UM SENTIDO DE MODERNIDADE
O homem contemporâneo perdeu
a confiança em sua capacidade de controlar o futuro. O futuro
está na esquina, em cada laboratório, ou nas quatro
paredes de uma sala, onde um pensador elabora novas proposições
para a humanidade. O homem contemporâneo vive assim, um pouco
como Narciso, assustado com sua própria imagem.
Nestes últimos 80 anos não houve sistema científico
que não tenha sido virado do avesso, tão pouco concepções
filosóficas que tenham resistido.
O mundo moderno é caracterizado pela contradição
existente da força entre o desenvolvimento tecnológico
que a cada dia nos oferece uma nova noção acerca do
tempo, do espaço e da história, e as exigências
sentimentais de relacionamento, trabalho, vida em sociedade, família
e sexo.
Ao verificar este estado de coisas, muitas vezes nos questionamos
se realmente houve evolução, afinal, não continuamos
como nossos antepassados, com um pouco menos de pelo e um instrumental
mais sofisticado? Esta sensação de estacionamento, no
entanto, é ilusória, as máquinas, os avanços
tecnológicos nos libertaram das doenças, das epidemias,
tornou nosso trabalho mais leve e a perspectiva de vida humana foi
ampliada. No entanto, ao par deste avanço, continuamos com
um sistema social injusto que manipula as descobertas da ciência,
que deveriam ser um patrimônio coletivo, em proveito egoístico
de poucos. A televisão é um instrumental maravilhoso,
pródigo em possibilidades, as máquinas eletrônicas
dessa terceira fase de revolução industrial que atravessamos
são capazes de equilibrar as informações, armazenando
dados essenciais para a vida humana.
Rodeado de uma parafernália capaz de lhe assegurar uma condição
de vida melhor, contraditoriamente o homem sente-se inseguro. Ao lado
de toda essa evolução, paramos nas janelas de nossos
edifícios e olhamos a cidade, com seu tecido urbano totalmente
comprometido pelos interesses de circulação e escoamento
das mercadorias; as ruas cheiasde automóveis, o ar totalmente
poluído. A cidade perdeu, assim, seu valor de uso e ficamos
somente com o valor de troca e, o que ainda é pior, chamamos
isso de progresso.
Todas as ideologias do inicio do século tais como o Marxismo,
o Existencialismo, a Psicanálise e, mais recentemente, a Linguística,
que propunham uma saida para o homem ruíram ou estão
sendo reavaliadas.
A África mantém um sistema social do século 18,
com todos os diamantes e poderes do século 20. No nordeste
brasileiro temos toda uma geração de crianças
comprometidas na sua capacidade de raciocínio, por falta de
alimentação; gastamos somente no ano de 1985, quatro
vezes mais em armamentos do que as dívidas externas dos países
em desenvolvimento juntos.
Contraditoriamente, enviamos máquinas maravilhosas para visitar
outros planetas em uma viagem fantástica, que a apenas 50 anos
atrás seria inconcebível.
Criamos, assim, nesses últimos 100 anos, uma sociedade tecnológica
extremamente erudita e culturalmente fraca; pois a erudição
é a característica do conhecimento que valoriza a informação,
colocando-a em um patamar distante da formação e da
vida. A cultura, no entanto, concebida como atividade humana, só
tem um significado: a realização do homem, esse animal
muito especial e peculiarmente dotado; uma espécie única,
solitária e social.
Estas oposições da sociedade são as molas propulsoras
da evolução. As discrepâncias e a aparente desorganização
reinante são as tendências naturais do universo. O homem,
o ser pensante do universo, opõe-se a esse processo criando
ordem, buscando organizar e gerando, por contradição,
novo estado de desorganização. Assim, neste processo
dialético, na busca de uma síntese impossível,
fazemos nossa evolução. No caos aparencial da vida,
construímos a Vida.
Fomos acostumados a ver tudo isso de maneira excludente, colocando
de um lado o que é mal e de outro, o que é bom. Não
exploramos nossa capacidade de questionamento a respeito dos fatos,
para concluirmos até que ponto tal fenômeno é
natural ou cultural e, consequentemente, manipulado. Procuramos sempre
um fim utilitário e imediatista para tudo que nos cerca.
Perdemos nossa capacidade poética de ver e sentir a vida. Sempre
precisamos mensurar as coisas, para verificar qual o retorno em termos
de benefícios materiais que tal possa nos trazer, afastando-nos
cada vez mais da forma de pensar da filosofia e da ciência contemporânea,
que não indagam mais sobre o tamanho do universo, e sim, se
ele é "aberto" ou "fechado".
Estamos, assim, por imposição de uma sociedade utilitarista,
míopes para perceber o que nos cerca; estudar o que nos interessa;
desenvolver nossa sensibilidade para com o universo que nos rodeia.
Preso, com os dois pés no chão, o homem contemporâneo
não percebe que mesmo para se locomover é necessário
que um esteja no ar para que ele consiga caminhar.
Esse Homem Contemporâneo somos todos nós que, nestes
últimos anos, construímos a história, da qual
o Espiritismo participa. O que nos cabe hoje, passados 130 (155) anos
de sua existência é avaliar qual sua participação
nesta história.
CONTEMPORANEIDADE DO ESPIRITISMO
A influência do espiritismo
na evolução do homem contemporâneo inexiste.
Afastamo-nos da cultura de nosso tempo e não pudemos influenciá-la.
Fizemos questão, principalmente a partir da década de
30, em nos institucionalizarmos como religião, esquecendo e
por vezes considerando desnecessários os estudos e as pesquisas
que visavam interrelacionar o Espiritismo com as demais áreas
do conhecimento.
Esta tendência quase à natural da cultura do Ocidente,
reforçada a partir da Revolução Francesa, de
departamentalizar o conhecimento, nos levou por questão de
formação a uma área estanque e indiscutível,
aquela que trata das questões divinas e sagradas, onde a ciência
humana não tem acesso. A consequência primeira disso
foi passarmos a encarar os livros espíritas como livros santos,
e seus médiuns e dirigentes na condição de mitos.
Tal corte histórico tem a intenção de análise
para verificar os fatores que determinaram o atual estado do Espiritismo,
o que nos leva a perguntar: há um sentido de atualidade nas
propostas espíritas? O Espiritismo atende aos anseios do homem
contemporâneo?
Os princípios fundantes da filosofia espírita por se
assentarem na natureza, continuam e continuarão com o mesmo
significado do início, ou seja, a imortalidade não é
um patrimônio da filosofia espírita mas uma condição
natural humana. A maneira pela qual o Espiritismo a estudou e as consequências
morais advindas de tal fato continuam sendo atuais, pois se não
conseguimos comprovar a imortalidade do homem para a coletividade,
também não foi possível acabar com sua possibilidade.
As circunstâncias podem ter variado, a metodologia científica
positivista empregada por Kardec pode estar ultrapassada, mas o principio
é o mesmo.
Ha uma outra questão, sobre este sentido de atualidade do Espiritismo,
a qual prende-se o seu movimento. Nós nos organizamos para
DEFENDER uma verdade e não para ESTUDAR suas possibilidades.
Esta foi a consequência mais direta de tê-lo elevado à
condição de algo divino; e o que é divino se
defende e não se questiona.
O que nos interessava não era a descoberta inicial, mas a busca
contínua da verdade acerca da imortalidade do ser. A vida e
movimento constante, múltipla em suas determinações,
não-linear em suas relações; e o Espiritismo
para responder aos anseios do homem contemporâneo não
pode pretender-se uma doutrina totalitária, capaz de equacionar
tudo ou servir de tábua de consolo a todos.
O Espiritismo é um processo vivo não acabado, que caminha
em par com o desenvolvimento tecnológico e com as descobertas
do homem, e por trazer ao conhecimento um dos elementos constitutivos
do universo — o elemento espiritual — ele deveria contribuir
com todos os avanços da ciência e da filosofia. No entanto,
reproduzindo a própria contradição da vida, a
que nos referimos momentos atrás, o movimento espírita
tem sido ao largo da história o principal obstáculo
para o Espiritismo. Com uma filosofia aberta e revolucionária,
montamos um movimento fechado e sectário. Possuímos
uma mensagem capaz de equacionar alguns dos principais problemas do
homem como indivíduo e a sociedade como organismo multicelular,
mas não temos um canal adequado para transmiti-la.
Assim, estamos fora das universidades, fora das discussões
nas áreas da política e da sociedade e, definitivamente,
não fazemos parte da cultura de nosso tempo.
O poeta e pensador Ezra Pound, referindo-se às descobertas
humanas, diz que podemos dividi-la em três categorias de pensadores:
aqueles que ele classifica de Inventores ou Criadores, que são
os que captaram o momento primeiro de uma revelação;
os Mestres, os quais recolhem a ideia original proposta pelos Inventores,
a desenvolvem e ampliam-na, tornando-a mais rica e compreensível.
E, finalmente, Pound nos fala dos Diluidores, os que distorcem a ideia
inicial, comprometendo o objetivo central da mesma.
Em nosso meio alimentamos grande número de Diluidores do pensamento
original de Allan Kardec, aceitando-os como Mestres, quer sejam encarnados
ou não. Com isto, descaracterizamos em grande parte a proposta
inicial. Desprezamos alguns poucos Mestres que desenvolveram com fidelidade
a proposta inicial e valorizamos aqueles que diluíram o caráter
racional do Espiritismo e acentuaram em suas propostas nossas tendências
místicas.
A realidade histórica demonstra que sempre modificamos as ideias
iniciais. Os Romanos fizeram isso com o mundo Grego; desfiguramos
o Cristianismo e na Ásia ocorreu o mesmo com o Budismo. Mesmo
nos meios materialistas transformamos Marx em um fantoche e o Marxismo
em uma seita para intenções individuais e escusas. Essa
tendência humana colocou o movimento espírita em um impasse,
caracterizado pela impossibilidade de colocarmos nossos conceitos
frente a uma sociedade que se encontra entre dois extremos: de um
lado, o ceticismo materialista do nada e de outro, o misticismo pueril
das religiões. A visão espírita, que seria integralizadora,
onde o homem é visto em toda a sua complexidade sócio-bio-psíquico
espiritual não consegue ter participação nessa
discussão, que polariza os dois extremos da filosofia contemporânea.
A HUMANIZAÇAO DO ESPIRITISMO
A finalidade principal de qualquer
teoria, quer seja ela científica ou filosófica, é
o Homem.
O Espiritismo é uma filosofia humanista, sendo, portanto, seu
objetivo primordial o homem. Colocando-a num plano sobrenatural, inacessível
ao ser comum, nós o desumanizamos e perdemos o contato com
o plano real, com a sociedade dos homens.
Nossa literatura, principalmente a mediúnica, fala de coisas
etéreas. Em nossos romances permeia a ideia do sexo como um
tabu, como pecado. A comida é tida em boa parte de nosso meio
como algo excessivamente "material". Nossas instituições,
principalmente aquelas com porte grande, mantém características
hierárquicas bem definidas e nossos centros possuem um espaço
arquitetônico semelhante ao dos templos: seu desenho designa
sua função.
Será necessário reciclar novamente nossa perspectiva
de atuação na sociedade, se quisermos participar dela.
Justificarmos tudo como uma tendência mística de nosso
povo nos levará a rodar em falso e o mundo nunca se transformará.
Mudar não significa destruir, mas compreender que o processo
do "novo" faz parte da história.
Continuar construindo templos, editando livros sagrados, fazendo reuniões
com ar de mistério, não nos aproximará do homem
atual, mas sim, nos distanciará cada vez mais.
Os jovens continuarão indo ás universidades e ouvirão
o discurso materialista. Essas serão as cabeças que
irão fazer as leis e dirigir o mundo de amanhã.
Devemos humanizar o Espiritismo, recolocá-lo no plano humano
para atender as reivindicações do homem. O Espiritismo
é uma proposta viável para o ser humano, desde que seja
encarado como um processo natural.
Os assuntos que ele aborda referem-se às questões que
até aqui têm sido objeto somente das religiões
e das seitas ocultas. Mas, ele é justamente o rompimento dessa
tradição secular entre o sagrado e o profano. Uma nova
forma de ver e estudar as questões da natureza espiritual do
homem. Assim como Galileu no século 16, através de seus
estudos foi preso e quase queimado pela inquisição,
e apesar de tais estudos não serem religiosos, discordavam
da concepção religiosa da época, mas que nossos
filhos hoje estudam nas escolas nas aulas de ciência natural.
O mesmo caminho, por certo, deverá percorrer o Espiritismo.
Seus estudos necessitam de uma forma nova, mais criativa e adequada
ao nosso desenvolvimento, a fim de se integrarem ao domínio
das Ciências Naturais.
Como já dizia Kardec: "A ciência sem o Espiritismo
é incompleta e o Espiritismo sem a ciência carece de
provas" (A Gênese, cap. I). Já
caminhamos por vários anos nessa estrada. São mais de
100 anos de um Espiritismo apenas consolador e assistencialista. Talvez
tenha sido necessário, pelas contingências socioculturais
de nosso povo, mas temos que encarar o fato de que assim não
influenciaremos o mundo e tão pouco ajudaremos o Homem na sua
Evolução.
APONTAMENTOS FINAIS
Partindo da premissa de ainda ser
possível influenciar a cultura de nosso tempo, é essencial
desenvolver nossos esforços em dois níveis: um prático,
alterando nossas sociedades espíritas, quase que na sua totalidade.
Não permitirmos que nossos centros cresçam em demasia
porque ocasiona invariavelmente a perda da qualidade e a centralização
do poder. Pequenos grupos são preferíveis aos grandes.
Transformar a característica federativa do movimento nacional
sem traumas, criando uma sociedade de estudos e pesquisas espíritas,
aberta a todos os pesquisadores e estudiosos do assunto. Sociedade
esta com caráter científico, filosófico, retomando
as características daquela fundada por Kardec.
A partir daí começar-se-ia a formular uma metodologia
científica, adequada ao século 20, com base na ciência
relativista do mundo contemporâneo. Aproximaríamos-nos
das universidades e dos centros de pesquisa de todo o mundo, onde
se realizam pesquisas na área paranormal, procurando trocar
informações, colher dados e fornecer nossas experiências
retiradas de cada centro espírita com método e bom senso.
Tais mudanças não significam retirar o aspecto ético
do Espiritismo, caindo na contradição da antiga Metapsíquica,
o fenômeno pelo fenômeno o que, aliás, é
impossível acontecer, pois o Espiritismo é uma visão
gestáltica da vida onde razão e sentimento são
as forças que equilibram o universo.
Esse nível prático é uma aproximação
do que seria possível realizar. O segundo nível, que
antecede esse primeiro, é o que se refere ao plano das ideias,
"... e o mundo é o mundo das ideias" (Platão),
são elas que transformam a sociedade através da reencarnação,
num processo dialético entre o individual e o coletivo.
A mentalidade espírita poderá, através de uma
mudança na forma de enfocar a Doutrina, ir alterando sua estrutura,
atingindo cada vez mais um patamar de conhecimentos e uma visão
nova sobre a própria Doutrina.
É essencial olharmos o Espiritismo nesse momento da evolução
humana com os olhos livres, condição necessária
para nos projetar em uma nova etapa do processo evolutivo, onde continuaremos
tentando equacionar a contradição existente na vida
entre a liberdade e a necessidade.
Ciro Pirondi, arquiteto, foi presidente
do Instituto dos Arquitetos do Brasil - IAB Nacional, da Fundação
Vilanova Artigas, fundador da Sociedade Espírita para Estudo
do Homem e Diretor-executivo da Casa Lúcio Costa - RJ.
É diretor da Escola da Cidade, Associação
de Ensino de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo.