C.
Pimentel & F. Bruno
> Da produção de sentido ao gerenciamento
de informações: uma análise das implicações
das neurociências e biotecnologias sobre a subjetividade
Resumo
O presente artigo aborda a vinculação contemporânea
entre vida e informação no campo das biotecnologias e
neurociências, explorando suas implicações do ponto
de vista da subjetividade. Nesse domínio, tratamos, mais especificamente,
do papel do pensamento para o governo de si. Partindo da arqueologia
foucaultiana, aponta-se a articulação entre vida e linguagem
no âmbito das ciências humanas como eixo fundamental no
qual o pensamento assume função ético-política.
Em seguida, observa-se que os domínios referidos – vida
e linguagem – sofreram notáveis transformações
com o desenvolvimento da biologia molecular, biotecnologias e neurociências.
A vida não seria apenas representável à consciência,
mas está se tornando linguagem informacional, de modo que o pensamento
passa de atividade interpretativa a gerenciadora de informação.
Assim, cabe problematizar os novos contornos que o pensar assume na
contemporaneidade, procurando entender os dispositivos de saber e poder
presentes em dois âmbitos: os testes de pré-disposição
genética e a hipótese do marcador somático.
Ciências & Cognição
2006; Vol. 08.
A importância da informação em nossa cultura é
um dos tópicos bastante ressaltados nas análises da sociedade
contemporânea, abrangendo os mais diversos âmbitos, incluindo
as compreensões e práticas sobre o corpo. Este último
domínio será o objeto de discussão do presente
artigo, que pretende explorar as implicações da
equiparação neurocientífica e biotecnológica
entre organismo e sistema de informações sobre a função
do pensamento. Visto sob uma perspectiva genealógica
[1] , o pensamento na modernidade ocupava uma função ético-política
de monitoramento do que pode comprometer o controle de si, que tem uma
de suas faces predominantes na sexualidade. Deste modo, pensar se vinculava
a uma decifração do desejo, a um estar atento ao mundo
interior. Se essa configuração não desapareceu,
ela não ocupa mais posição central, na medida em
que o campo das biotecnologias e neurociências está submetendo
os perigos monitorados pelo pensamento a transformações.
O cuidado com o corpo está sendo vinculado ao risco, e o pensamento,
se ocupa de decidir.
As raízes dessas práticas se encontram,
no entanto, já estabelecidas na modernidade, quando sujeito e
corpo foram articulados pelas ciências humanas. Em “As
Palavras e As coisas”, Foucault (1987) argumenta que
o homem, enquanto objeto científico, é uma das figuras
mais recentes da história do saber ocidental. Seu nascimento
no saber é uma derivação da constituição
de ciências que historicizam seus objetos, a saber, a biologia,
a economia política e a filologia. Ao ser colocado na posição
de objeto de ciência é descoberto em sua aproximação
com os animais, com as organizações sociais e com as estruturas
lingüísticas. Deste modo, o sujeito perde a transparência
a si mesmo, e a consciência é mergulhada em um campo extenso
de determinações O indivíduo moderno é temporalizado
segundo os diferentes ritmos das alteridades aos quais se conecta: as
da vida, do trabalho e da linguagem.
O domínio da vida é especialmente importante
para a modernidade, pois o avançar das pesquisas genealógicas
apontou uma matriz política para as ciências humanas, a
saber, técnicas que regulam o ser humano, tratando-o como conjunto
populacional que nasce, morre, envelhece e reproduz (Foucault, 2005).
As técnicas estatísticas, nascentes no século XVIII,
ilustram um desses componentes que começam a produzir uma experiência
do sujeito como ser biológico. Mais tarde, no século XIX,
a compreensão do homem como espécie viva se conecta a
uma compreensão individualizante de sua natureza, através
da noção de sexualidade. O corpo sexualizado aparece como
desafio para o controle do indivíduo sobre si próprio,
na medida em que antecede à consciência que temos de nós
mesmos e define nossa verdade mais profunda. Essa verdade tem na interpretação
seu mecanismo privilegiado de iluminação: trata-se de
decifrar o sentido que é produzido a partir do conflito psíquico,
fazer das manifestações orgânicas, sinais de uma
verdade. Portanto, a experiência do sujeito na modernidade pode
ser entendida a partir da articulação entre vida e linguagem
realizada em torno da categoria de produção de sentido
, que sofre agora deslocamentos através do surgimento de concepções
que equiparam o corpo a um sistema de informações. Em
linhas gerais, nossa hipótese sustenta que estamos vivendo a
passagem de um pensamento interpretativo, atento a uma verdade que,
ainda oculta, permanecia aberta e polissêmica, para um pensamento
que gerencia informações tendo em vista a adaptação
do indivíduo a cenários futuros.
Considerando tanto o sujeito quanto o pensamento experiências
históricas, iremos acompanhar suas formatações,
contrastando a experiência moderna com a contemporânea.
No primeiro registro histórico, apreciaremos a constituição
da subjetividade no campo dos cuidados com a sexualidade, para em seguida,
tratar desta constituição no âmbito dos testes de
pré-disposição genética e da hipótese
neuro-científica do marcador somático .
Vida e produção de sentido
A experiência moderna faz do corpo uma referência
fundamental para a subjetividade. Foucault (1987) nos ajuda a compreendê-la,
ao distinguir entre a noção de finitude que impera no
moderno daquela existente no saber clássico. Esta última
alude a uma grandeza infinita, a qual o ser humano se encontra submetido:
trata-se de uma concepção negativa da finitude, pois não
detém seus próprios direitos, sendo definida em relação
a uma realidade superior. A finitude humana era, sobretudo, um obstáculo:
“Para o pensamento do século XVII
e XVIII, era sua finitude que constrangia o homem a viver uma existência
animal, a trabalhar com o suor de seu rosto, a pensar com palavras
opacas.”
(Foucault, 1987: 332)
É somente com o saber moderno que essa relação
de submissão se desfaz, liberando-lhe um espaço próprio.
Assim, o tempo que constrange os homens a existir historicamente passa
a ser a dimensão privilegiada a partir do qual o saber elabora
suas teorias. Surgem disciplinas que buscam explicar seus objetos, situando-os
no tempo histórico, ou seja, buscando uma origem material para
estes. Tal é o caso da economia política, a biologia,
e a filologia, disciplinas inaugurais de um estilo histórico
de reflexão, no qual o tempo não é apenas um elemento
contingente, mas fundamental. Nelas se sustenta um questionamento sobre
o indivíduo finito; pois ainda que não sejam propriamente
ciências humanas, tratam de questões que requerem o homem
sob a forma de ser condicionado pela divisão de classes, pela
seleção natural e pela estrutura da linguagem, implicando
vida, corpo e existência humana em um nó indissociável.
Mas isto se evidenciará mais profundamente nas
recém-chegadas ciências humanas. Tomemos como exemplo dois
campos, cujas concepções acerca do papel da natureza e
da cultura diferem substancialmente, como a psicofísica e a psicanálise.
Apesar de suas evidentes divergências, ambas reconhecem que a
existência humana não pode ser referida exclusivamente
a uma consciência de si apartada, respectivamente, dos circuitos
perceptivos/neurológicos e da sexualidade. Portanto, ambas examinam
a consciência segundo condicionamentos de ordem corporal. Generalizando,
chegamos a conclusão que o pensar moderno é enraizado
no corpo, na vida, no orgânico.
Se essa determinação é um fato,
este, no entanto, não é irrevogável, de modo que
a consciência pode se apropriar daquilo que a condiciona e ampliar
o grau de liberdade da ação. Neste interstício,
se evidencia o papel ético-político da consciência
e da reflexão. O pensamento não é mais concebido
como atividade representativa, tampouco instrumental, de forma que pensar,
na experiência moderna, já é agir. A técnica
psicanalítica ilustra com acuidade a inseparabilidade entre pensar
e ação sobre si (Bruno, 1997).
A noção de verdade aí em jogo aponta para a liberação,
ainda que parcial, do sujeito em relação aos constrangimentos
impostos pelas vicissitudes de sua sexualidade. Tal verdade provém
do conflito entre instâncias psíquicas, no qual o corpo
como fonte da sexualidade limita o conhecimento de si. Daí a
importância da noção de conflito e de sintoma para
a compreensão do sujeito, pois uma das características
fundamentais do humano na modernidade é uma tensão entre
um saber de si e o um não saber que o constitui. O sintoma se
forma pelo fato de haver conflito psíquico: embora possa se manifestar
fisicamente, como nas paralisias histéricas, trata-se se um fenômeno
de sentido, pois os mecanismos que presidem sua formação
envolvem processos semelhantes aos da linguagem. É o que destacam
Laplanche & Pontalis (1970: 624) no
pensamento freudiano: “Freud deduz da particularidade das
imagens e dos sintomas uma espécie de ‘linguagem fundamental'
universal.” E, assim, a interpretação do sintoma
deve buscar seu sentido no conflito, refazendo o caminho pelo qual foi
construído.
Generalizando, podemos dizer que a experiência
moderna do sujeito gravita em torno de um tipo particular de articulação
entre vida e linguagem, expresso pela noção de produção
de sentido . Em outros termos, a singularidade do ser humano é
concebida pela capacidade de configurar e reconfigurar a realidade doada
por sua imersão no campo da linguagem. Este campo funciona pela
polissemia, legando ao trabalho interpretativo uma gama infinita de
possibilidades. Disto deriva que a história individual não
é simplesmente uma coleção de fatos, mas uma narração
possível que confere contornos próprios à experiência
de si. Podemos dizer que há sujeito, porque os jogos de sentido
são múltiplos e exigem a remissão a um outro capaz
de certas delimitações semânticas. Ao contrário
da informação, a produção de sentido faz
apelo a uma incompletude do sentido que pode ser decifrado ilimitadamente.
Vida e gerenciamento de informações
Vida e linguagem conhecem uma outra espécie de
aproximação provocada pelo prestígio alcançado
pela noção de informação nos mais diversos
âmbitos da cultura contemporânea. Esta categoria, no caso
das biociências e biotecnologias, opera a conversão da
vida em código objetivo, misturando natureza e tecnologia dentro
de um funcionamento bioquímico, ao invés de polissêmico
e suposto a técnicas hermenêuticas. Podemos situar o nascimento
dessa convergência na compreensão dos mecanismos da hereditariedade
efetuada por Crick e Watson no século XX. Por trás desta
compreensão, temos uma terminologia que migra da descrição
das atividades comunicativas entre seres humanos para o campo da biologia
(Dupuy, 1993). A informação
no caso da biologia molecular corresponde à ordem dos radicais
nucléicos - uma espécie de texto - que, através
de um complexo trabalho de tradução, sintetiza proteínas.
No entanto, tal texto não faz qualquer demanda
por técnicas hermenêuticas. Quando a vida aparecia como
determinação irrevogável para a consciência,
a linguagem funcionava como uma forma de representar, ampliando a transparência
do sujeito a si próprio. No entanto, a migração
das idéias cibernéticas e da teoria da comunicação
para a biologia funda um horizonte epistemológico, onde as distâncias
entre vida e linguagem se estreitam. Quando estas se faziam ainda presentes,
aparecia o que é próprio da subjetividade moderna: uma
interioridade, que, por princípio, se furta à observação.
Se havia texto no corpo moderno – como nos casos diagnosticados
pela psicanálise de histeria conversiva-, se tratava sempre de
efeitos de sentido, possibilitados pela disparidade fundamental entre
a consciência e o impensado. Uma das diferenças entre o
corpo moderno e o corpo contemporâneo é a natureza desse
texto e de como o sentido é trabalhado. Se há sentido
no corpo informacional, ele está relacionado a mecanismos bioquímicos
que não pressupõem intencionalidade e, por conseguinte,
qualquer estrato profundo do psiquismo (Bruno
e Pimental, 2005). Para modificá-lo não se faz
mais necessário o trabalho hermenêutico, já que
a intervenção sobre o código genético pode
ser feita diretamente através de tecnologias como a engenharia
genética ou a terapia gênica. Trata-se, portanto, de um
texto destituído de sentido oculto, integralmente visível
e desdobrável na exterioridade. Neste aspecto, o corpo biotecnológico
é um corpo que se abre e se torna informação, quantificação
e distribuição de dados.
Mas as biotecnologias não são o único
domínio em que a sintonia entre vida e informação
está se tornando visível. Podemos igualmente explorá-la
no campo das neurociências, mais particularmente na hipótese
de que a cognição nos âmbitos pessoais e sociais
necessita do corpo para ser eficaz. Tal hipótese é formulada
pelo neurocientista Antonio Damásio (1998) e se encarna na noção
de marcador somático, que considera as emoções
promotoras de mudanças na paisagem corporal, capazes, assim,
de fornecer indícios para que o indivíduo opte entre um
conjunto de hipóteses. O termo parte de uma equiparação
entre afetos e comunicação: as emoções são
entendidas como fonte de informação que permitem ações
rápidas. Para o seu melhor entendimento, deve-se levar em conta
que o raciocínio é considerado pelo autor um processo
voltado para a ação futura, atingindo seus objetivos através
de planejamentos: “o raciocínio e a decisão
ocupam-se desse processo esgotante e incessante de manufatura de planos.”
(Damásio, 1998: 197)
Se a natureza do raciocínio é o planejamento,
seu objetivo final é a decisão. Decidir tem por base três
elementos: o conhecimento da situação; o conhecimento
de um conjunto de alternativas de ação, e, o conhecimento
das conseqüências dessas ações no futuro. Baseando-se
em suas experiências com pacientes com lesões pré-frontais
que apresentavam dificuldade para decidir acerca de atividades cotidianas,
Damásio postula a necessidade de um estreitamento das hipóteses
utilizadas em decisões sociais e pessoais. O fator responsável
por isso seria exatamente a emoção [2].
Considerando-a peça essencial à regulação
biológica, o autor infere que o aparato cerebral geralmente associado
aos processos elevados de raciocínio (neo-córtex), foi
construído evolutivamente a partir, ou seja, com o auxílio,
das estruturas límbicas associadas às emoções
mais básicas.
Sua tese, em suma, postula que se deve sempre considerar
as conseqüências de uma ação possível,
e nesse sentido são formuladas hipóteses expressas, sobretudo,
através de cenários visuais, que podem ser os mais diversos.
O que impede a proliferação indefinida de hipóteses
é, geralmente, o desconforto originado no corpo, que serve como
um sinal de alerta paras as conseqüências negativas de algumas
dessas hipóteses. Daí a importância do corpo para
o pensamento, pois este retém, nos mais variados pontos de sua
extensão, uma sabedoria inata depositada pela seleção
natural, mas também adquirida através da experiência
individual. Assim, o pensamento é visto como uma atividade em
rede e essa capilaridade serve ao princípio da eficácia,
pois possibilita uma acumulação ampla e uma recuperação
rápida das informações.
O corpo a que temos acesso através dos testes
pré-disposição genética impõe o mesmo
desafio: optar entre um conjunto de hipóteses, entre probabilidades,
tendências. Pensar significa decidir o que fazer de si: tornar-se
responsável por uma parte considerável do destino do corpo
ou desta não se responsabilizar. Atualmente, as pesquisas genômicas
se inclinam para estudos multifatoriais, permitindo a análise
genética dos riscos envolvidos em estados patológicos
correntes como doenças cardíacas, acidentes vasculares
cerebrais e diabetes (Keller, 2004). Importante
ressaltar que, apesar do conhecimento dos fatores de risco, é
precária a compreensão dos mecanismos que ligam efetivamente
os genes ao desencadeamento desses estados Entretanto, isto não
invalida que no âmbito das práticas cotidianas o monitoramento
de nossa saúde seja hoje realizado primordialmente como um controle
de riscos. E nesse sentido, as tecnologias de exame genético
mais promissoras, tanto do ponto de vista do diagnóstico quanto
da terapêutica, girem em torno da temática da suscetibilidade
individual , ou seja, tratem das probabilidades de desenvolvimento de
doenças com base no mapeamento das variações genéticas
individuais, e não simplesmente em relação a perfis
gerais de risco (Rose, 2001).
Risco e pensamento
É exatamente, a estipulação dos riscos que promove
uma modificação sobre a função do pensamento.
Se o corpo é considerado um texto a ser decodificado, sua natureza
objetiva implica novas formas de monitorar ameaças ao controle
de si. As técnicas que permitem visualizar a natureza genética,
por exemplo, podem tornar a consciência contemporânea do
orgânico sem o trabalho de elaboração do passado
que singularizava o pensamento moderno. Nesse caso, é possível
trazer ao olhar o que somos sem interpretar; trata-se literalmente de
acessar a informação e utilizá-la : observando-se
o diagnóstico, o corpo exposto, já se está diante
do campo de decisões formulado. Deste modo, o tempo da elaboração,
o perigo de se constituir em face do inconsciente diminui, senão
se dilui, pois a linguagem não é mais um recurso para
a consciência se emancipar, mas a própria objetividade
em que o corpo se apresenta: como código para as biotecnologias,
como alerta de perigo para a neurociência. Em relação
a esta linguagem, trata-se de gerenciá-la, de escolher ou não
a hipótese que favorece a sobrevivência individual.
Desse alinhamento entre vida e informação,
podemos extrair duas importantes conclusões para o governo de
si. Em primeiro lugar, o que era natural, foco de resistência
à ampliação da cultura por desafiar a soberania
do sujeito sobre si próprio muda de estatuto. Ao invés
do corpo perturbar o autocontrole do indivíduo, as neurociências
e biotecnologias apostam em seu papel colaborador. Podemos encontrar
um indício dessa conversão, na forma com que Damásio
aborda o problema da previsão do futuro em relação
a patologias. O risco para a ordem social é transferido daqueles
assolados pelas paixões, como os perversos, onanistas e histéricas
para os indivíduos frios, ou que não antecipam o futuro:
os psicopatas e os irresponsáveis [3].
Como o corpo está se tornando um campo visível que favorece
a cognição, a desconexão com este é que
se torna o perigo primordial.
O corolário dessa fusão é
o indivíduo ser convocado de forma muito mais intensa a se responsabilizar
por si próprio. Acontece uma acentuação
dos cuidados com a prevenção, antecipação
e simulação de futuros, pois o corpo é quase integralmente
um domínio a nossa disposição. A doença
genética, que há algumas décadas era vista sob
a perspectiva do fatalismo, passou a integrar o campo de nossas escolhas
com o desenvolvimento das pesquisas genômicas dando subsídios
para o desenvolvimento de testes de pré-disposição
genética. Se não está facultada ainda sua eliminação,
torna-se possível gerenciá-la, através de métodos
como o aconselhamento genético (Novas e
Rose, 2001). Podemos apontar a mesma tendência com relação
ao sentimento, visto agora, em geral, como elemento facilitador dos
processos cognitivos [4]. Os métodos
empregados para governar o corpo se alteram: ao invés de decifração,
elaboração do passado, figuram a simulação,
previsão, antecipação de cenários possíveis,
ou seja, recursos que pressupõe um estoque de conhecimentos,
que deve ser administrado.
Considerações finais
Para aprofundar o entendimento da função
contemporânea do pensamento é interessante abordar a noção
de risco . Historicamente, o termo tem seu aparecimento em cenário
social marcado pelo aumento da capacidade técnica de interferir
na ordem social e natural (Bauman, 1998). Quando, por exemplo, os danos
sofridos pelo trabalhador entraram na ordem e cálculos da administração
estatal, oferecia-se um aparato de seguridade social, e, em contra-partida,
requisitava-se a responsabilidade do indivíduo pela ordem social.
Temos assim, o cuidado e o controle da vida plenamente fundidos nas
instituições características do Estado Nacional,
tais como as políticas públicas de saúde e de segurança.
Cabe ressaltar que existem descontinuidades entre esse
cenário inicial e o contemporâneo. Se, a princípio,
o controle técnico sobre a vida se detinha em face de fenômenos
que escapavam à intervenção humana, esse domínio
se estendeu de tal forma que as regiões deixadas de fora são
igualmente referidas às nossas ações, surgindo,
o que Giddens (2000) denomina, riscos fabricados.
Estes riscos, que marcam a contemporaneidade, são criados “pelo
próprio impacto de nosso crescente conhecimento sobre o mundo”
e, portanto, são da inteira responsabilidade humana (Giddens,
2000: 36). Assim, o risco contemporâneo estende a responsabilidade
para âmbitos que eram antes considerados ‘naturais' e por
isso escapavam à capacidade de intervenção técnica.
Além disso, o cenário político em que esses mecanismos
são empregados é caracterizado pelo recuo da intervenção
estatal e a concomitante delegação do controle dos riscos
aos indivíduos (Rose, 2001).
Essas duas características do gerenciamento dos
riscos contemporâneos [5] - integração
da natureza à cultura e aumento da responsabilidade dos indivíduos
por si próprios - se entrecruzam nas concepções
biotecnológicas e neuro-científicas do corpo. Se o corpo
pôde ser visto como um prolongamento da natureza exterior em nossa
humanidade, o aparato biotecnológico já o inclui na História.
Por isso, cada vez mais a morte entra no campo das decisões humanas;
mesmo que não necessariamente a burlemos através das técnicas
de clonagem, o adoecer é todo ele integrado ao que podemos fazer
de nós. E os métodos de domínio de nós mesmos
referem-se privilegiadamente ao campo da gestão de riscos: previsão
diagnóstica, antecipação do surgimento de doenças,
mesmo daquelas que jamais virão a se desenvolver, encontrando-se
unicamente no plano de possibilidade genética.
De forma semelhante, o entendimento das emoções
como fonte de informação assinala o alargamento do campo
de operacionalização das nossas porções
naturais. Na hipótese do marcador somático , o corpo se
oferta como fonte de informações para o pensamento: trata-se
de um colaborador que:
“Faz convergir a atenção para
o resultado negativo a que a ação pode conduzir e atua
como um sinal de alarme automático que diz: atenção
ao perigo decorrente de escolher a ação que terá
esse resultado.”
(Rose, 2001: 205)
Daí o valor da emoção: possibilitar
uma escolha eficaz de uma ação antecipada hipoteticamente,
já que o significado do pensamento é referido ao gerenciamento
de riscos: prever, construir cenários futuros de forma que nos
adiantemos ao surgimento de problemas.
A promessa de transparência com a qual a iluminação
da consciência acenava talvez agora possa ser cumprida, já
que o corpo se dispõe ao pensar não mais como uma determinação,
mas como um campo moldável pela cultura. No entanto, cabe notar
que o pensamento não elabora mais estratos interiores, mas escolhe
entre um determinado conjunto de informação previamente
organizado, que é exterior e objetivo. Essa situação
invoca um paradoxo para a subjetividade: se esse conjunto de dados,
sobre o qual se detém o pensar, não se furta mais ao olhar
e ao controle do indivíduo, nossa existência migra para
exterioridade, recebendo a iluminação que não é
mais a do sentido, mas a do gerenciamento de informações.
O que há, então, é uma transparência sem
fundo , pois prescinde dos jogos de oposições entre aparência
e essência que agitaram a experiência moderna do sujeito,
mas que ao mesmo tempo lhe concedeu a promessa de uma liberação
futura. Nesse sentido o domínio político da subjetividade
deve ser articulado ao espaço próprio de sua constituição,
no qual se imbricam, mesclam e sobrepõe oposições
com as quais estávamos habituados a pensá-la.
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Notas
(1) Genealogia refere-se aqui ao domínio de
análise que busca delinear historicamente as diferentes práticas
envolvidas na produção do sujeito. Foucault (1995) reconheceu
três modalidades dessa pesquisa: como o sujeito aparece objetivado
segundo práticas de saber, dividido segundo práticas de
poder e problematizado eticamente, segundo técnicas de si.
(2) Importante notar que o autor diferencia emoções
de sentimentos : emoções são mudanças na
paisagem corporal que podem ou não ser notadas pelo indivíduo,
quando estas são notadas elas entram no domínio do que
Damásio (op. cit.) chama sentimentos . Embora não estejamos
respeitando a diferença terminológica, cabe assinalar
que o marcador somático está estreitamente ligado aos
sentimentos.
(3) Cf. Damásio, (op. c it). O autor se refere
aos psicopatas e jogadores compulsivos, como indivíduos que se
desvinculam das conseqüências de suas ações,
que são, portanto, míopes para o futuro.
(4) Cabe ressaltar que no entender de Damásio,
os sentimentos não são sempre facilitadores dos processos
cognitivos. O autor nota que estes podem também comprometer a
sobrevivência individual, quando assumem a forma de paixões.
(5) Para uma melhor compreensão dessa diferença,
cf. Castel (1981). Segundo o autor, na modernidade já se fazia
uso de mecanismos de controle de riscos, embora as instituições
se pautassem mais sobre a correção dos desvios presentes
do que sobre a prevenção de irrupção de
perigos. O autor, referindo-se à psiquiatria clássica,
aponta dois motivos pelos quais os mecanismos de controle baseados na
antecipação e na previsão, que caracterizam a gestão
de riscos e que apareciam na noção de periculosidade,
foram impedidos de se expandir. Em primeiro lugar as táticas
usadas- encarceramento e esterelização - eram muito dispendiosas,
do ponto de vista econômico, social e simbólico. Em segundo,
os argumentos que sustentavam essas aplicações se mostraram
demasiadamente frágeis.
Nota sobre os autores
" – F. Bruno é Professora adjunta
(IP), do Programa EICOS e da pós-graduação da Escola
da Comunicação (UFRJ). E-mail para correspondencia: fgbruno@matrix.com.br
. C.P. Pimentel é Psicólogo, Doutorando em psicossociologia
pelo Programa EICOS (UFRJ).
Ciências & Cognição - Ano 03,
Vol.08, julho/2006 - ISSN 1806-5821 © Instituto de Ciências
Cognitivas (ICC) Submetido em 29/06/06 | Aceito em 05/08/06 | Publicado
on line em 15/08/06 -
Como citar este artigo: Pimentel, C. e Bruno, F. (2006).
Da produção de sentido ao gerenciamento de informações:
uma análise das implicações das neurociências
e biotecnologias sobre a subjetividade. Ciências & Cognição;
Ano 03, Vol 08. Disponível em www.cienciasecognicao.org
César Pessoa Pimentel (a) e
Fernanda Bruno " (a, b, c)
(a) Programa de Estudos Interdisciplinares
de Comunicação e Ecologia Social (EICOS), Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, Rio de Janiero, Brasil;
(b) Programa de pós-graduação da Escola de comunicação
e (c) Instituto de Psicologia (IP) , UFRJ, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
Brasil
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