flamengos. Em 1685, o bandeirante
paulista Domingos Jorge Velho pedia autorização para
conquistar os indígenas da capitania de Pernambuco. Em vez
de usá-lo contra os bugres, as autoridades decidiram lançá-lo
contra Palmares. Afinal, dizia-se dos paulistas, na época,
ser “gente bárbara e indômita que vive do que rouba”.
Seriam bárbaros contra bárbaros; ladrões contra
ladrões. Um acordo sobre o destino dos cativos e das terras
palmarinas foi selado entre o governador João da Cunha Souto
Maior e o bandeirante. O alvo era a destruição do quilombo
que resistia havia cem anos. Como prêmio, Velho podia reivindicar
os prisioneiros de guerra, fazendo jus à tradição
da guerra justa (possuía-se o que se conquistasse em batalhas
militares). Em fevereiro de 1694, depois de 42 dias sitiado, a cerca
real do Macaco caiu. Milhares de quilombolas morreram, outros tantos
foram capturados e vendidos para fora da capitania. Zumbi, que conseguira
escapar, foi capturado no dia 20 de novembro de 1695; executado, teve
a cabeça exposta em praça pública. Era uma advertência:
escravos deviam obedecer, e não desafiar o sistema escravista.
Os invasores encontraram casas, ruas, capelas, estátuas, estábulos
e até toscas construções, denominadas “palácios”;
além das plantações mencionadas pelo cronista
holandês, encontraram também fundições
e oficinas. Os conhecimentos que os índios detinham sobre o
fabrico de cerâmicas e redes, o processamento da mandioca e
técnicas de pesca foram muito importantes para dar autonomia
ao quilombo. Mas Palmares não foi único. Tampouco Zumbi.
Na época em que Palmares sucumbia, descobria-se ouro em Minas
Gerais. A drenagem sistemática de escravos para trabalhar nas
lavras provocou o mesmo tipo de resistência, e os quilombos
começaram a se multiplicar na região. A reação
das autoridades, familiarizadas com o problema, foi instantânea:
multiplicação de alvarás, bandos e proibições
combatiam esses perigosos ajuntamentos, assim como estimulavam a criação
de uma tropa especializada, os capitães do mato, encarregados
de perseguir os fugitivos. Os primeiros eram remunerados mediante
a apresentação de provas: o quilombola recuperado ou
sua cabeça decepada. Seu pagamento chamava-se tomadia. Uma
prática comum nessa função foi a utilização
de ex-escravos, pois eram conhecedores dos hábitos e dos comportamentos
dos fugitivos. Por isso mesmo, tais agentes repressores nunca gozavam
totalmente da confiança das autoridades. Houve capitães
do mato que preferiam usar escravos capturados para ganho e uso próprio
ou apresentar a cabeça de escravos que não eram fugitivos.
Outros, mais bem-sucedidos, como o renomado mestre de campo Inácio
Correia Pamplona, saíam-se bem na destruição
de quilombos mineiros, ganhando por isso direitos sobre terras doadas
pelas autoridades e sobre os escravos capturados. A recompensa pela
caça ao negro fugido era a sesmaria.
Tal como em Palmares, esses quilombos tinham chefias. A correspondência
dos governadores revela a existência de mocambos de “negros
alevantados com reis que os governam” ou menciona “mulatos
intitulados reis” com concubinas e filhos. Havia rainhas a quem
também era rendida obediência. Muitos deixaram seu nome
nos documentos de época: Bateiro, Cascalho ou Beiçudo.
Os quilombos que comandavam podiam ser imensos, considerados “quase
um reino”, caso do Ambrósio – próximo ao
atual Triângulo Mineiro –, com mil negros adultos, além
de mulheres e crianças. Os ajuntamentos de cativos fujões
também podiam ser pequenos, anônimos, capazes de se desfazer
antes da chegada de seus perseguidores. Era o caso daqueles que cresciam
nas serras em torno da capital, Vila Rica. Outros tantos se espalhavam
por Pitangui, Pedra Bonita, serra do Caraça, Campo Grande,
etc. Os moradores reagiam com pavor à presença dos quilombolas:
temiam saques, assaltos e depredações que, com o passar
do tempo, poderiam se tornar corriqueiros. Petições
eram encaminhadas às câmaras, alertando para a fuga de
cativos e, sobretudo, para o fato de que os fugidos andavam armados,
“ameaçando brancos e matando escravos destes que iam
apanhar lenha e capim”. Temendo pelas vidas em perigo, autoridades
tentavam controlar a situação brandindo punições
– cortar a mão ou o tendão de Aquiles de quilombolas
–, assim como sancionando proibições: venda de
chumbo e pólvora a negros e mestiços. O controle sobre
a ação dos quilombolas era tão ineficiente, que
houve episódios em que eles, armados de mosquetes, pistolas
e facas, bloquearam o tráfego de mercadorias em estradas importantes,
encarecendo produtos ou fazendo-os desaparecer dos mercados. Mas por
que uma ação tão sem barreiras? Em Minas Gerais
do século XVIII, percebe-se com nitidez uma característica
que se encontra em outras regiões do Brasil: a inserção
dos quilombos na vida comunitária. Apesar das violências
cometidas, os escravos fugidos costumavam conviver pacificamente com
certos grupos sociais, prestando serviços, comprando suprimentos
e fazendo escambo; no caso mineiro, diamantes e ouro contra alimentos
e bens variados.
Taberneiros e estalajadeiros, nas imediações de vilas
e arraiais, aproveitavam para fornecer-lhes armas, e suas vendas eram
os lugares ideais para informações sobre assaltos e
roubos. O fruto era dividido entre uns e outros. Usando, enfim, dos
mais variados expedientes, quilombolas tentavam ampliar sua rede de
relações sociais e econômicas: negociavam, trocavam,
vendiam, fazendo qualquer coisa para garantir sua autonomia e liberdade.
Isso os colocava ao lado de outros tantos homens e mulheres destituídos
de posses que, aos milhares, lutavam na Colônia contra as duras
condições de vida que lhes eram impostas pela Metrópole.
Em Mato Grosso, onde se achou ouro em 1719, às margens do rio
Coxipó, não faltaram escravos e, consequentemente, quilombos.
Utilizados nos serviços da mineração, agricultura
e pecuária, esses cativos também trabalhavam duro na
construção de obras públicas. Os que se encontravam
em regiões de fronteira, como Guaporé, eram estimulados
pelas autoridades espanholas a fugir, pois, do outro lado da linha
demarcatória, encontrariam a liberdade. Outra característica
da resistência negra nessa região foi a aliança
com os indígenas. Os quilombos de Quariterê, Sepotuba
e Rio Manso abrigavam índios, negros e mestiços –
os caburés – vivendo em harmonia. Entre os negros, havia
libertos convivendo com fugidos. Como em toda parte, os quilombolas
desenvolviam agricultura de subsistência, plantando milho, feijão,
mandioca, amendoim, cará, banana e ananases. Decorrente de
sua forma de organização, a produtividade alimentar
dessas comunidades contrastava com a penúria de cidades importantes
como Cuiabá, onde as crises de abastecimento eram frequentes.
O elevado número de negros livres nessas regiões de
fronteira dificultava a identificação de quilombolas.
Em cidades como Crixás, Pilar, Tocantins ou Arraias, em cujos
arredores instalaram-se quilombos, aproximadamente 70% da população
era constituída por “pretos”. Somavam-se a tudo
isso as características naturais de Goiás e o atual
Tocantins, marcadas pela presença de densa malha fluvial –
o Araguaia, o Tocantins e o Paranaíba do Sul e seus afluentes
– que permitia não se deixar rastros das fugas em canoa.
Chapadas e montanhas multiplicavam esconderijos, e a vegetação
de cerrado complicava as buscas dos capitães do mato.
No Rio Grande do Sul também foram registrados quilombos. Nessa
região, escravos contrabandeados da província espanhola
de Sacramento faziam funcionar estâncias e charqueadas. Em época
de abate de gado, o trabalho era estafante, mantendo-se os cativos
ocupados graças ao rebenque do capataz e goles de aguardente.
Topônimos como arroio do Quilombo ou ilha do Mocambo atestam
a resistência a um regime que, nos finais do século XVIII,
começa a dar mostras de impaciência com fugas e deserções.
Multiplicam-se, então, editais para a contratação
de capitães do mato capazes de deter “a multidão
de escravos fugidos metidos em quilombos”.
Na primeira metade do século XIX, a situação
era de pânico. Não faltaram informes de autoridades sobre
o terror em que viviam as populações:
“dia a dia se aumentam
os roubos, incêndios, assassinatos perpetrados pelos quilombolas,
que ousada e astuciosamente têm aterrado os pacíficos
moradores da serra dos Tapes e feito abandonar casas e lavouras,
tendo-se perdido muitas colheitas de milho e feijão, que
infalivelmente farão falta considerável no consumo
da população desse município”.
A queixa procedia, pois ataques a
propriedades, ranchos e chácaras, lutas entre quilombolas e
escravos, além de sequestros de mulheres, tinham se tornado
correntes. Mesmo os pequenos proprietários negros não
eram poupados.
No Rio de Janeiro, a situação não era diferente.
Rios, como o Iguaçu e o Sarapuí, no recôncavo
carioca, hidratavam engenhocas e engenhos, além de escoarem
considerável produção agrícola voltada
para o abastecimento da capital carioca. O encaminhamento de tais
produtos fazia-se por essas verdadeiras estradas fluviais, cruzadas
por barqueiros escravos, sob o comando de comerciantes. Pântanos,
afluentes e meandros consistiam, por sua vez, numa segunda estrada,
por onde hortaliças frescas e lenha abasteciam a cidade. E
conduziam para a liberdade. Liberdade nos quilombos que infestavam
a região de Iguaçu e que aparecem na documentação
do início do século XIX sob várias denominações:
do Iguassu, do Pilar, da Barra do Rio Sarapuí, do Bomba, da
Estrela e do Gabriel. Nessa região, os aquilombados desenvolviam
um ativo comércio de lenha e, graças aos serviços
prestados e trocados com vendeiros, escravos remadores, libertos donos
de embarcações, pequenos lavradores, fazendeiros e cativos
de propriedades, mantinham sua autonomia. De suas roças de
feijão, banana, batata-doce e cana enviavam, através
dessa rede de contatos, produtos para abastecer pequenos mercados
ou a mesa do grande proprietário de terras. Adquiriam, em troca,
sal, pólvora para caçadas, aguardente e roupas. Os beneditinos,
que mantinham um engenho em terras iguaçuanas, por exemplo,
fechavam os olhos para as comunicações entre seus escravos
e os aquilombados. A pesca abundante nos rios garantia-lhes ainda
mais do que comer, vender e viver. O comércio era tão
lucrativo que tornava os pequenos comerciantes e barqueiros seus aliados.
A complexidade dessas organizações se evidencia no caso
do quilombo do rio Moquim, no norte fluminense: cerca de trezentas
pessoas mantinham enormes lavouras de milho, mandioca e feijão,
criavam galinhas e porcos, possuíam uma ferraria para a construção
de ferramentas de trabalho, além de oratórios e um cemitério.
Seus moradores habitavam “senzalas arruadas” e as crianças
ali nascidas eram batizadas por um padre pardo, foragido da justiça
mineira.
Na Paraíba, destacaram-se as comunidades de negros fugidos
denominadas Craúnas e Cumbe. Na Bahia, tais agrupamentos também
não foram raros. Inseridos nas franjas dos centros urbanos,
esses quilombos viviam um cotidiano marcado por negociações
e conflitos. Como o do Orobó, o do Andaraí e o do Oitizeiro,
instalados nas cercanias de Barra do Rio de Contas, e que deram algum
trabalho às autoridades. Em fins do século XVII, também
existiam mocambos instalados em Camamu, Cairu e Ilhéus, localizando-se
numa área de mangues pouco policiada e despovoada; atacados
por tropas de índios cariris – o hábito de atacar
quilombos com índios mantinha-se desde o início de Palmares
–, esses agrupamentos, nas vésperas de 1700, dispersaram-se.
E na distante Amazônia? Lá o escravo negro foi fortemente
substituído pela escravidão e trabalho compulsório
do indígena. As mais diversas leis, cartas régias ou
bulas papais não evitaram a compra e venda clandestina de índios,
comércio, diga-se, que beneficiava vários grupos. Transformados
em trabalhadores de segunda classe, esses índios eram convertidos
à força ao cristianismo, brutalmente explorados e “pagos”
com cachaça ou quinquilharias. Os “salários”
raramente chegavam às suas mãos. Agrupados em corporações,
estavam sujeitos a castigos caso fugissem ou faltassem ao trabalho.
À medida que se expandia tal regime, cresciam as formas de
resistência. As fugas eram espetaculares: escapavam grupos de
até oitenta indivíduos entre homens, mulheres e crianças.
No século XVIII, a denominação amocambado começava
a aparecer insistentemente nos documentos oficiais, que registram,
para o período, gastos com soldados para a captura de fugitivos.
Muitos moradores davam-lhes abrigo para poder, posteriormente, usá-los
em próprio benefício ou fazê-los parceiros na
luta pela sobrevivência. O roubo de canoas, instrumento de fuga
mais comum, era constante.
Conforme podemos notar, várias regiões da Colônia
conviveram com quilombos. Isolados como Palmares ou inseridos nas
periferias das vilas e cidades, agressivos ou pacíficos, reunindo
gente de diferentes etnias, cor e credo. O que lhes importava era
resistir, e, para isso, a presença de laços de solidariedade
ou de parentesco, assim como a vivência de práticas religiosas,
foram muito importantes. Inúmeras pesquisas dão conta
da presença de mulheres e crianças quilombolas, atestando
assim a existência de ligações estáveis
dentro da instabilidade que significava viver fugido. Brigas de faca,
castigos exemplares, surras em mulheres infiéis comprovam a
existência de regras e de valores no seio dessas comunidades.
Fugas temporárias alimentavam os encontros entre os que viviam
dentro e os que viviam fora do quilombo. Fugas transitórias
permitiam aos cativos negociar com os senhores melhores condições
de vida dentro do cativeiro. Laços de amizade ligavam comerciantes
e aquilombados, permitindo aos últimos ter acesso a armas e
alimentos ou a informações capazes de garantir-lhes
a sobrevivência ante seus perseguidores.
Como bem lembrou um historiador, embora em menor número, as
mulheres quilombolas destacaram-se na manutenção material
de suas comunidades, zelando pelo suprimento de alimentos, confeccionando
roupas e utensílios para uso doméstico. Cabia-lhes cuidar
de roças e de animais domésticos, assim como preparar
a comida. Seu papel nas funções religiosas era preponderante:
através de rituais ancestrais, fortaleciam o espírito
combativo dos homens. Preparavam-lhes amuletos e banhos de ervas,
ofereciam sacrifícios rituais e dominavam as propriedades das
plantas medicinais capazes de debelar doenças e curar ferimentos.
Acompanhavam os quilombolas em caçadas ou enfrentamentos com
os temidos capitães do mato e, então, exerciam função
de apoio ao conduzir pólvora e armamentos, assim como levando
e trazendo recados.
O temido capitão-do-mato, de Rugendas.
Fonte:
“Uma Breve História do Brasil”, de Mary del Priore
e Renato Venâncio.
http://historiahoje.com/?p=4359
topo
|