Mary del Priore
> Bruxas, parteiras e abortistas: o medo dos “saberes”
femininos
No universo de curas informais pelas
quais se venciam ‘queixas insuperáveis’, a recorrente
presença da mulher curandeira prenunciava o estereótipo
da bruxa, havia muito perseguido pela Inquisição. Mas
explicitava também a importância que tinha a mulher como
detentora do conhecimento sobre as ervas e medicamentos caseiros,
tão capazes de curar como de enfeitiçar. No caso do
corpo feminino, sendo a ‘madre’ (útero) o critério
de bom funcionamento da saúde da mulher, tornava-se alvo preferido
de bruxedos que pudessem subverter a sua regularidade. Tendo seus
corpos sujeitos a sortilégios e encantamentos, as mulheres
preferiam tratar-se no interior de um universo feminino de saberes,
onde a troca de solidariedades era corrente, o que instigava os doutores
a caricaturar não só a sua necessidade de tratamentos
como também a figura das mulheres-que-curavam:
[…] entra uma beata ou
uma feiticeira, e assim que vão subindo a escada já
vão fazendo o
sinal da cruz, melhor fora que o doente se benzera destes médicos.
Deus seja nesta casa,
as almas santas nos guiem, a Virgem Maria nos ajude, o anjo são
Rafael nos encaminhe;
que tem meu senhor (diz a beata) pegue-se muito com minha senhora
Sant’Ana que
logo terá saúde, […] não se fie nos médicos
humanos; confie somente nas orações das
devotas, que só estas chegam ao céu. Aqui lhe trago
uns pés de flores de minha senhora
Sant’Ana. […] Hão de matar a Vossa Mercê
com purgas e xaropes; mande deitar esta
botica na rua, não apareça aqui senão água
benta e ervas-de-são-joão. As benditas almas
do Purgatório, a bem-aventurada santa Quitéria, santa
Catarina, são Damião e são Cosme
assista nesta casa; […] mal tenha quem tanto mal lhe fez;
[…] está enfeitiçado até os olhos.
[…] Tome umas ajudas de marcela e da flor de hipericão;
dependure ao pescoço uma
raiz de aipo cortada na noite de são João, faça
uns lavatórios de erva-bicha, de arruda e
de funcho; tudo cozido na água benta da pia de três
freguesias. […] Mande dizer uma missa às almas. […]
Não tome medicina alguma
que lhe receite o médico, porque ele vai a matá-lo
e eu a sará-lo. […]
Que guardem suas medicinas para as maleitas, porque o mal que Vossa
Mercê tem eu conheço.
O ataque a beatas e feiticeiras não
era fortuito. Desde tempos imemoriais as mulheres foram curandeiras,
e antes do aparecimento de doutores e anatomistas, praticavam enfermagem
e abortos, davam conselhos sobre enfermidades, eram farmacêuticas,
cultivavam ervas medicinais, trocavam fórmulas e faziam partos.
Foram por séculos doutores sem título. Além dos
médicos mostrarem-se em seus relatos absolutamente insensíveis
à dor das parturientes, as mulheres pareciam também
atingidas pelo tabu de mostrar seus genitais, preferindo, por razões
psicológicas e humanitárias, a companhia das parteiras.
Com práticas tomadas de empréstimo à medicina
antiga, os recursos fitoterápicos extraídos do quintal
e gestos transmitidos pela família, as mulheres se desincumbiam
dos partos não tanto pelo saber, mas pelo ‘saber-fazer’.
Familiarizadas com as manobras externas para facilitar o parto, as
parteiras ou comadres encarregavam-se da lubrificação
das partes genitais, e tudo indica que eram eficazes na ajuda mecânica
da prensa abdominal, fricções e pressões exercidas
no baixo-ventre com a finalidade de favorecer a expulsão do
feto. Gozando de enorme prestígio nas sociedades tradicionais,
eram mulheres que pela sua idade já não podiam conceber,
mas que conheciam a gravidez e o puerpério por experiência
própria e constituíam-se em zeladoras dos costumes femininos
que se agrupavam em tomo da ideia de proteção da mãe
e da criança.
Na comunidade feminina, detentora de ritos quase imóveis, parteiras,
mais além do ‘aparar crianças’ nos partos
que realizavam, eram benzedeiras e recitavam palavras mágicas
para auxiliar a mãe, faziam abortos, eram cúmplices
de infanticídios, facilitavam o abandono de crianças
ou as encaminhavam para famílias que as absorviam, vivendo
portanto na fronteira ambígua entre a vida e a morte.
No projeto de construção da maternidade ideal, o aborto
aparecia como uma mancha capaz de oxidar o belo retrato que se queria
fazer das mães. Se o enfoque era o da multiplicação
das ‘gentes’, se o esforço era o de tomar útil
a sexualidade dentro do casamento, o aborto mostrava-se como uma forma
de controle malthusiano, desaprovado tanto pela Igreja quanto pelo
Estado.
Via de regra praticado por mulheres em estado desesperador diante
de uma gravidez indesejada, de um fruto que representava mais dificuldade
ou miséria, o aborto voluntário significou nos tempos
modernos – como também na Antiguidade e Idade Média
– a arma de controle dos casais legítimos. Diz Jean-Louis
Flandrin que, tal como o infanticídio e a contracepção,
ele era utilizado sobretudo no quadro das relações extraconjugais.
Incorporando essa hipótese, podemos pensar que a pregação
sistemática da Igreja em colônias contra o aborto teria
uma especificidade: mais do que perseguir o homicídio terrível
que privava uma inocente alma do batismo e da salvação
eterna, a verborragia eclesiástica representava a caça
aos desdobramento condenáveis nas ligações fora
do matrimônio. E tais ligações, em forma de concubina
e mancebias, espaço, portanto, para filhos ilegítimos
e abortos, eram correntes, como já demonstrado, e provocavam
indizível horror frente aos esforços do projeto tridentino.
“Bruxas”, de Hans Baldung Grien
Fonte: Texto de Mary
del Priore. “Ao Sul do Corpo”, Editora José Olympio/Edunb,
1993.
- http://historiahoje.com/bruxas-parteiras-e-abortistas-o-medo-dos-saberes-femininos/
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