Luiz Felipe Pondé

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Luiz Felipe Pondé
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A virada conservadora da Igreja é uma resposta ao dogmatismo moderno que se infiltrou na própria tradição católica


O mundo intelectual é dado a sectarismos agressivos. Um deles é aquele que opõe conservadores a liberais ou progressistas. Há um risco (de vida) grande se você for visto como "conservador". Uma carreira intelectual pode ser destruída se alguém é identificado como tal.

O termo é usado de modo pouco preciso, aliás, como é característico num debate que visa antes de tudo a inexistência do próprio debate, em favor de militâncias de toda espécie. O fato é que para aprofundarmos a discussão, seria necessário examinar um certo “pacote” de temas que indicam se estamos diante ou não de um pensamento conservador. A questão que deveria ser posta antes de tudo é: afinal, conservar o quê? O que significa a história, a filosofia e a teologia da atitude conservadora?

Segundo Russel Kirk, no seu clássico “The Conservative Mind - From Burke to Eliot” (Ragnery Publishing), lançado em 1953, é possível identificarmos o pensamento conservador histórico a partir de determinadas chaves de análise da realidade. Além disso, há uma data precisa para o surgimento dessa atitude intelectual: a Revolução Francesa e as controvérsias e desdobramentos que a seguiram, envolvendo pensadores distintos como Edmund Burke, Joseph de Maîstre, Fiodor Dostoiévski ou Alexis de Tocqueville, entre outros - talvez devêssemos falar de "conservadorismos" desde o final do XVIII até hoje. A consciência histórica impõe diferenças importantes se quisermos compreender a atitude conservadora, mas não podemos nos dedicar a essas diferenças aqui, por isso tomamos os traços comuns como objeto de reflexão.

Uma das características centrais da atitude conservadora é uma suspeita grande para com a arrogância da “Raison” ou do “Understanding”, suas abstrações, generalizações, projeções e cálculos. O “racionalismo prático” não passa de uma crença (de segunda categoria) vivida pelos “revolucionários radicais” como atitude científica. Se tudo que diz respeito à vida humana em sociedade é em alguma medida crença e convenção (traço “cético” do pensamento conservador que a esmagadora maioria “progressista” desconhece absolutamente), a diferença está na “quantidade e qualidade de tempo” que uma convenção tem de sucesso na luta contra a entropia social e existencial (aqui, quem “duvida” é a mente conservadora, quem “crê” é a progressista).

Nada é mais risível para uma mente conservadora do que a idéia de que a economia “explique” o homem ou de que a política “explique” a moral ou de que exista uma engenharia político-social calculável. Para o pensamento conservador a base de tudo que existe é sempre moral e religiosa, nunca econômica ou política.

Existe uma camada ativa de mistério na vida humana, na história e no cosmos - a Providência que se “mistura” com a microtessitura da realidade humana - e essa camada não é passível de reducionismos lógicos ou de cálculos a partir das “práticas sociais materiais”. Não que não existam essas práticas, ou que elas não tenham efeitos sobre a vida, é justamente o contrário: a mente conservadora quer proteger a teia sofisticada dessas práticas contra a estupidez redutora do concreto e do múltiplo da vida ao abstrato e “lógico” das “teorias sociais científicas” que uniformizam tudo a serviço da crença abstrata no “processo material racional”, seja ele benthamiano ou marxista.

Há que conservarmos aquilo que foi estabelecido há milênios, conservarmos o lento processo de mudança e estabilidade que envolve práticas repetidas infinitamente, práticas essas que sustentam a vida para além dos conceitos artificiais inventados por “técnicos de gabinetes da história” (o gabinete aqui representa a pequenez de seu olhar para a infinidade de variáveis em jogo na história e na vida real, como diria Tolstoi, em seu monumental “Guerra e Paz”). O progressista é um adolescente que leu alguns livros e resolveu mudar o mundo a partir das “Luzes”.

O otimismo dos utilitaristas ou dos revolucionários socialistas contrasta com a crítica dura dos conservadores à ligeireza do humanismo moderno. Jamais se deve confiar o homem às suas próprias invenções demasiadamente auto-confiantes (a mente conservadora não é a priori contra a mudança, quem tem a prioris teóricos são os progressistas), mas a maior virtude prática não é a devoção ao novo, mas a reverência a prudência. A fim de conservar o homem é necessário defendê-lo de sua possível entropia natural. O humanismo excessivamente otimista, e seus braços armados, a tecnociência e a engenharia político-social, podem inviabilizar a continuidade do homem, e o maior risco é a aparente “racionalidade” da busca furiosa por fazer a “vida mais fácil” e reduzir o sofrimento a qualquer preço.

Afinal, conservar o quê? A vida, contra a auto-destrutividade e limites da própria natureza humana que, na modernidade, se traveste de Razão. O que caracteriza o objeto da crítica dos conservadores do período pós-revolucionário é o dogma da autonomia racional e moral humana, passível de ser construída através de grandes cálculos político-sociais.

Para compreendermos a história desse processo, somos obrigados a adentrar o debate interno a história do pensamento cristão. Nesse sentido, histórica e filosoficamente, a mente conservadora é um conceito que dialoga necessariamente com as vicissitudes do pensamento cristão no embate com as dimensões social, política, técnica e existencial, e por isso mesmo se trata de um fenômeno interno a esta herança.

O caminho é longo e não podemos percorrê-lo aqui, mas qualquer discussão sobre a história do pensamento conservador deveria começar, num primeiro momento, nas controvérsias entre a tradição agostiniana e os diferentes graus de aristotelização do pensamento cristão no século XIII e, num segundo momento, nas decorrentes afirmações de autonomia racional e moral do homem contra os limites impostos a essa autonomia pela “filosofia do pecado” (Agostinho e tradição monástica).

No Renascimento esse processo se radicaliza com a vitória indiscutível dos herdeiros contrários à “filosofia do pecado”. Essa filosofia implica a noção de que o homem tem limites estruturais que não podem ser ultrapassados pela atividade intelectual ou moral produzida pelo próprio indivíduo, mas sim (com graus distintos de sucesso) pela tradição religiosa representante de um conhecimento que transcende os limites humanos. Essa tradição se revelaria mais capaz em se tratando de compreender os homens e mulheres reais, para além das abstrações que produzimos sobre eles -o que caracterizaria a nós modernos é estarmos saturados de crença nessas abstrações.

O teste supremo é a estabilidade alcançada ao longo do tempo pelos modos de como lidar com os problemas criados pela natureza humana. Conservar aqui significa salvar o futuro contra a idéia de que devamos confiar no auto-julgamento. Se entendermos que “tudo é humano”, no sentido de que mesmo aquilo que os religiosos entendem como divino seja apenas cultural, a diferença entre os herdeiros do “humanismo renascentista” e os derrotados agostinianos (defensores dos limites impostos pelo pecado) será precisamente o ceticismo antropológico que caracterizará o segundo grupo contra o otimismo moral do primeiro.

Ao lado do ceticismo antropológico, a defesa da tradição que “aprendeu” a lidar com esses limites pela longa exposição a eles. Nesse sentido, as tradições (religiosas ou não) são material fundamental para qualquer pensamento conservador contra a ilusão de que a vida tenha a uniformidade racional de uma equação matemática, pura abstração inorgânica.

Uma decorrência dessa herança humanista foi a submissão plena do pensamento cristão ao dogmatismo da suficiência humana renascentista de autores como Pico de la Mirandola e seus descendentes, de Rousseau à Bentham, de Hegel a Marx. Nesse processo, o cristianismo passou a ler mais Marx, Nietzsche, Feuerbach e Freud, entre outros (todos críticos dos “limites” da atitude religiosa diante do mundo), do que Gregório de Nyssa, Agostinho, Bernardo ou Tomas de Aquino – a própria teologia se fez materialista.

Como conseqüência, diante de sintomas típicos do mundo criado pela abstração progressista (muitos deles previstos pelos conservadores da virada do XVIII para o XIX: crise dos valores, destruição das relações cotidianas, insuficiência da educação baseada na liberdade, individualismo patológico, dissolução dos afetos entre homem e mulher, desinteresse pela prole, obsessão pela vida material, escravização ao trabalho etc.), o Cristianismo acabou por buscar no pensamento não-religioso (leia-se, progressista) elementos para lidar com muitos desses problemas (a teologia marxista da libertação é apenas um desses exemplos).

O Cristianismo, enquanto escola de pensamento, deixou de ser convidado à mesa do debate (a menos que “convertido”, em alguma medida, às teorias jacobinas), justamente por ser um dos itens a ser superados segundo os mestres das novas teorias que finalmente teriam descoberto a chave “científica” do mundo da felicidade.

A dita revolução conservadora de Roma é exatamente um ato de inflexão diante do dogmatismo moderno que se infiltrou na própria tradição católica (cristianismo jacobino), e, neste sentido, deve ser vista como uma crítica aberta aos valores e teorias que alimentam o dogmatismo da autonomia humana, antes de tudo no seio do próprio catolicismo.

No plano do comércio das idéias, o Vaticano vem enfrentando temas caros à sensibilidade jacobina (aborto como instrumento de qualidade de vida, dissolução das diferenças entre homens e mulheres, extinção do papel reprodutivo do sexo, utilização de seres humanos como matéria-prima para pesquisa, exclusão sistemática do significado do sofrimento em favor de um integralismo da felicidade etc.) de modo claramente conservador - para além do que o senso comum pense disso, uma vez que hoje o senso comum já foi ganho pelo dogmatismo da autonomia e pela fé na perfectibilidade infinita do homem.

No horizonte está a aposta de que há reparos a serem feitos num tecido já estragado pelos excessos da abstração humanista. No caso específico do “Cristianismo Jacobino”, esses excessos da dogmática humanista poderiam implicar a pura e simples extinção do Cristianismo de Roma como forma histórica.

Para além de uma querela acerca da sobrevivência de uma forma específica de Cristianismo, permanece a indagação conservadora: será a virada jacobina uma opção por uma idealização suicida do próprio humano? Lembremos que uma das marcas do pensamento conservador é a consciência do caráter de convenção da ordem social. Se redefinirmos "cientificamente" (por convenção legal) o humano como algo apenas que existe a partir da concepção, o que nos impedirá de utilizarmos as qualidades estéticas dos embriões em favor do integralismo da juventude artificial?

 


Luiz Felipe Pondé
É professor de pós-graduação em ciências da religião e do departamento de teologia da PUC-SP e da Faculdade de Comunicação da FAAP. Publicou, entre outros livros, "Conhecimento na Desgraça" (Edusp, 2004).

 




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