César Pessoa Pimentel & Fernanda Bruno

>    Da produção de sentido ao gerenciamento de informações: uma análise das implicações das neurociências e biotecnologias sobre a subjetividade

Artigos, teses e publicações

C. Pimentel & F. Bruno
>    Da produção de sentido ao gerenciamento de informações: uma análise das implicações das neurociências e biotecnologias sobre a subjetividade



Resumo


O presente artigo aborda a vinculação contemporânea entre vida e informação no campo das biotecnologias e neurociências, explorando suas implicações do ponto de vista da subjetividade. Nesse domínio, tratamos, mais especificamente, do papel do pensamento para o governo de si. Partindo da arqueologia foucaultiana, aponta-se a articulação entre vida e linguagem no âmbito das ciências humanas como eixo fundamental no qual o pensamento assume função ético-política. Em seguida, observa-se que os domínios referidos – vida e linguagem – sofreram notáveis transformações com o desenvolvimento da biologia molecular, biotecnologias e neurociências. A vida não seria apenas representável à consciência, mas está se tornando linguagem informacional, de modo que o pensamento passa de atividade interpretativa a gerenciadora de informação. Assim, cabe problematizar os novos contornos que o pensar assume na contemporaneidade, procurando entender os dispositivos de saber e poder presentes em dois âmbitos: os testes de pré-disposição genética e a hipótese do marcador somático.
Ciências & Cognição 2006; Vol. 08.


A importância da informação em nossa cultura é um dos tópicos bastante ressaltados nas análises da sociedade contemporânea, abrangendo os mais diversos âmbitos, incluindo as compreensões e práticas sobre o corpo. Este último domínio será o objeto de discussão do presente artigo, que pretende explorar as implicações da equiparação neurocientífica e biotecnológica entre organismo e sistema de informações sobre a função do pensamento. Visto sob uma perspectiva genealógica [1] , o pensamento na modernidade ocupava uma função ético-política de monitoramento do que pode comprometer o controle de si, que tem uma de suas faces predominantes na sexualidade. Deste modo, pensar se vinculava a uma decifração do desejo, a um estar atento ao mundo interior. Se essa configuração não desapareceu, ela não ocupa mais posição central, na medida em que o campo das biotecnologias e neurociências está submetendo os perigos monitorados pelo pensamento a transformações. O cuidado com o corpo está sendo vinculado ao risco, e o pensamento, se ocupa de decidir.

As raízes dessas práticas se encontram, no entanto, já estabelecidas na modernidade, quando sujeito e corpo foram articulados pelas ciências humanas. Em “As Palavras e As coisas”, Foucault (1987) argumenta que o homem, enquanto objeto científico, é uma das figuras mais recentes da história do saber ocidental. Seu nascimento no saber é uma derivação da constituição de ciências que historicizam seus objetos, a saber, a biologia, a economia política e a filologia. Ao ser colocado na posição de objeto de ciência é descoberto em sua aproximação com os animais, com as organizações sociais e com as estruturas lingüísticas. Deste modo, o sujeito perde a transparência a si mesmo, e a consciência é mergulhada em um campo extenso de determinações O indivíduo moderno é temporalizado segundo os diferentes ritmos das alteridades aos quais se conecta: as da vida, do trabalho e da linguagem.

O domínio da vida é especialmente importante para a modernidade, pois o avançar das pesquisas genealógicas apontou uma matriz política para as ciências humanas, a saber, técnicas que regulam o ser humano, tratando-o como conjunto populacional que nasce, morre, envelhece e reproduz (Foucault, 2005). As técnicas estatísticas, nascentes no século XVIII, ilustram um desses componentes que começam a produzir uma experiência do sujeito como ser biológico. Mais tarde, no século XIX, a compreensão do homem como espécie viva se conecta a uma compreensão individualizante de sua natureza, através da noção de sexualidade. O corpo sexualizado aparece como desafio para o controle do indivíduo sobre si próprio, na medida em que antecede à consciência que temos de nós mesmos e define nossa verdade mais profunda. Essa verdade tem na interpretação seu mecanismo privilegiado de iluminação: trata-se de decifrar o sentido que é produzido a partir do conflito psíquico, fazer das manifestações orgânicas, sinais de uma verdade. Portanto, a experiência do sujeito na modernidade pode ser entendida a partir da articulação entre vida e linguagem realizada em torno da categoria de produção de sentido , que sofre agora deslocamentos através do surgimento de concepções que equiparam o corpo a um sistema de informações. Em linhas gerais, nossa hipótese sustenta que estamos vivendo a passagem de um pensamento interpretativo, atento a uma verdade que, ainda oculta, permanecia aberta e polissêmica, para um pensamento que gerencia informações tendo em vista a adaptação do indivíduo a cenários futuros.

Considerando tanto o sujeito quanto o pensamento experiências históricas, iremos acompanhar suas formatações, contrastando a experiência moderna com a contemporânea. No primeiro registro histórico, apreciaremos a constituição da subjetividade no campo dos cuidados com a sexualidade, para em seguida, tratar desta constituição no âmbito dos testes de pré-disposição genética e da hipótese neuro-científica do marcador somático .

Vida e produção de sentido

A experiência moderna faz do corpo uma referência fundamental para a subjetividade. Foucault (1987) nos ajuda a compreendê-la, ao distinguir entre a noção de finitude que impera no moderno daquela existente no saber clássico. Esta última alude a uma grandeza infinita, a qual o ser humano se encontra submetido: trata-se de uma concepção negativa da finitude, pois não detém seus próprios direitos, sendo definida em relação a uma realidade superior. A finitude humana era, sobretudo, um obstáculo:

Para o pensamento do século XVII e XVIII, era sua finitude que constrangia o homem a viver uma existência animal, a trabalhar com o suor de seu rosto, a pensar com palavras opacas.”
(Foucault, 1987: 332)

É somente com o saber moderno que essa relação de submissão se desfaz, liberando-lhe um espaço próprio. Assim, o tempo que constrange os homens a existir historicamente passa a ser a dimensão privilegiada a partir do qual o saber elabora suas teorias. Surgem disciplinas que buscam explicar seus objetos, situando-os no tempo histórico, ou seja, buscando uma origem material para estes. Tal é o caso da economia política, a biologia, e a filologia, disciplinas inaugurais de um estilo histórico de reflexão, no qual o tempo não é apenas um elemento contingente, mas fundamental. Nelas se sustenta um questionamento sobre o indivíduo finito; pois ainda que não sejam propriamente ciências humanas, tratam de questões que requerem o homem sob a forma de ser condicionado pela divisão de classes, pela seleção natural e pela estrutura da linguagem, implicando vida, corpo e existência humana em um nó indissociável.

Mas isto se evidenciará mais profundamente nas recém-chegadas ciências humanas. Tomemos como exemplo dois campos, cujas concepções acerca do papel da natureza e da cultura diferem substancialmente, como a psicofísica e a psicanálise. Apesar de suas evidentes divergências, ambas reconhecem que a existência humana não pode ser referida exclusivamente a uma consciência de si apartada, respectivamente, dos circuitos perceptivos/neurológicos e da sexualidade. Portanto, ambas examinam a consciência segundo condicionamentos de ordem corporal. Generalizando, chegamos a conclusão que o pensar moderno é enraizado no corpo, na vida, no orgânico.

Se essa determinação é um fato, este, no entanto, não é irrevogável, de modo que a consciência pode se apropriar daquilo que a condiciona e ampliar o grau de liberdade da ação. Neste interstício, se evidencia o papel ético-político da consciência e da reflexão. O pensamento não é mais concebido como atividade representativa, tampouco instrumental, de forma que pensar, na experiência moderna, já é agir. A técnica psicanalítica ilustra com acuidade a inseparabilidade entre pensar e ação sobre si (Bruno, 1997). A noção de verdade aí em jogo aponta para a liberação, ainda que parcial, do sujeito em relação aos constrangimentos impostos pelas vicissitudes de sua sexualidade. Tal verdade provém do conflito entre instâncias psíquicas, no qual o corpo como fonte da sexualidade limita o conhecimento de si. Daí a importância da noção de conflito e de sintoma para a compreensão do sujeito, pois uma das características fundamentais do humano na modernidade é uma tensão entre um saber de si e o um não saber que o constitui. O sintoma se forma pelo fato de haver conflito psíquico: embora possa se manifestar fisicamente, como nas paralisias histéricas, trata-se se um fenômeno de sentido, pois os mecanismos que presidem sua formação envolvem processos semelhantes aos da linguagem. É o que destacam Laplanche & Pontalis (1970: 624) no pensamento freudiano: “Freud deduz da particularidade das imagens e dos sintomas uma espécie de ‘linguagem fundamental' universal.” E, assim, a interpretação do sintoma deve buscar seu sentido no conflito, refazendo o caminho pelo qual foi construído.

Generalizando, podemos dizer que a experiência moderna do sujeito gravita em torno de um tipo particular de articulação entre vida e linguagem, expresso pela noção de produção de sentido . Em outros termos, a singularidade do ser humano é concebida pela capacidade de configurar e reconfigurar a realidade doada por sua imersão no campo da linguagem. Este campo funciona pela polissemia, legando ao trabalho interpretativo uma gama infinita de possibilidades. Disto deriva que a história individual não é simplesmente uma coleção de fatos, mas uma narração possível que confere contornos próprios à experiência de si. Podemos dizer que há sujeito, porque os jogos de sentido são múltiplos e exigem a remissão a um outro capaz de certas delimitações semânticas. Ao contrário da informação, a produção de sentido faz apelo a uma incompletude do sentido que pode ser decifrado ilimitadamente.

 

Vida e gerenciamento de informações

Vida e linguagem conhecem uma outra espécie de aproximação provocada pelo prestígio alcançado pela noção de informação nos mais diversos âmbitos da cultura contemporânea. Esta categoria, no caso das biociências e biotecnologias, opera a conversão da vida em código objetivo, misturando natureza e tecnologia dentro de um funcionamento bioquímico, ao invés de polissêmico e suposto a técnicas hermenêuticas. Podemos situar o nascimento dessa convergência na compreensão dos mecanismos da hereditariedade efetuada por Crick e Watson no século XX. Por trás desta compreensão, temos uma terminologia que migra da descrição das atividades comunicativas entre seres humanos para o campo da biologia (Dupuy, 1993). A informação no caso da biologia molecular corresponde à ordem dos radicais nucléicos - uma espécie de texto - que, através de um complexo trabalho de tradução, sintetiza proteínas.

No entanto, tal texto não faz qualquer demanda por técnicas hermenêuticas. Quando a vida aparecia como determinação irrevogável para a consciência, a linguagem funcionava como uma forma de representar, ampliando a transparência do sujeito a si próprio. No entanto, a migração das idéias cibernéticas e da teoria da comunicação para a biologia funda um horizonte epistemológico, onde as distâncias entre vida e linguagem se estreitam. Quando estas se faziam ainda presentes, aparecia o que é próprio da subjetividade moderna: uma interioridade, que, por princípio, se furta à observação. Se havia texto no corpo moderno – como nos casos diagnosticados pela psicanálise de histeria conversiva-, se tratava sempre de efeitos de sentido, possibilitados pela disparidade fundamental entre a consciência e o impensado. Uma das diferenças entre o corpo moderno e o corpo contemporâneo é a natureza desse texto e de como o sentido é trabalhado. Se há sentido no corpo informacional, ele está relacionado a mecanismos bioquímicos que não pressupõem intencionalidade e, por conseguinte, qualquer estrato profundo do psiquismo (Bruno e Pimental, 2005). Para modificá-lo não se faz mais necessário o trabalho hermenêutico, já que a intervenção sobre o código genético pode ser feita diretamente através de tecnologias como a engenharia genética ou a terapia gênica. Trata-se, portanto, de um texto destituído de sentido oculto, integralmente visível e desdobrável na exterioridade. Neste aspecto, o corpo biotecnológico é um corpo que se abre e se torna informação, quantificação e distribuição de dados.

Mas as biotecnologias não são o único domínio em que a sintonia entre vida e informação está se tornando visível. Podemos igualmente explorá-la no campo das neurociências, mais particularmente na hipótese de que a cognição nos âmbitos pessoais e sociais necessita do corpo para ser eficaz. Tal hipótese é formulada pelo neurocientista Antonio Damásio (1998) e se encarna na noção de marcador somático, que considera as emoções promotoras de mudanças na paisagem corporal, capazes, assim, de fornecer indícios para que o indivíduo opte entre um conjunto de hipóteses. O termo parte de uma equiparação entre afetos e comunicação: as emoções são entendidas como fonte de informação que permitem ações rápidas. Para o seu melhor entendimento, deve-se levar em conta que o raciocínio é considerado pelo autor um processo voltado para a ação futura, atingindo seus objetivos através de planejamentos: “o raciocínio e a decisão ocupam-se desse processo esgotante e incessante de manufatura de planos.(Damásio, 1998: 197)

Se a natureza do raciocínio é o planejamento, seu objetivo final é a decisão. Decidir tem por base três elementos: o conhecimento da situação; o conhecimento de um conjunto de alternativas de ação, e, o conhecimento das conseqüências dessas ações no futuro. Baseando-se em suas experiências com pacientes com lesões pré-frontais que apresentavam dificuldade para decidir acerca de atividades cotidianas, Damásio postula a necessidade de um estreitamento das hipóteses utilizadas em decisões sociais e pessoais. O fator responsável por isso seria exatamente a emoção [2]. Considerando-a peça essencial à regulação biológica, o autor infere que o aparato cerebral geralmente associado aos processos elevados de raciocínio (neo-córtex), foi construído evolutivamente a partir, ou seja, com o auxílio, das estruturas límbicas associadas às emoções mais básicas.

Sua tese, em suma, postula que se deve sempre considerar as conseqüências de uma ação possível, e nesse sentido são formuladas hipóteses expressas, sobretudo, através de cenários visuais, que podem ser os mais diversos. O que impede a proliferação indefinida de hipóteses é, geralmente, o desconforto originado no corpo, que serve como um sinal de alerta paras as conseqüências negativas de algumas dessas hipóteses. Daí a importância do corpo para o pensamento, pois este retém, nos mais variados pontos de sua extensão, uma sabedoria inata depositada pela seleção natural, mas também adquirida através da experiência individual. Assim, o pensamento é visto como uma atividade em rede e essa capilaridade serve ao princípio da eficácia, pois possibilita uma acumulação ampla e uma recuperação rápida das informações.

O corpo a que temos acesso através dos testes pré-disposição genética impõe o mesmo desafio: optar entre um conjunto de hipóteses, entre probabilidades, tendências. Pensar significa decidir o que fazer de si: tornar-se responsável por uma parte considerável do destino do corpo ou desta não se responsabilizar. Atualmente, as pesquisas genômicas se inclinam para estudos multifatoriais, permitindo a análise genética dos riscos envolvidos em estados patológicos correntes como doenças cardíacas, acidentes vasculares cerebrais e diabetes (Keller, 2004). Importante ressaltar que, apesar do conhecimento dos fatores de risco, é precária a compreensão dos mecanismos que ligam efetivamente os genes ao desencadeamento desses estados Entretanto, isto não invalida que no âmbito das práticas cotidianas o monitoramento de nossa saúde seja hoje realizado primordialmente como um controle de riscos. E nesse sentido, as tecnologias de exame genético mais promissoras, tanto do ponto de vista do diagnóstico quanto da terapêutica, girem em torno da temática da suscetibilidade individual , ou seja, tratem das probabilidades de desenvolvimento de doenças com base no mapeamento das variações genéticas individuais, e não simplesmente em relação a perfis gerais de risco (Rose, 2001).


Risco e pensamento


É exatamente, a estipulação dos riscos que promove uma modificação sobre a função do pensamento. Se o corpo é considerado um texto a ser decodificado, sua natureza objetiva implica novas formas de monitorar ameaças ao controle de si. As técnicas que permitem visualizar a natureza genética, por exemplo, podem tornar a consciência contemporânea do orgânico sem o trabalho de elaboração do passado que singularizava o pensamento moderno. Nesse caso, é possível trazer ao olhar o que somos sem interpretar; trata-se literalmente de acessar a informação e utilizá-la : observando-se o diagnóstico, o corpo exposto, já se está diante do campo de decisões formulado. Deste modo, o tempo da elaboração, o perigo de se constituir em face do inconsciente diminui, senão se dilui, pois a linguagem não é mais um recurso para a consciência se emancipar, mas a própria objetividade em que o corpo se apresenta: como código para as biotecnologias, como alerta de perigo para a neurociência. Em relação a esta linguagem, trata-se de gerenciá-la, de escolher ou não a hipótese que favorece a sobrevivência individual.

Desse alinhamento entre vida e informação, podemos extrair duas importantes conclusões para o governo de si. Em primeiro lugar, o que era natural, foco de resistência à ampliação da cultura por desafiar a soberania do sujeito sobre si próprio muda de estatuto. Ao invés do corpo perturbar o autocontrole do indivíduo, as neurociências e biotecnologias apostam em seu papel colaborador. Podemos encontrar um indício dessa conversão, na forma com que Damásio aborda o problema da previsão do futuro em relação a patologias. O risco para a ordem social é transferido daqueles assolados pelas paixões, como os perversos, onanistas e histéricas para os indivíduos frios, ou que não antecipam o futuro: os psicopatas e os irresponsáveis [3]. Como o corpo está se tornando um campo visível que favorece a cognição, a desconexão com este é que se torna o perigo primordial.

O corolário dessa fusão é o indivíduo ser convocado de forma muito mais intensa a se responsabilizar por si próprio. Acontece uma acentuação dos cuidados com a prevenção, antecipação e simulação de futuros, pois o corpo é quase integralmente um domínio a nossa disposição. A doença genética, que há algumas décadas era vista sob a perspectiva do fatalismo, passou a integrar o campo de nossas escolhas com o desenvolvimento das pesquisas genômicas dando subsídios para o desenvolvimento de testes de pré-disposição genética. Se não está facultada ainda sua eliminação, torna-se possível gerenciá-la, através de métodos como o aconselhamento genético (Novas e Rose, 2001). Podemos apontar a mesma tendência com relação ao sentimento, visto agora, em geral, como elemento facilitador dos processos cognitivos [4]. Os métodos empregados para governar o corpo se alteram: ao invés de decifração, elaboração do passado, figuram a simulação, previsão, antecipação de cenários possíveis, ou seja, recursos que pressupõe um estoque de conhecimentos, que deve ser administrado.


Considerações finais

Para aprofundar o entendimento da função contemporânea do pensamento é interessante abordar a noção de risco . Historicamente, o termo tem seu aparecimento em cenário social marcado pelo aumento da capacidade técnica de interferir na ordem social e natural (Bauman, 1998). Quando, por exemplo, os danos sofridos pelo trabalhador entraram na ordem e cálculos da administração estatal, oferecia-se um aparato de seguridade social, e, em contra-partida, requisitava-se a responsabilidade do indivíduo pela ordem social. Temos assim, o cuidado e o controle da vida plenamente fundidos nas instituições características do Estado Nacional, tais como as políticas públicas de saúde e de segurança.

Cabe ressaltar que existem descontinuidades entre esse cenário inicial e o contemporâneo. Se, a princípio, o controle técnico sobre a vida se detinha em face de fenômenos que escapavam à intervenção humana, esse domínio se estendeu de tal forma que as regiões deixadas de fora são igualmente referidas às nossas ações, surgindo, o que Giddens (2000) denomina, riscos fabricados. Estes riscos, que marcam a contemporaneidade, são criados “pelo próprio impacto de nosso crescente conhecimento sobre o mundo” e, portanto, são da inteira responsabilidade humana (Giddens, 2000: 36). Assim, o risco contemporâneo estende a responsabilidade para âmbitos que eram antes considerados ‘naturais' e por isso escapavam à capacidade de intervenção técnica. Além disso, o cenário político em que esses mecanismos são empregados é caracterizado pelo recuo da intervenção estatal e a concomitante delegação do controle dos riscos aos indivíduos (Rose, 2001).

Essas duas características do gerenciamento dos riscos contemporâneos [5] - integração da natureza à cultura e aumento da responsabilidade dos indivíduos por si próprios - se entrecruzam nas concepções biotecnológicas e neuro-científicas do corpo. Se o corpo pôde ser visto como um prolongamento da natureza exterior em nossa humanidade, o aparato biotecnológico já o inclui na História. Por isso, cada vez mais a morte entra no campo das decisões humanas; mesmo que não necessariamente a burlemos através das técnicas de clonagem, o adoecer é todo ele integrado ao que podemos fazer de nós. E os métodos de domínio de nós mesmos referem-se privilegiadamente ao campo da gestão de riscos: previsão diagnóstica, antecipação do surgimento de doenças, mesmo daquelas que jamais virão a se desenvolver, encontrando-se unicamente no plano de possibilidade genética.

De forma semelhante, o entendimento das emoções como fonte de informação assinala o alargamento do campo de operacionalização das nossas porções naturais. Na hipótese do marcador somático , o corpo se oferta como fonte de informações para o pensamento: trata-se de um colaborador que:

“Faz convergir a atenção para o resultado negativo a que a ação pode conduzir e atua como um sinal de alarme automático que diz: atenção ao perigo decorrente de escolher a ação que terá esse resultado.”
(Rose, 2001: 205)

Daí o valor da emoção: possibilitar uma escolha eficaz de uma ação antecipada hipoteticamente, já que o significado do pensamento é referido ao gerenciamento de riscos: prever, construir cenários futuros de forma que nos adiantemos ao surgimento de problemas.

A promessa de transparência com a qual a iluminação da consciência acenava talvez agora possa ser cumprida, já que o corpo se dispõe ao pensar não mais como uma determinação, mas como um campo moldável pela cultura. No entanto, cabe notar que o pensamento não elabora mais estratos interiores, mas escolhe entre um determinado conjunto de informação previamente organizado, que é exterior e objetivo. Essa situação invoca um paradoxo para a subjetividade: se esse conjunto de dados, sobre o qual se detém o pensar, não se furta mais ao olhar e ao controle do indivíduo, nossa existência migra para exterioridade, recebendo a iluminação que não é mais a do sentido, mas a do gerenciamento de informações. O que há, então, é uma transparência sem fundo , pois prescinde dos jogos de oposições entre aparência e essência que agitaram a experiência moderna do sujeito, mas que ao mesmo tempo lhe concedeu a promessa de uma liberação futura. Nesse sentido o domínio político da subjetividade deve ser articulado ao espaço próprio de sua constituição, no qual se imbricam, mesclam e sobrepõe oposições com as quais estávamos habituados a pensá-la.

 

Referências bibliográficas

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Notas

(1) Genealogia refere-se aqui ao domínio de análise que busca delinear historicamente as diferentes práticas envolvidas na produção do sujeito. Foucault (1995) reconheceu três modalidades dessa pesquisa: como o sujeito aparece objetivado segundo práticas de saber, dividido segundo práticas de poder e problematizado eticamente, segundo técnicas de si.

(2) Importante notar que o autor diferencia emoções de sentimentos : emoções são mudanças na paisagem corporal que podem ou não ser notadas pelo indivíduo, quando estas são notadas elas entram no domínio do que Damásio (op. cit.) chama sentimentos . Embora não estejamos respeitando a diferença terminológica, cabe assinalar que o marcador somático está estreitamente ligado aos sentimentos.

(3) Cf. Damásio, (op. c it). O autor se refere aos psicopatas e jogadores compulsivos, como indivíduos que se desvinculam das conseqüências de suas ações, que são, portanto, míopes para o futuro.

(4) Cabe ressaltar que no entender de Damásio, os sentimentos não são sempre facilitadores dos processos cognitivos. O autor nota que estes podem também comprometer a sobrevivência individual, quando assumem a forma de paixões.

(5) Para uma melhor compreensão dessa diferença, cf. Castel (1981). Segundo o autor, na modernidade já se fazia uso de mecanismos de controle de riscos, embora as instituições se pautassem mais sobre a correção dos desvios presentes do que sobre a prevenção de irrupção de perigos. O autor, referindo-se à psiquiatria clássica, aponta dois motivos pelos quais os mecanismos de controle baseados na antecipação e na previsão, que caracterizam a gestão de riscos e que apareciam na noção de periculosidade, foram impedidos de se expandir. Em primeiro lugar as táticas usadas- encarceramento e esterelização - eram muito dispendiosas, do ponto de vista econômico, social e simbólico. Em segundo, os argumentos que sustentavam essas aplicações se mostraram demasiadamente frágeis.

 

Nota sobre os autores

" – F. Bruno é Professora adjunta (IP), do Programa EICOS e da pós-graduação da Escola da Comunicação (UFRJ). E-mail para correspondencia: fgbruno@matrix.com.br . C.P. Pimentel é Psicólogo, Doutorando em psicossociologia pelo Programa EICOS (UFRJ).

Ciências & Cognição - Ano 03, Vol.08, julho/2006 - ISSN 1806-5821 © Instituto de Ciências Cognitivas (ICC) Submetido em 29/06/06 | Aceito em 05/08/06 | Publicado on line em 15/08/06 -

Como citar este artigo: Pimentel, C. e Bruno, F. (2006). Da produção de sentido ao gerenciamento de informações: uma análise das implicações das neurociências e biotecnologias sobre a subjetividade. Ciências & Cognição; Ano 03, Vol 08. Disponível em www.cienciasecognicao.org

César Pessoa Pimentel (a) e Fernanda Bruno " (a, b, c)

(a) Programa de Estudos Interdisciplinares de Comunicação e Ecologia Social (EICOS), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, Rio de Janiero, Brasil; (b) Programa de pós-graduação da Escola de comunicação e (c) Instituto de Psicologia (IP) , UFRJ, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil



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