Espiritualidade e Sociedade



Ciro Pirondi

>    A Filosofia espírita e as fronteiras do conhecimento

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Ciro Pirondi
>  A Filosofia espírita e as fronteiras do conhecimento

 

 

A ideia de fronteira como parte limite de um espaço em relação ao outro, roubada da Geografia, é uma imagem muito forte com relação ao que Kardec pensou para o Espiritismo: ele seria uma filosofia de borde circundando outras formas de conhecimento.

Portanto, não seria estanque, adequar-se-ia como as margens de um rio ao desenvolvimento permanente da biologia, da sociologia, das artes, sem estabelecer limites aos novos e necessários contornos, que, com o tempo, suas relações necessitassem.

Não deveríamos vê-lo assim, como um sistema filosófico ou científico fechado, mas sim, como uma proposta capaz de influenciar os sistemas, modificando-os a partir da concepção de vida e tempo proposta.

A influência desta ideia se dará em um tempo muito lento, muito maior do que imaginamos, pois as transformações são devagar.

Na pré-história, John Desmond Clark, nos aconselha a crer que, no interior das lentíssimas ondas iniciais da história humana, os diversos níveis culturais foram atingidos através de uma série de estágios de transição, inicialmente numa rápida sucessão e, a seguir, mais graduais, enquanto uma nova meta não fosse atingida.

Morfologicamente, cada espécie seguiu a sua evolução própria, sua própria linha reta em direção ao contínuo aperfeiçoamento e desenvolvimento. O cavalo, por exemplo, até trinta e oito milhões de anos atrás, não conseguia superar 50 centímetros de altura; há vinte e seis milhões de anos atingia 70 centímetros; há sete milhões de anos havia alcançado o metro; há dois milhões de anos, chegou a 120 centímetros e há dois milhões de anos permanece tendo um metro e meio.

"O Senhor Deus formou, pois o homem do barro da terra e aspirou-lhes nas narinas um sopro de vida, e o homem se tornou um ser vidente". (Gênesis 1.2.7)

A evolução do homem depende, sobretudo, de sua própria criatividade, estimulada e enriquecida por três tipos de fatores interativos: os ambientais, os genéticos e os culturais.

A ideia de lentidão ou tempo necessário para que as ideias se assentem e ganhem um espaço definitivo na evolução do homem, passam pelos três fatores acima citados. Parece contraditório a todo processo de velocidade iniciado no século 19 e aplicado no século 20, confundindo-se até mesmo com o conceito de desenvolvimento tecnológico e social: tudo que é mais evoluído é mais rápido e mais veloz.

É verdade que as mudanças cada vez mais acontecem em um espaço de tempo mais curto, desde o exemplo do arco e flecha, que se desenvolveu ao longo de milhares de gerações; no entanto, para passarmos dos arcos aos vôos interplanetários, bastaram algumas centenas de gerações de homens.

No século 21, no entanto, esta associação entre rapidez e evolução; velocidade e bem-estar começa a ser desmontada. Antropólogos e sociólogos são unânimes em afirmar que dois serão os bens primários da vida humana contemporânea: o Tempo e o Silêncio. O que eles estão chamando de slow moviment.

"...Ter tempo, tomar tempo para fazer as coisas, foi o único luxo de minha vida. As pessoas apressadas são infelizes" –
Cartier Bresson.

John Cage, músico e artista norte-americano contemporâneo, deixou escrita uma partitura para ser tocada ao longo dos próximos quatrocentos anos, tendo já sido iniciada há oito anos numa pequena cidade da Alemanha.

A concepção espírita da existência é uma fresta entre esses dois modos de pensamento: o tempo rápido e mono da Bíblia, portanto feito por Deus, determinante, instantâneo e fatalista e o tempo sem fim, moroso e obra do acaso, da visão contemporânea de um certo tipo de materialismo espiritualizado, iniciado por Bacon, com a invenção daquilo que chamamos de modernidade. "Tempo como espaço, possui os seus desertos e as suas solidões".

A ideia de fresta está associada a uma pequena abertura, que permite a passagem do ar e da luz em um muro ou telhado. Esta imagem é forte como valor simbólico da concepção espírita da vida e do mundo, senão vejamos: vivemos em um tempo contínuo, sem interrupção. Aprimoramos nosso ser de maneira descontínua e permanente, agindo em várias áreas, das humanas às exatas, mas sempre no sentido do aperfeiçoamento da nossa presença no Universo. A vida como um descontínuo e permanente desenho inacabado, onde vamos dando forma ao caminhar, sem remorsos ou esperanças injustificadas.

Dessa maneira, o Espiritismo deveria inserir-se como uma forma específica do Conhecimento Humano, estabelecendo relações capazes de produzir cultura e é disso que temos carência, saímos do plano da erudição espírita para a cultura, ou seja, estabelecer relações, parcerias com outras formas de pensamento, com força capaz de influenciar as ações humanas, pois é disto que temos urgência: algo capaz de agir diretamente nas decisões humanas, no cotidiano do homem. Uma inserção silenciosa na cultura.

A visão da condição humana, portanto, é de esperança. Sabemos do futuro permanente e descontínuo de nossa formação, de sua precariedade e seu sentido provisório, no entanto, buscamos a felicidade no tempo presente. Assim, a felicidade não reside no ser ou no ter em um tempo a ser conquistada no caminho, ela é o próprio caminho, a condição permanente de busca, acertos e erros, de incertezas dentro da certeza do futuro irreversível da vida, em dimensões múltiplas e facetadas.

Gosto de citar uma passagem do Fedro, na qual Platão descreve Sócrates, que, já um ancião e cansado, durante uma abafada tarde de verão, se protege num lugar sombreado e aprecia toda a simples fruição que o local oferece: "Ah! Por Hera, que lugar magnífico para se fazer uma pausa! O plátano cobre tanto espaço quanto a sua altura. E esta verbenácea, como é grande, oferecendo uma sombra maravilhosa! Em plena floração, como está, o lugar não poderia ser mais perfumado. E o fascínio ímpar desta fonte que corre sob o plátano, a frescura da sua água: basta pôr o pé para me assegurar... E diga-me, por gentileza, se o ar puro que aqui se respira não é o desejável e extraordinariamente agradável! Clara melodia do verão que faz eco ao coro das cigarras. Mas a mais saborosa dentre essas belezas é este prado, com a natural doçura de sua inclinação, a qual permite, quando nele se deita, que a cabeça fique numa posição perfeitamente confortável".

Domenico De Masi, comentando esta passagem assim se expressa: ao maior intelectual de todos os tempos, ao sábio que mais do que qualquer outro soube explorar os trajetos dos nossos destinos e que acima de todos contribuiu para nos fazer humanos bastam um plátano, um prado, o canto de uma fonte e de uma cigarra para que possa ser completamente feliz.

No tempo contemporâneo devemos ouvir muitas vozes, todas têm algo para nos ajudar a afinar o espírito. Não há e nunca teremos uma fórmula pronta e acabada, sempre trabalharemos na incerteza, solitariamente, de maneira livre.

As principais revoluções dos séculos 20 e 21 se fizeram de maneira invisível e silenciosamente.

"Malgrado os trinta raios que há numa roda é o vão entre eles que a faz útil.
Malgrado ser de barro o vaso é o seu vazio interno que o faz útil.
Malgrado a casa ter porta e janela é o espaço dentro que a faz útil.
... Faz-se útil ou existente devido ao inexistente"
Lao Tse

Apesar da internet e da globalização, que também são invisíveis, vivemos em uma sociedade sem memórias, partimos da memória gravada na pedra, representada por nossos tijolos de argila e nossos obeliscos, onde as pessoas entalhavam seus textos e retornamos à memória eletrônica dos computadores atuais, que têm por base o minério de silício, onde "entalhamos" nossos e-mails. Há ainda a memória vegetal dos livros, e esta nossa memória primária está em Kardec em seus escritos. Não como algo sagrado a ser cultuado, mas como reconhecimento de que sem antepassados não é possível construir o futuro.

A proposta de estabelecer uma objetiva relação de fronteira do Espiritismo com outras disciplinas, vem na direção desta memória, resgatando-a e reescrevendo-a, propondo novos conceitos a partir de seus permanentes princípios, num processo de educação associado à cultura.



Ciro Pirondi, arquiteto, foi presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil - IAB Nacional, da Fundação Vilanova Artigas, fundador da Sociedade Espírita para Estudo do Homem e Diretor-executivo da Casa Lúcio Costa - RJ . É diretor da Escola da Cidade, Associação de Ensino de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo.



Fonte: - http://viasantos.com/pense/arquivo/1350.html
Anais do 10º Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita, realizado de 11 a 14 de outubro de 2007, em Santos-SP.

 

 

 


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