A virada conservadora da Igreja é uma resposta
ao dogmatismo moderno que se infiltrou na própria tradição
católica
O mundo intelectual é dado a sectarismos agressivos. Um deles
é aquele que opõe conservadores a liberais ou progressistas.
Há um risco (de vida) grande se você for visto como "conservador".
Uma carreira intelectual pode ser destruída se alguém
é identificado como tal.
O termo é usado de modo pouco preciso, aliás,
como é característico num debate que visa antes de tudo
a inexistência do próprio debate, em favor de militâncias
de toda espécie. O fato é que para aprofundarmos a discussão,
seria necessário examinar um certo “pacote” de
temas que indicam se estamos diante ou não de um pensamento
conservador. A questão que deveria ser posta antes de tudo
é: afinal, conservar o quê? O que significa a história,
a filosofia e a teologia da atitude conservadora?
Segundo Russel Kirk, no seu clássico “The
Conservative Mind - From Burke to Eliot” (Ragnery Publishing),
lançado em 1953, é possível identificarmos o
pensamento conservador histórico a partir de determinadas chaves
de análise da realidade. Além disso, há uma data
precisa para o surgimento dessa atitude intelectual: a Revolução
Francesa e as controvérsias e desdobramentos que a seguiram,
envolvendo pensadores distintos como Edmund Burke, Joseph de Maîstre,
Fiodor Dostoiévski ou Alexis de Tocqueville, entre outros -
talvez devêssemos falar de "conservadorismos" desde
o final do XVIII até hoje. A consciência histórica
impõe diferenças importantes se quisermos compreender
a atitude conservadora, mas não podemos nos dedicar a essas
diferenças aqui, por isso tomamos os traços comuns como
objeto de reflexão.
Uma das características centrais da atitude
conservadora é uma suspeita grande para com a arrogância
da “Raison” ou do “Understanding”, suas abstrações,
generalizações, projeções e cálculos.
O “racionalismo prático” não passa de uma
crença (de segunda categoria) vivida pelos “revolucionários
radicais” como atitude científica. Se tudo que diz respeito
à vida humana em sociedade é em alguma medida crença
e convenção (traço “cético”
do pensamento conservador que a esmagadora maioria “progressista”
desconhece absolutamente), a diferença está na “quantidade
e qualidade de tempo” que uma convenção tem de
sucesso na luta contra a entropia social e existencial (aqui, quem
“duvida” é a mente conservadora, quem “crê”
é a progressista).
Nada é mais risível para uma mente conservadora
do que a idéia de que a economia “explique” o homem
ou de que a política “explique” a moral ou de que
exista uma engenharia político-social calculável. Para
o pensamento conservador a base de tudo que existe é sempre
moral e religiosa, nunca econômica ou política.
Existe uma camada ativa de mistério na vida
humana, na história e no cosmos - a Providência que se
“mistura” com a microtessitura da realidade humana - e
essa camada não é passível de reducionismos lógicos
ou de cálculos a partir das “práticas sociais
materiais”. Não que não existam essas práticas,
ou que elas não tenham efeitos sobre a vida, é justamente
o contrário: a mente conservadora quer proteger a teia sofisticada
dessas práticas contra a estupidez redutora do concreto e do
múltiplo da vida ao abstrato e “lógico”
das “teorias sociais científicas” que uniformizam
tudo a serviço da crença abstrata no “processo
material racional”, seja ele benthamiano ou marxista.
Há que conservarmos aquilo que foi estabelecido
há milênios, conservarmos o lento processo de mudança
e estabilidade que envolve práticas repetidas infinitamente,
práticas essas que sustentam a vida para além dos conceitos
artificiais inventados por “técnicos de gabinetes da
história” (o gabinete aqui representa a pequenez de seu
olhar para a infinidade de variáveis em jogo na história
e na vida real, como diria Tolstoi, em seu monumental “Guerra
e Paz”). O progressista é um adolescente que leu alguns
livros e resolveu mudar o mundo a partir das “Luzes”.
O otimismo dos utilitaristas ou dos revolucionários
socialistas contrasta com a crítica dura dos conservadores
à ligeireza do humanismo moderno. Jamais se deve confiar o
homem às suas próprias invenções demasiadamente
auto-confiantes (a mente conservadora não é a priori
contra a mudança, quem tem a prioris teóricos são
os progressistas), mas a maior virtude prática não é
a devoção ao novo, mas a reverência a prudência.
A fim de conservar o homem é necessário defendê-lo
de sua possível entropia natural. O humanismo excessivamente
otimista, e seus braços armados, a tecnociência e a engenharia
político-social, podem inviabilizar a continuidade do homem,
e o maior risco é a aparente “racionalidade” da
busca furiosa por fazer a “vida mais fácil” e reduzir
o sofrimento a qualquer preço.
Afinal, conservar o quê? A vida, contra a auto-destrutividade
e limites da própria natureza humana que, na modernidade, se
traveste de Razão. O que caracteriza o objeto da crítica
dos conservadores do período pós-revolucionário
é o dogma da autonomia racional e moral humana, passível
de ser construída através de grandes cálculos
político-sociais.
Para compreendermos a história desse processo,
somos obrigados a adentrar o debate interno a história do pensamento
cristão. Nesse sentido, histórica e filosoficamente,
a mente conservadora é um conceito que dialoga necessariamente
com as vicissitudes do pensamento cristão no embate com as
dimensões social, política, técnica e existencial,
e por isso mesmo se trata de um fenômeno interno a esta herança.
O caminho é longo e não podemos percorrê-lo
aqui, mas qualquer discussão sobre a história do pensamento
conservador deveria começar, num primeiro momento, nas controvérsias
entre a tradição agostiniana e os diferentes graus de
aristotelização do pensamento cristão no século
XIII e, num segundo momento, nas decorrentes afirmações
de autonomia racional e moral do homem contra os limites impostos
a essa autonomia pela “filosofia do pecado” (Agostinho
e tradição monástica).
No Renascimento esse processo se radicaliza com a
vitória indiscutível dos herdeiros contrários
à “filosofia do pecado”. Essa filosofia implica
a noção de que o homem tem limites estruturais que não
podem ser ultrapassados pela atividade intelectual ou moral produzida
pelo próprio indivíduo, mas sim (com graus distintos
de sucesso) pela tradição religiosa representante de
um conhecimento que transcende os limites humanos. Essa tradição
se revelaria mais capaz em se tratando de compreender os homens e
mulheres reais, para além das abstrações que
produzimos sobre eles -o que caracterizaria a nós modernos
é estarmos saturados de crença nessas abstrações.
O teste supremo é a estabilidade alcançada
ao longo do tempo pelos modos de como lidar com os problemas criados
pela natureza humana. Conservar aqui significa salvar o futuro contra
a idéia de que devamos confiar no auto-julgamento. Se entendermos
que “tudo é humano”, no sentido de que mesmo aquilo
que os religiosos entendem como divino seja apenas cultural, a diferença
entre os herdeiros do “humanismo renascentista” e os derrotados
agostinianos (defensores dos limites impostos pelo pecado) será
precisamente o ceticismo antropológico que caracterizará
o segundo grupo contra o otimismo moral do primeiro.
Ao lado do ceticismo antropológico, a defesa
da tradição que “aprendeu” a lidar com esses
limites pela longa exposição a eles. Nesse sentido,
as tradições (religiosas ou não) são material
fundamental para qualquer pensamento conservador contra a ilusão
de que a vida tenha a uniformidade racional de uma equação
matemática, pura abstração inorgânica.
Uma decorrência dessa herança humanista
foi a submissão plena do pensamento cristão ao dogmatismo
da suficiência humana renascentista de autores como Pico de
la Mirandola e seus descendentes, de Rousseau à Bentham, de
Hegel a Marx. Nesse processo, o cristianismo passou a ler mais Marx,
Nietzsche, Feuerbach e Freud, entre outros (todos críticos
dos “limites” da atitude religiosa diante do mundo), do
que Gregório de Nyssa, Agostinho, Bernardo ou Tomas de Aquino
– a própria teologia se fez materialista.
Como conseqüência, diante de sintomas típicos
do mundo criado pela abstração progressista (muitos
deles previstos pelos conservadores da virada do XVIII para o XIX:
crise dos valores, destruição das relações
cotidianas, insuficiência da educação baseada
na liberdade, individualismo patológico, dissolução
dos afetos entre homem e mulher, desinteresse pela prole, obsessão
pela vida material, escravização ao trabalho etc.),
o Cristianismo acabou por buscar no pensamento não-religioso
(leia-se, progressista) elementos para lidar com muitos desses problemas
(a teologia marxista da libertação é apenas um
desses exemplos).
O Cristianismo, enquanto escola de pensamento, deixou
de ser convidado à mesa do debate (a menos que “convertido”,
em alguma medida, às teorias jacobinas), justamente por ser
um dos itens a ser superados segundo os mestres das novas teorias
que finalmente teriam descoberto a chave “científica”
do mundo da felicidade.
A dita revolução conservadora de Roma
é exatamente um ato de inflexão diante do dogmatismo
moderno que se infiltrou na própria tradição
católica (cristianismo jacobino), e, neste sentido, deve ser
vista como uma crítica aberta aos valores e teorias que alimentam
o dogmatismo da autonomia humana, antes de tudo no seio do próprio
catolicismo.
No plano do comércio das idéias, o Vaticano
vem enfrentando temas caros à sensibilidade jacobina (aborto
como instrumento de qualidade de vida, dissolução das
diferenças entre homens e mulheres, extinção
do papel reprodutivo do sexo, utilização de seres humanos
como matéria-prima para pesquisa, exclusão sistemática
do significado do sofrimento em favor de um integralismo da felicidade
etc.) de modo claramente conservador - para além do que o senso
comum pense disso, uma vez que hoje o senso comum já foi ganho
pelo dogmatismo da autonomia e pela fé na perfectibilidade
infinita do homem.
No horizonte está a aposta de que há
reparos a serem feitos num tecido já estragado pelos excessos
da abstração humanista. No caso específico do
“Cristianismo Jacobino”, esses excessos
da dogmática humanista poderiam implicar a pura e simples extinção
do Cristianismo de Roma como forma histórica.
Para além de uma querela acerca da sobrevivência
de uma forma específica de Cristianismo, permanece a indagação
conservadora: será a virada jacobina uma opção
por uma idealização suicida do próprio humano?
Lembremos que uma das marcas do pensamento conservador é a
consciência do caráter de convenção da
ordem social. Se redefinirmos "cientificamente" (por convenção
legal) o humano como algo apenas que existe a partir da concepção,
o que nos impedirá de utilizarmos as qualidades estéticas
dos embriões em favor do integralismo da juventude artificial?