Em novembro de 1860, Madame Potier,
ou Magdalena Victória Puisseaux Potier, a “mais antiga
cartomante do Rio de Janeiro”, acabara de regressar de Paris,
anunciava o Diário do Rio de Janeiro. Sim, pois sua
instalação na Corte se dera em 1859. E avisava: colocava
cartas como “fazia antigamente”. Desde então sucessivamente
tivera salas na Rua do Cotovelo, Rua da Misericórdia e Rua
São José. E a clientela não parava de crescer.
Até 1874, sua propaganda era publicada em meio a anúncios
de remédios para “cura radical de calos”, venda
de ceroulas, pianos ou charutos. Para impressionar, por vezes se apresentava
como “chiromante” ou vidente capaz de ler nas linhas da
mão.
Os avisos vinham nas páginas dos jornais entre outras informações
sobre as atividades da família imperial, concertos populares,
reuniões de sociedades beneficentes e anúncios de crimes.
“Madame Mery, perita nesta arte” oferecia serviços
na Rua Sete de Setembro, 45, primeiro andar. “Rosália”
o fazia na Rua do Hospício. Cartomantes estavam em toda a parte
e eram abismos de silêncio e discrição.
Teriam sido introduzidos pelos ciganos cujas casas e serviços
eram oferecidos no Campo de Aclamação? Em grupos de
três ou quatro, as ciganas coloridas percorriam as ruas lendo
o passado e o futuro nas cartas ou nas linhas da mão:
“- Dá para mim um moeda
de dois tostões. Põe sorte para você. Dinheiro
bendito. Santo do céu. Diz sorte de vida. Diz presente, passado,
diz futuro. Boa sorte para você. Sua família. Bota
primeiro sua dinheiro na minha mão”.
Dos sobrados, as meninas casadoiras
desciam fazendo barulho com seus tamancos para ouvir que seus amados
gostavam delas, elas gostavam deles, mas tinham outros que gostavam
delas… E outras que gostavam deles e que, para casar, “põe
outros dois tostões na minha mão”! As clientes
vinham por dor ou por amor.
Traços da cartomancia se encontram desde o século XV,
na Espanha, e XVI na Itália. Num famoso manual de confessores
– livro que ensinava os padres a fazer perguntas aos pecadores
-, de autoria de Martin de Azpicuelta Navarro, muito usado no Brasil
desde 1540, há condenações à adivinhação
com o jogo de cartas.
Ou a moda teria vindo da França? Ao final do século
XVIII, cartomantes famosos publicavam seus livros na França.
Magos misturavam a ciência das cartas com aquela dos números,
da alta astrologia, dos gênios – uma espécie de
demônios familiares protetores -, dos sonhos e dos talismãs.
Em 1790, enquanto a guilhotina da Revolução Francesa
cortava cabeças e os filósofos do iluminismo anunciavam
o tempo da razão, um célebre cartomante abria uma escola
de magia em Paris. O educandário de adivinhações
oferecia cursos gratuitos de onze às 13,30 horas nos dias 1,
10 e 20 de cada mês. Nas paredes de Paris, anúncios com
o programa: “Aprofundar a arte, a ciência, a sabedoria
para compreender os oráculos do livro de Thot”. O sucesso
do curso foi total embora seu fundador se queixasse de alunos que
constrangidos de aparecer publicamente, preferissem aulas particulares.
Essa atitude lhe parecia tanto mais intolerável quanto a cartomancia
era o máximo da educação. Um instrumento a conduzir
os homens na conduta da vida. A mulher, mais sensível do que
o homem às tribulações do destino, merecia ter
melhor guia. Daí ele ter concebido o “Pequeno oráculo
das damas”, capaz de responder “aos pequenos aborrecimentos
e grandes esperanças”! Traduzido, seria vendido nas livrarias
do Rio de Janeiro.
O livro de Thot fora composto por 17 magos egípcios
com caracteres, ou melhor, hieróglifos que encerravam religião,
adivinhação e medicina. Tomou o nome de Tharoth
ou jogo real da vida humana, abreviado para Tarô.
Na França, as futuras vítimas da Revolução
foram as primeiras a procurar as artes divinatórias. Então,
dava as cartas, certa Madame Lenormand: famosíssima e conhecida
como “a sibila do Faubourg Saint-Germain”! Até
Maria Antonieta recebeu sua visita na prisão. Hébert,
chefe dos jacobinos, também a consultava até sua morte
ser decretada, em 1794, por Robespierre. Viagens de balão,
mudanças na polícia e o destino de Marat, Saint-Just
e Robespierre também foram anunciados pela cartomante.
Ela noticiou a Josefina, então, desconhecida Madame Bonaparte,
que esta se tornaria imperatriz e, após a Revolução,
acompanhou a ascensão de Napoleão, predisse suas vitórias
e destino brilhante. O gabinete de Madame Lenormand à
Rua de Tournon, número 5, em Paris, recheado de estátuas
antigas e candelabros, era freqüentado por todo o Paris.
Em 1800, Napoleão quis conhecer o estado de “superstição”
na França e em cada localidade representantes foram encarregados
de anotar comportamentos “irracionais”. A enquete revelou
que, em todas as classes sociais, nas cidades ou no campo, crendices
estavam bem vivas. Magia, feitiçaria, lobisomens, curandeiros
possessão, evocação de espíritos, a França
parecia tomada pelo sobrenatural. A crença em presságios
e na adivinhação parecia mais forte do que o sentimento
religioso.
Nas cidades, porém, proliferavam as cartomantes. Entre elas,
nada de parentesco com o Diabo ou a feitiçaria. Diziam-se apenas
especialistas em adivinhação e capazes de ler o futuro
num baralho ou na borra de café. Não adiantava a polícia
persegui-las. Fechava-se um gabinete aqui, se abria outro ali. Apesar
das multas aplicadas, embora acusações de “enganar
o público” ou de “semear cizânia nas famílias”,
malgrado os artigos em jornais associando-os a adeptos de Satã
ou a embusteiros, eles estavam em toda a parte. Mas discrição
e segredo envolviam os negócios de adivinhação.
Divertimento ou verdadeira preocupação em conhecer o
futuro, operada por amadores ou “profissionais”, a adivinhação
não deixou de exercer enorme fascínio e a sociedade
participou deste entusiasmo.
Tudo indica que junto com as livrarias e editores franceses, restaurantes
e cocottes, a cartomancia tenha chegado junto com os franceses
à Corte. Em junho de 1874, entre várias informações
tais como o concerto da artista lírica Adelaide Ristori ou
o recolhimento de frangos e galinhas por infração de
posturas municipais – era proibido deixar animais domésticos
pela rua – um anúncio discreto de uma já conhecida:
“Madame Potier cartomante que tratava de espiritismo”
à Rua São José.
Na Rua do Carmo era a vez de uma concorrente que atendia das nove
da manhã às seis da tarde. O importante era possuir
os poderes de visão, premonição e projeção.
A insistência em associar cartomancia e espiritismo indicava
a origem francesa da prática e a capacidade de desvendar o
futuro. As cartas seriam o meio e o elemento de ligação
com o Além. “Correr cartomantes”, ou seja, freqüentá-las,
saía barato. Em torno de 2$000 e serviam de distração
às mulheres como Rita, esposa adúltera do conto A
cartomante de Machado de Assis:
“Os homens são assim;
não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela adivinhou
o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era.
Apenas começou a botar as cartas, disse-me: “A senhora
gosta de uma pessoa…” Confessei que sim, e então
ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me
que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não
era verdade…”.
Como concluiu o autor, havia mais
coisas entre o céu e a terra do que podia sonhar nossa vã
filosofia. E as cartomantes saltavam das ruas para as páginas
dos livros. Desde 1845, as livrarias vendiam livros e brochuras que
ensinavam a “pôr cartas”. Era o caso de certo “O
Fado: novíssimo livro ou jogo de sortes engraçadas”
em nova edição aumentada, por apenas 1$280. A partir
de 1860, a livraria Laemmert oferecia “A pitonisa de Paris
ou Cartas da célebre Cartomante Madame Lenormand”.
Vinha com trinta e seis cartas coloridas e era excelente presente
para senhoras. No mesmo Diário de Notícias,
anunciavam-se Revelações do Cigano, com “vinhetas
burlescas e recomendado para curiosos ao preço de 1$0”.
O Programa-Avisador, folheto com toda a sorte de informações,
distribuído gratuitamente nos teatros e salas de espetáculo,
também anunciava quem “jogasse cartas”. Inclusive
a presença no Rio de Janeiro de “Madame Anna, discípula
da célebre Madame Lenormand”! A cartomancia cruzava os
mares!
Em 1888, dois meses antes da assinatura da Abolição,
o Diário de Notícias denunciava: diariamente
se via jornais da Corte com pomposos anúncios de “peritas
cartomantes”. Elas tudo adivinhavam: passado, presente e futuro.
Respondia pelos nomes de a Corcundinha da Rua Marechal Câmara,
a Ceguinha da Rua da Misericórdia ou a Rosa. A crítica
maior, porém, ia aos freqüentadores: “gente de espírito
fraco”, “cérebros mórbidos” que acreditavam
em qualquer tolice. Profecias e adivinhações sempre
“malignas e mentirosas” geravam problemas dentro das famílias.
E o editorialista cravava: “As cartomantes são mais perigosas
do que os curandeiros”. Os primeiros estragavam a saúde
e elas, corrompiam o espírito, deixando seus clientes medrosos
e inseguros. O antídoto era o “aperfeiçoamento
intelectual” da população. Só ignorantes,
e no Brasil havia muitos, segundo o editorial, caiam em tais crendices.
Coincidência ou não, no mesmo jornal, os leitores acompanhavam
o folhetim de Alexandre Dumas, O colar da rainha. Aí,
a própria Maria Antonieta, cliente de Madame Lenormand, aparece
em cena consultando o sobrenatural.
A partir dos anos 80, mudanças: o jornal O Apóstolo
e Carbonário empreenderam verdadeira campanha contra a
cartomancia. O segundo pedia aos leitores que evitassem “tais
consultas” “pois além de exploradoras”, as
profissionais eram “perigosas”! E o primeiro criticava
a tolerância da polícia mais indulgente com cartomantes
do que com os cultos africanos. Será porque eram bonitas? –
perguntava-se o articulista. A comparação com o espiritismo
também chegou. Nas páginas de A Estrella, estranhava-se
que a polícia perseguisse mais as cartomantes do que o espiritismo,
Ora as primeiras provocavam muito menos males que o último.
Esse, sim, multiplicava o número de loucos.
Apesar da perseguição, no centro, nos arrabaldes ou
subúrbios transbordavam as sacerdotisas do futuro, capazes,
dizia-se, de modificar as fatalidades do destino. Contrariavam a morte,
as desgraças e os males. No Largo da Batalha a mulata Estefânia
com seu rosto largo e cabeleira farta lia o futuro de todas as formas.
Quando passava um cupê apressado ou um landau de cortinas arriadas,
já se sabia: “- Casa da feiticeira”!
Na Rua Santo Amaro era a “Princesa Matilde” que recebia.
Usando perfumes exóticos, um anel onde se desenhavam as fases
da lua e os signos do Zodíaco, dizendo-se amiga e correspondente
da famosa francesa Madame Thebes, sua agenda de sextas-feiras
fervilhava. O ambiente era sofisticado. Suas cartas eram cuidadosamente
guardadas num sarcófago de prata de onde extraia, com mãos
delicadas de feiticeira, a miragem do futuro. Lá se reuniam
os adeptos do Ocultismo indiano, do cabalismo hebraico, do Esoterismo
egípcio, de Swedenborg, de Kardec, de Comte.
Uma espécie de homenagem irônica foi feita pela Fon-Fon
a uma famosa cartomante, Madame Zizina, quando morreu. Corcunda, ela
não atraia pelo físico, nem pelo brilho intelectual
e mundano da “Princesa Matilde”, mas era sacerdotisa de
sólida reputação e popularidade:
“Eu fui dos que se entristeceram
com a morte de Mme. Zizina. Sempre acreditei em tudo o que ela predizia,
principalmente porque nada se realizava. Acreditar com certeza é
a mais dolorosa das manias. Mme. Zizina foi uma vendedora de ilusões.
Homens e mulheres que iam ao consultório dela, saíam
de lá trazendo a verdade:
“ – Seja encantadora
e cala-te…”
Mas, Mme. Zizina não pode
seguir esse aviso de prudência. Ainda pequena caiu da escada
e ficou na impossibilidade de ser encantadora. Cresceu com a espinha
deformada e o rosto sulcado de lágrimas – feia!
[...] Mme. Zizina levou para o silêncio a voz do engano. E
levou a esperança… Que há de ser de nós,
agora?
“As cartomantes cujos anúncios enchem os jornais não
inspiram confiança; além de estrangeiras, são
bonitas”.
Pano rápido!
Para se consultar com Mme. Zizina
ou outras, as damas elegantes vinham de Botafogo e Águas-Férreas,
às escondidas. Rosto coberto por véus ou à sombra
de leques emplumados. Eram esposas enganadas, mulheres que sofriam
com o desprezo ou indiferença dos maridos. Certa Estefânia
conhecia mandingas para desfazer paixões ilícitas e
reacender fogueiras nos corpos frios. As mocinhas queriam saber se
casavam “mesmo”. As idosas buscavam remédios que
a medicina não oferecia para males do fígado ou asma.
Os homens, banqueiros, políticos, administradores e até
membros do Círculo Católico também se
esgueiravam no corredor escuro da casa da cartomante. A hora mais
comum para consultas era à tarde. O lusco-fusco e a falta de
iluminação ajudavam ao anonimato.
Poderosas as cartomantes? E muito. No morro de Santo Antônio,
se atribuía a introdução da peste bubônica,
o fim da criação de galinhas de Maria Caolho e a morte
por estupor de Chico de Marocas a certa negra Marcolina. Amiga do
Tinhoso a quem recebia às sextas-feiras, a “bruxa”
de muita idade gostava de pitar cachimbo de barro e saudar as pessoas
com um “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo”. Ali,
num casebre que dava para a Rua dos Arcos, atrás de algumas
moitas onde brincavam moleques seminus, ela deitava cartas, conhecia
orações para aprumar a vida, as normas de São
Cipriano, fazia feitiços de sapo para “amarrar amantes’
e dava consultas “para desmanchar coisa feita”. Seu cliente
mais assíduo: o poeta gaúcho Múcio Teixeira.
Mas, quem botava as cartas? Resposta: os espíritos. As cartomantes
eram apenas um instrumento, simples intérpretes da sabedoria
dos mortos. A curiosidade, momentos de crise ou de indecisão
levavam católicos e não católicos ao seu baralho.
A credulidade nunca teve classe, religião, nem cor.