Mary del Priore
> A “Casa de Pretos”: medo e preconceito
em relação às religiões afro-brasileiras
Era assim que Luís Edmundo, o cronista
do velho Rio de Janeiro, chamava o terreiro existente na Travessa
do Castelo, onde, segundo ele, se praticava a liturgia jeje-nagô,
“cheia de complicações e de mistérios,
onde se evocavam almas do outro mundo e eram manipulados despachos,
feitiços que, quando postos nas encruzilhadas dos caminhos
tinham a propriedade de curar malefícios, modificar vontades
e corrigir o destino dos homens”. Segundo ele, “o nome
que se dava a esses locais era canjerês, candomblés ou
macumbas”.
Desde a década de 1830, várias posturas municipais proibiam
ajuntamentos de negros com ocorrência de danças e batuques,
em casas ou chácaras particulares. Considerava-se que tais
“ajuntamentos” não eram inocentes, pois várias
revoltas de escravos tinham nascido assim. Seus “feiticeiros”
costumavam ser os cabeças de motins. Na segunda metade do século
XIX, o motivo para persegui-los era a vadiagem e o charlatanismo.
Pouco, porém, adiantou a hostilidade das autoridades ou a negligência
dos que achavam que tudo não passava de brincadeiras para tirar
africanos da tristeza em que viviam. Com o crescimento das cidades
e o aumento da população de livres e ex-escravos, multiplicaram-se
as “casas de preto” com grande presença de lideranças
religiosas negras, comandando tanto a elite quanto o povo.
Luís Edmundo se limitou a reproduzir os preconceitos que no
final do século historiadores e cronistas tinham sobre o assunto.
Mas, identificou uma primeira distinção, feita, segundo
ele pelos espíritas, entre “baixo-espiritismo ou espiritismo
de terreiro” e o kardecismo, branco e de classe média.
Segundo ele, o panaché religioso misturava fetichismo africano
aqui introduzido na época da colônia “com muito
dos processos kardecistas de confabular com o astral além de
bailados em que os nossos avós índios invocavam os fantasmas
de seus ancestrais”.
E ele assim contou:
“Em casa de João Gambá
de Luanda, na Travessa do Castelo, a macumba estadeia. Os ídolos
que se evocam chamam-se Ogum, Xangô, Oxalá, São
Jorge, São Cosme, São Damião e Santo Onofre.
Como nas igrejas católicas a entrada é franca, mas
logo à porta há uma caixa de esmolas que se não
reclama óbolos para a cera do santo, pede para o espermacete
da iluminação do templo, que se resume em dois ou
três aposentos dando para uma área suja onde, em balaios
de vime, arrulham pombos, cacarejam galinhas [...] Quando penetramos
sala principal já a encontramos transbordar de gente, moços
e moças, velhos e velhas sentados, uns sobre bancos de pau,
outros em pé ou pelo chão, de cócoras e até
deitados. Lembrando o altar da liturgia católica, junto à
parede uma tosca mesa de pinho, mostrando dois alguidares de barro
vidrado com os animais do sacrifício postos num molho feito
de farinha e azeite de dendê. Ligando-os uma espada longa
e nua”.
O cronista descreveu as peanhas com santos, copinhos cheios de água,
velas e quadros emoldurados. João Gambá, septuagenário
magro e de carapinha grisalha, era amigo de outro poderoso “feiticeiro”:
o Apotijá, da Rua do Hospício. Ao som de cânticos,
vários instrumentistas preparam suas cuícas, agogôs,
berimbaus e atabaques. Eis que na sala irrompia “a jovem mestiça”
cuja dança sobrenatural, além dos peitos, ancas e olhos,
impressionou o memorialista.
Regado a preconceito, o texto do memorialista refere-se a “bodes
pretos que agem como homens no cio”, “bailados bestiais
onde todos dançam nus”, “vertigem de lúbricos
anseios” e à “ventanias de luxúria”.
É provável que numa época de intensa repressão
sexual, Luís Edmundo fantasiasse muito, sobre o que conhecia
pouco ou nada.
E imaginação não lhe faltava para concluir que
“na Macumba só se manifestam espíritos grosseiros
que ainda se prendem aos instintos terrenos da vida e ainda não
se libertaram da crosta vil do atrasado planeta Terra: almas rastejadoras,
indomáveis, violentas. Todo um mundo de sofredores, ralé
curtida pela dor, à espera da grande luz de Deus, que tarda
a vir mais um dia chegará”.
Apesar da localização central do terreiro de João
Gambá, a polícia fechava os olhos para as cerimônias.
“Xangô era respeitador do Código Civil promulgado
pela República”, dizia João do Rio. Código
que punia o uso comercial das superstições e a exploração
da credulidade pública. Mas no terreiro de João Gambá,
não se matavam bodes! Uma boa razão para deixar tudo
acontecer na santa paz do Senhor ou de Xangô…
O aspecto mágico da religiosidade africana foi combatido desde
sempre. Sacrifícios de animais, o contato com deuses e orixás,
as previsões do futuro, a cura das doenças e o papel
do sacerdote eram vistos como práticas diabólicas, sobretudo
pela Igreja católica. Anteriormente, muitos foram perseguidos
pela Inquisição, que confundia batuques e danças
frenéticas com invocações ao demônio. Mas,
a mistura com o catolicismo veio obrigatoriamente. A criação
de Irmandades de negros, pardos, livres e forros, a participação
em festas do calendário eclesiástico promoveu uma interação.
Viajantes estrangeiros registraram em muitas ocasiões o que
consideravam “divertimentos extravagantes”, ou seja, folguedos
e batuques africanos que participavam das comemorações
cristãs.
A partir do século XIX, a organização dos terreiros
com forte presença iorubá foi crescente. E deles João
do Rio foi observador ao percorrer as ruas de São Diogo, Barão
de São Félix, Hospício e Núncio, onde
viviam poderosos pais-de-santo. Muitos chefes religiosos mandavam
seus filhos à África, para estudar a religião.
Animistas, adoradores de folhas e pedras, eles possuíam um
arsenal de divindades que, segundo o cronista, “confundiam”
com santos católicos. Ele listou os cargos religiosos: os babalaôs,
os açobás que preparavam as cabaças para os ritos,
os aborés, mais velhos sacerdotes do candomblé, as mães-pequenas
encarregadas de fiscalizar a iniciação das iaôs
ou filhas de santo, os benfeitores ogãs. Listou, também,
os nomes dos babalaôs: Oluou, Eruosaim, Alamijô, Emídio,
Edé-oié, muitos deles, protegidos de políticos
e membros da maçonaria.
Os alufás, – explicava -, chefes religiosos muçulmanos
estudavam a religião e logo depois da circuncisão, mergulhavam
na leitura do Alcorão. Sua obrigação era a prece:
“rezam ao tomar banho, lavando a ponta dos dedos, os pés
e o nariz, rezam de manhã, rezam ao pôr do sol”.
Sentados sobre peles de carneiro ou tigre, não comiam porco,
rezavam o rosário ou tessubá e escreviam suas orações
em tábuas com tinta feita de arroz queimado.
Seus nomes: Alicali, Xico Mina, Alufapão, Mané e muitos
outros. Alguns eram tão poderosos que faziam chover. “Salamaleco”
era a saudação, corruptela de Al selam aleikum.
João do Rio conheceu João Alabá, segundo ele,
um “negro rico e sabichão” e em suas peregrinações
no “mundo dos feitiços”, quando tudo anotou sobre
a iniciação das iaôs, sobre a festa de egungun,
o nome dos orixás e dos 36 pais de santo que conheceu num só
dia.
Quanto aos feitiços, havia de todos os matizes: lúgubres,
poéticos, risonhos ou sinistros. O feiticeiro jogava com o
amor, a vida, a morte, o dinheiro. Para matar um cavalheiro, ainda
é João do Rio quem conta – bastava torrar-lhe
o nome, dá-lo com algum milho aos pombos e soltá-los
na encruzilhada. Os pombos carregavam a morte. Para ulcerar as pernas
de um inimigo, um punhado de terra era suficiente. Tudo era resolvido
depois de uma conversa entre o babalorixá e os ifás,
uma coleção de doze pedras. Quando essas se negavam
a responder, matava-se um bode, colocavam-se as ditas pedras em sua
boca com folhas de jaborandi. Para separar casais, enrolava-se o nome
da pessoa com pimenta-da-costa, malagueta e linha preta. Deitava-se
isso no sangue do casal e estava pronta a desunião.
Por suas mandingas, feiticeiros eram temidos desde sempre. Nos anos
20 do século XIX, em viagem pelo Brasil, o bávaro Johann
Moritz Rugendas observou que a mandinga podia “fazer morrer
de morte lenta”. E que nela criam “todas as classes do
povo”. Observava ainda o sincretismo da poderosa mandinga ou
“talismã” que, apesar do nome africano, tinha grande
analogia com idéias muito espalhadas na Europa, desde as épocas
mais remotas. “Entretanto – sublinhou – os mandingueiros
são quase sempre negros”.
Mas a grande preocupação dos africanos e de seus descendentes
era garantir um ritual fúnebre para si e seus familiares. O
medo de “sobrar” como assombração era combatido
com as “missas para as almas”. Muitos voltavam para arrastar
suas correntes em sobrados e senzalas decadentes. O cuidado com os
mortos e em lhes render cultos assegurava que não voltassem
para perturbar as crianças com doenças ou pesadelos.
As várias Confrarias do Rosário dos Homens Pretos permitiam
a união entre a religiosidade africana e a religião
dos colonizadores.
Um renomado historiador baiano demonstrou que “papais”,
nome que se dava ao “principal da ordem de sortilégios
e feitiços”, atuavam não só como lideranças
religiosas, mas também como chefes de juntas que buscavam alforriar
seus semelhantes. Que as práticas rituais serviram, a pretos
africanos e nacionais, a combater as violências de seus senhores
e de seu cotidiano. A religião foi, sim, um instrumento de
resistência escrava. Inclusive, por que não faltou clientela
branca nos grandes terreiros de candomblé, macumba e umbanda,
onde a relação de submissão do preto passava
a ser de dominação; de escravo passava a senhor. Ele
mandava, conjurava espíritos e resolvia a vida dos outros.
Apenas o “pai de santo” se conectava com o mundo invisível,
habitado por entidades espirituais responsáveis pela vida.
Seus rituais viabilizavam essa interação. Ali, os brancos
obedeciam e se curvavam.
O poder dos negros era capaz de curar o quebranto e rezar o mau-olhado
que se abatesse sobre ioiôs e iaiás. Ao circular entre
a medicina africana e a ocidental, entre a escravidão e a liberdade,
muitas “Casas de preto”, como as chamou João do
Rio, se tornaram lugares de poder e de contradição do
sistema escravista no Império.
Fonte:
http://historiahoje.com/?p=5311
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