Mary del Priore
> Medicina, espiritismo e mulheres médiuns
O processo de sincretismo que se desenvolvera
havia séculos no Brasil, integrando o catolicismo popular e
as religiões negras, no início do século XX,
abocanhava a doutrina do espiritismo, na sua vertente mais popular.
Daí a presença de centros com nomes de santos como a
Sociedade Beneficente Santo Antônio de Lisboa ou a Sociedade
União Espírita São Sebastião. Ou da médium
Joana Francisca Soares da Costa, que incorporava uma preta velha,
a Vovó Joana.
Dados confirmam que a doutrina havia ganhado várias frentes
e esposava, também, as últimas tendências científicas
vindas do exterior. Eis o relato do jornalista João do Rio:
Era num salão modesto
de São Cristóvão. Estava ali reunida uma esquisita
harmonia, a crença no invisível com todas as suas
opiniões. Havia o dono da casa, hesitante entre a religião
espírita, a indagação científica e o
devaneio ocultista; havia uma senhora gorda médium; havia
um príncipe russo que pretendia tocar piano sob a influência
de Chopin; havia homens que contavam sonhos e curas, prognósticos
e maravilhas, casos de imposição de mãos e
de influências de medicina filosofal; havia médicos
psiquiatras, engenheiros, membros de altas sociedades londrinas
de psicologia. Toda essa gente estava aquecida pelo último
artigo de Lombroso sobre a velha e cansada Eusápia Palladino.
Os jornais tinham falado. Lombroso mais uma vez afirmara ao mundo
a influência do invisível.
João do Rio referia-se a Césare
Lombroso, psiquiatra e criminologista, mas grande defensor do espiritismo
na Itália. Nessa época, a Europa se debruçava
sobre fenômenos mecânicos ou psicológicos atribuídos
a forças aparentemente inteligentes ou potências desconhecidas
da inteligência humana. O nome dessa ciência? A metapsíquica.
Seu fundador? O francês Charles Richet, futuro prêmio
Nobel de Medicina. Ela se constituía de três fenômenos
fundamentais: a ectoplasmia, a criptestesia ou lucidez e clarividência
e a telequinesia, ou seja, a ação mecânica, que
se exerceria sem contato, à distância, em condições
determinadas, sobre objetos ou pessoas.
As interpretações de um número crescente de intelectuais
sobre a clarividência confirmavam a existência de um sexto
sentido, a criptestesia, mais desenvolvida em algumas pessoas do que
em outras. O pensamento, assim como a realidade material, se comunicaria
por outras vias além das sensoriais comuns. Para isso, supunha-se
que as coisas emitiam vibrações que não seriam
perceptíveis a nossos sentidos. Tais vibrações
seriam, por vezes, captadas por perceptivos, sonâmbulos e médiuns.
O pensamento humano era uma realidade que, mais do que outras, poderia
sensibilizar os sentidos criptestésicos, o que explicava a
relativa frequência de casos de telepatia.
Num albergue em Nápoles, Lombroso viu voar uma mesa de oito
quilos e objetos pesadíssimos, que ela fazia girar a 30 ou
40 graus. Ao lado de Richet, ambos assistiram surgir uma rosa fresquíssima
no colo da médium Eusápia Palladino. Juntos, observaram
vasos de quinze quilos transportarem-se de uma mesa a outra. E tudo
à luz do dia, com Eusápia cercada de fios elétricos
ligados a campainhas para evitar que qualquer pessoa se aproximasse.
“Sou capaz de muito mais! Sou capaz de fazer-te ver tua mãe”,
lançou a vidente ao sábio. E assim o fez. A figura etérea
da mãe de Lombroso apareceu e beijou-lhe a testa, dizendo:
“Césare, figlio mio!”. E tudo reproduzido
com fotos na Gazeta, inclusive o rosto gordo e severo da
médium!
Na França, um dispositivo imenso foi instalado nos institutos
de Medicina e Psicologia para avaliar as capacidades extraordinárias
dessa mulher. Quarenta e três sessões foram realizadas
ao longo de três anos, diante dos mais qualificados membros
do mundo científico, inclusive Pierre Curie. Apesar de algumas
pequenas fraudes, não se afastou a evidência da ação
psíquica sobre os objetos.
Eusápia Palladino materializava espíritos através
de ectoplasmas. Partes de espíritos eram emitidas pelo corpo
de médiuns, normalmente pela boca. Substâncias brancas,
mais ou menos sólidas, foram atestadas por numerosas fotografias.
Eusápia, por exemplo, formava uma terceira mão e produzia
“fios fluídicos ectoplásmicos”. Mas, cético,
João do Rio a julgava “cansada”! E prosseguia num
diálogo, com um amigo, “rico e viajado”, que diagnosticava:
Presentemente, meu caro, o espiritismo,
rótulo geral de todas as preocupações com o
além, é a força vital do pensamento da cidade.
Antigamente, fazia-se isso com um pouco de cuidado, escondendo da
polícia as reuniões. Hoje, faz-se tudo às claras.
Em cada canto de rua encontra-se um centro espírita, em cada
beco há um médico espontâneo receitando, em
cada travessa uma multidão ávida de milagres roja
aos pés de um irmão com qualidades especiais. Não
se trata de mais uma seita com mais ou menos partidários;
trata-se de uma cidade inteira. Aqui, neste salão, você
encontra os religiosos propriamente, os cientistas, os que se divertem,
os ocultistas. No fundo, eles se divertem com o que Charles Richet
chama cientificamente a metapsíquica. Mas há a multidão,
a base dos inúmeros salões como este; há o
povo, e o povo na sua enorme ignorância é o gado próprio
a toda sorte de explorações e de embuste.
[...] Há também para aliciar o exército de
fiéis masculinos, as mulheres, o grande elemento das crenças
mais loucas. Na baixa classe muitos homens não se ralam com
isso, querem descansar e vão às sociedades espíritas
como quem vai à farmácia, só quando se acham
doentes. Mas as mulheres estão lá e sempre lá.
O marido briga? O espírito resolverá. O amante espanca-a?
O espírito falo-á voltar às boas. Os filhos
estão doentes? As almas, com água, arranjam tudo.
O espiritismo é o ideal, é a esperança, é
a paz, é a saúde, principalmente um centro onde elas
se elevam – elas, as mulheres de homens rudes que as tratam
como sacos de filhos e criadas sujas – a esferas superiores.
A participação feminina
no movimento espírita ajudou a consolidá-lo enquanto
valorizava uma presença que não importava no mais da
vida social: a da mulher. O país machista e patriarcal se curvou
diante das grandes sacerdotisas nos centros ou nos terreiros.

Fonte:
- Mary del Priore. “Do Outro Lado – a História do
Sobrenatural e do Espiritismo”.
http://historiahoje.com/?p=4593
topo
|