Há poucos dias, descobriu-se
o fim trágico de Jandira Magdalena dos Santos Cruz, de 27 anos.
Quase um mês depois do início das investigações
sobre o paradeiro da jovem, que desapareceu depois de ter saído
para fazer um aborto numa clínica clandestina em Campo Grande,
no Rio de Janeiro, a polícia informou que o exame de DNA realizado
em um corpo carbonizado, achado dentro de um carro em Guaratiba, na
Zona Oeste, comprovou que os restos mortais são de Jandira.
Antes de ser queimado, o corpo teve a arcada dentária retirada
e os membros superiores e inferiores cortados, para dificultar a identificação.
A barbárie e o silêncio
dos assassinos em torno da morte de Jandira Magdalena, colocou na
pauta da mídia um velho assunto. E não por acaso, durante
o período de eleições, quando nenhum dos candidatos
quer dele tratar: o aborto. O país se recusa a tratar do assunto?
Seus dirigentes, também, mesmo quando temos na presidência
uma “presidentA”? Então é hora de nós,
mulheres levantarmos essa bandeira, como foi feito, na Europa, onde
o aborto se tornou um assunto de saúde pública. Para
sublinhar a importância do tema, um pouco de história
é bom. Vamos a ela.
Textos de cronistas e médicos
entre os séculos XVI e XVIII, já comentavam o fato.
A ingestão de ervas, carregar fardos ou dar pulos eram manobras
conhecidas para fazer o fruto renunciar. Em caso de desespero, recorria-se
a todo o tipo de objeto pontudo: de agulhas a canivetes, de colheres
a tesouras de costura ou espetos de cozinha. Temia-se mais a gravidez
indesejada do que a morte por infecção. Viajantes de
passagem pelo Brasil observaram a venda de ervas abortivas, como a
arruda, pelas ruas das cidades. Em tabuleiros, as escravas costumavam
oferecê-la de porta em porta. Entre mulheres murmuravam-se,
baixinho, fórmulas para dar fim ao problema: provocar vômitos
e diarreias violentos era uma delas. Todas as mulheres conheciam alguma
solução.
Até o século XIX, a
Igreja tinha certa tolerância em relação ao aborto.
Acreditando que a alma só passava a existir no feto masculino,
após quarenta dias da concepção, e no feminino,
depois de oitenta dias, o que acontecesse antes da “entrada
da alma”, não era considerado crime nem pecado. Tudo
se complicava, porém, se pairasse dúvidas sobre o aborto
ser resultado de uma ligação extra-conjugal.
Frente ao Estado, leis discutiam se
o aborto fora voluntário ou involuntário. Surgiram leis
contra as abortadeiras e a partir de 1830. Uma delas condenava a cinco
anos de trabalho forçado quem praticasse o aborto, ainda que
com o consentimento da gestante. Essa escapava impune.
A partir de 1890, o Código
Penal da República passou a punir a mãe que arrancasse
o filho do ventre: cinco anos de reclusão com pena reduzida
a um terço, em caso de “defesa da honra”. Ficavam
isentos, os abortos realizados para salvar a vida da gestante.
A partir de 1894, a Medicina Legal
deu sua contribuição ao assunto. Introduziu-se o “exame
de corpo de delito”, antes feito por boticários, e depois
do Código da República por “peritos oficiais”
médicos. Exames químicos-toxicológicos permitiam
identificar se o aborto fora provocado e qual o tempo de gestação
do feto. Um deles consistia em injetar a urina da acusada numa coelha.
Se houvesse alterações nos ovários do animal,
o aborto estaria confirmado.
No início do século
XX, o controle da natalidade se converteu em questão de interesse
público: o problema “populacional” era importante
para pensar-se o desenvolvimento nacional, articulando-se com os debates
que animavam os homens públicos na época. A natalidade
era fundamental não só para a continuação
da espécie – argumento secular – mas para a sociedade.
Medicina e política davam-se as mãos, prescrevendo normas
para o comportamento reprodutivo. O aborto entrou na mira das autoridades.
Passou a regular-se a diferença entre contracepção
e aborto. Isso foi importante, pois até poucas décadas
atrás, contraceptivos e abortivos eram anunciados em jornais
e revistas, vendidos em farmácias ou a domicílio. Muitos
“medicamentos para mulheres” disfarçavam abortivos.
Durante o Estado Novo, valorizou-se
a ideia de coesão social necessária para fortalecer
a pátria. Esse apelo implicava na definição de
um modelo de família que expurgaria todas as ameaças
à ordem: imoralidade, sensualidade e indolência. A população
suspeita de incorrer nesses “delitos” sofria repreensões.
O papel da mulher não era na rua, trabalhando, mas em casa,
cuidando dos filhos. E de todos. Nada de controlar o tamanho das famílias,
mas de cuidá-la para não produzir casamentos desfeitos
com suas consequências: alcoolismo, delinquência, marginalidade.
A questão da reprodução atravessava essa agenda
e cabia à medicina legal e ao médico tratar os delitos
relacionados ao sexo. Num dos mais completos trabalhos apresentados
a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Antonio F. da Costa Júnior
diagnosticava:
“As proporções
a que, em nossos tempos, tem atingido esse crime, tão clara
e perfeitamente previsto no nosso Código penal, nos incita,
ainda mais revoltados pela sua vergonhosa impunidade, a pôr
em evidência a sua brutalidade e hediondez, e a procurar um
meio de saná-lo, quer com medidas de ordem moral, quer com
medidas de ordem legislativas”.
Oswaldo Povoa, médico em Campos,
no sul fluminense, em 1936, dizia ser o aborto um dos problemas principais
da cidade onde clinicava. Seu número seria “infinito”.
Uma vez, a Maternidade local inaugurada, a sala de “infectadas”
não esvaziava jamais. “Muitas procuram o profissional,
ainda com a sonda criminosa introduzida no canal cervical”,
queixava-se, chocado. O preço do serviço era de dez
a vinte mil réis. E, numa época em que população
grande rimava com desenvolvimento, concluía pesaroso: “A
expressão “a riqueza do pobre, são os filhos”,
só existe de memória”.
As causas de tanta “depravação?”:
“A mulher casada que engravida na ausência do marido,
a mulher freqüentadora do meio chique e cuja gravidez lhe impede
continuar a comparecer a festas e reuniões, etc. A demi-mondaine,
perturbada no exercício de sua profissão por uma gravidez
inoportuna, a amásia que se vê surpreendida por uma gravidez
inesperada, e finalmente a representante da classe burguesa, cujo
modesto orçamento seria desequilibrado pela vinda de uma criança,
que tem achado como único recurso para sua situação,
a prática do aborto”.
E martelando a tese de que o produto
de uma gravidez pertencia ao Estado:
“O produto da concepção
normal não pertence só a mãe, ele pertence também
ao Estado [...] a prática do aborto criminoso suprime o indivíduo,
membro da família, de que se compõe o Estado”.
Apesar do controle, os “fazedores
de anjos” estavam em toda a parte. Impunidade e hediondez são
palavras que se associavam a prática exercida por profissionais
ou curiosos. Sobretudo, pois havia ali uma indústria rendosa.
Nos jornais da capital publicavam-se, sem cerimônias, anúncios:
“Mme. P… parteira e massagista,
com doze anos de prática, possui uma descoberta para senhoras
doentes, que não possam ter filhos, assim como tem outros segredos
particulares; garante-se ser infalível; aceita parturientes
em pensão”. Ofereciam-se, também, “consultas
grátis e “cura radical sem dor, nem operação”
para “evitar a gravidez”: um eufemismo para abortar.
Em 1940, o novo Código penal
definia prisão de um a três anos para a gestante, sem
qualquer facilidade. Acrescia, contudo, que em caso de estupro ou
de risco de vida, admitia-se a operação. Eram os chamados
casos “permissivos”. Apesar dos cuidados legais, poucas
mulheres foram punidas por aborto voluntário. A maioria tinha
que enfrentar a repreensão social: polícia em casa,
depoimentos de parentes e vizinhos, fofocas e humilhações.
Acusadas de “amantes” de alguém, esse “alguém”,
contudo, raramente dava as caras.
Pesquisas sobre quem abortava indicam
que eram poucas amantes e muitas, as mães de família:
mulheres casadas, com vários filhos, tentavam a todo o custo
impedir o crescimento da família já numerosa. Sabiam
que mais rebentos seriam sinônimo de maior pobreza. Receitas
para “fazer descer as regras”, a base de artemijo, cipó
milone, casaca de romã foram eficientes fatores de controle
familiar, por décadas. Hoje, calcula-se em torno de 750.000
a 1,4 milhões de abortos no Brasil. O clandestino ainda é
responsável ela morte de muitas mães. Entre elas, Jandira
Magdalena.