Nos apreensivos dias que passamos a viver após os atentados
terroristas ao World Trade Center, ao lado da palavra terrorismo,
que entendemos bem, comparece insistentemente nos noticiários
da TV e nas páginas dos jornais esta outra - fundamentalismo
- cujo significado muitos desconhecem e à primeira vista parece
ligado diretamente ao islã. De 11 de setembro para cá,
não há quem não tenha ouvido falar em fundamentalismo
islâmico. O que é fundamentalismo, afinal? Tem a ver
com religião? Qual religião?
O termo nasceu, sim, em contexto religioso.
De fato, sua origem é cristã, não islâmica,
e desde o início o nome foi usado para designar um movimento
cristão: o fundamentalismo protestante. Tanto a coisa quanto
o nome "fundamentalismo" surgiram e se firmaram nas primeiras
décadas do século passado, nos Estados Unidos: 1910,
1914, 1919, 1920, 1925 são datas marcantes da primeira onda
fundamentalista. Como figura histórica original, o fundamentalismo
é cristão, ocidental e protestante. Mais especificamente,
filho do protestantismo conservador do sul dos Estados Unidos. O estado
do Tennessee é seu ícone geográfico.
Designação fortemente pejorativa hoje
em dia, é curioso como a palavra inglesa fundamentalism
foi, de início, um nome orgulhosamente auto-aplicado por seus
próprios portadores para se distinguir dos protestantes "liberais",
deturpadores da "verdadeira" fé cristã revelada
na Bíblia. Uma autodesignação orgulhosa de si
e não, como hoje soa, uma acusação que a faz
sinônimo de morbidez fanática, um insulto dirigido a
terceiros demarcando uma alteridade.
A profissão de fé fundamentalista,
que emerge numa declaração da igreja presbiteriana em
1910, continha cinco pontos fundamentais: a veracidade absoluta da
Bíblia; o nascimento virginal de Jesus; a ressurreição
física de Jesus; a autenticidade de seus milagres, prova de
sua divindade; a expiação dos pecados pelo sacrifício
de Cristo tornando desnecessária a expiação pelas
obras. Esses fundamentals of faith [itens fundamentais da fé]
foram explicados e divulgados em doze livrinhos de teologia, escritos
entre 1910 e 1915, só que sem a designação de
fundamentalismo, pois tal nome ainda não fora inventado. Quando
o reverendo Curtis Lee Laws, editor do jornal batista Watchman Examiner,
inventou o termo fundamentalism em 1920, o nome foi honrosamente incorporado
por seus colegas batistas e presbiterianos como algo que traduzia
bem o empenho deles de irem à luta "pelos fundamentos
da fé" contra o protestantismo liberal.
Seu objetivo básico era defender o
princípio da plena inspiração divina da Bíblia.
Para os fundamentalistas, a Bíblia foi totalmente inspirada
por Deus, tintim por tintim, em todas as particularidades e minudências.
Por isso a Bíblia não erra, não pode errar: esta
é a doutrina da "inerrância bíblica",
noutras palavras, da infalibilidade da letra das Escrituras, da autoridade
inquestionável daquilo que está escrito na Bíblia,
e do modo como está escrito. Se está escrito na Bíblia
que Deus, para criar o homem, primeiro fez um boneco de barro e em
seguida insuflou-lhe a vida, é porque foi assim mesmo que aconteceu
e ponto final. Estando escrito no Livro sagrado, não há
o que discutir: assim pensa o fundamentalista protestante (e, por
extensão, o judeu fundamentalista em relação
à Torá, o muçulmano fundamentalista em relação
ao Alcorão, o católico fundamentalista em relação
aos dogmas pontifícios e conciliares promulgados em latim).
É como pensa todo e qualquer fundamentalista: a coisa - seja
a narração de um fato ou a definição de
um princípio - tem que constar de uma escritura divinamente
calçada para assim poder servir de base segura nas dúvidas
e controvérsias. A palavra escrita por inspiração
divina, em vez de ser o ponto de partida para especulações
intelectuais, discussões doutrinárias e controvérsias
teológicas, deve ser tratada e reverenciada como o tira-dúvidas
último, o tira-prosa nas discussões.
Para que haja fundamentalismo numa religião
é necessário, portanto, que haja uma escritura divinamente
revelada ou assistida, de preferência por um Deus único.
Como atitude e estrutura de pensamento, o fundamentalismo é
monoteísta de berço e constituição. Em
seu DNA estão inscritos dois traços distintivos básicos:
o apego literal à Bíblia e o monoteísmo. Sua
preocupação primeira é com a verdade única
revelada pelo Deus único no Livro sagrado.
Noutras palavras, fundamentalista é
quem se apega à letra da palavra revelada como sendo a única
verdade, quem nutre a convicção de que o texto
escriturístico está livre de erros humanos, e só
a interpretação literal tem cabimento e validade. Quer
dizer que só pode ser fundamentalista quem erige na centralidade
de sua fé a letra, a literalidade de uma Escritura Sagrada
divinamente inspirada por um Deus único. Antes de ser fundamentalista
é preciso ser monoteísta. O muçulmano pode ser
fundamentalista, o judeu, o protestante, até mesmo o católico.
Já o hindu ou o taoísta, dificilmente. Para o adepto
do candomblé ou da umbanda, religiões sem livro sagrado,
é impossível ser fundamentalista.
Fundamentalismos são fenômenos
típicos das religiões monoteístas. Que
são três, todas originárias do Oriente Médio,
as chamadas religiões abraâmicas: judaísmo, cristianismo
e islã. Não é por acaso que o islã as
denomina, todas as três, "religiões do Livro".
É por isso que, quando se deixa de lado como traço essencial
do fundamentalismo o monoteísmo escriturístico - que
supõe que a verdade, assim como a divindade, é uma só,
a verdade é una, não havendo nem podendo haver outras
verdades além dela -, deixa-se de compreender muito de sua
força e de seu significado no mundo contemporâneo. Religiões
politeístas e panteístas não podem ser fundamentalistas,
não conseguem sê-lo. É por isso que toda vez que
um jornalista ou comentarista fala em "fundamentalismo budista",
por exemplo, dá para perceber que a análise resulta
forçada. Além de distorcer o objeto referido, o próprio
termo sai enfraquecido dessa extensão, perde o gume, fica frouxo,
evasivo, alusivo. Perde a utilidade, a meu ver.
O adversário interno ao campo protestante,
contra o qual o fundamentalismo se insurgiu, eram os partidários
da então chamada "teologia liberal",
entusiastas dos métodos de crítica histórica
e crítica literária para exegese e interpretação
da Sagrada Escritura.
Já o adversário externo principal era
a ciência moderna. Mais especificamente, a
ciência biológica, na qual se condensa
desde o final do século XIX a mentalidade científica.
A atitude experimental diante do mundo natural e da vida, representada
então pelo darwinismo (o evolucionismo biológico, segundo
o qual o homem descende dos macacos por seleção natural),
hoje é representada pelo empenho na clonagem animal. Não
deixa de ser interessante observar como o fundamentalismo, por excelência
um movimento do século XX, adentra com todo viço e vigor
no século XXI, dotando de extrema visibilidade suas características
de resistência e reação contra a cultura científica
e a política secularizada produzidas e difundidas mundo afora
pelo Ocidente moderno.
Dentre os cinco
pontos "fundamentais da fé", o primeiro
foi o que desde o início ganhou destaque máximo no ativismo
dos fundamentalistas protestantes: a inerrância do livro revelado,
com o foco dirigido para a narrativa bíblica da criação
do homem. Esta se tornou uma espécie de obsessão dos
fundamentalistas protestantes, que em contraposição
aos "evolucionistas" passaram a se chamar de "criacionistas".
A oposição à teoria da
evolução biológica tornou-se o tópico
central da primeira onda fundamentalista. Uma espécie
de febre que, por ironia da vida, acabaria contaminando seu próprio
nome, carregando-o de conotações negativas. Depois do
famoso julgamento de John Scopes, professor de biologia que em 1925
foi condenado pelo tribunal de Dayton, Tennessee, por ter violado
uma lei estadual que proibia o ensino da teoria da evolução
nas escolas públicas, o nome "fundamentalista" iria
passar de lisonja a ofensa, um rótulo desagradável de
levar. É que, alçada pelos jornalistas em item de ampla
audiência na América dos anos 1920, a querela anti-evolucionista
logo assumiu as dimensões de luta cultural "entre Deus
e o macaco". Noutras palavras, entre a Bíblia e Darwin,
a religião e a ciência, a ortodoxia bíblica e
a biologia, o obscurantismo e a lucidez, o fanatismo e a inteligência,
em suma, entre o pré-moderno (ou antimoderno) e o moderno.
Nessas oposições binárias que pipocavam nos noticiários,
o segundo termo passou a arrebatar para si o sinal positivo. Foi uma
interessante reviravolta mediada pela mídia: perante a opinião
pública, a agressiva militância fundamentalista acabou
maculando seu nome com a pecha de intolerância-com-ignorância.
Isso explica um pouco por que hoje o jornalismo ocidental
parece dispor apenas de nomes ofensivos para designar o radicalismo
político-religioso dos movimentos islâmicos atuais. Se,
para evitar dizer que são "tradicionalistas", "integristas",
"rigoristas", "fanáticos", "exaltados",
etc. se disser que são "fundamentalistas", isto implica
aludir à sua intolerância intelectual e intransigência
antimoderna. Implica apontar para sua recusa, não da modernização
tecnológica, mas da modernidade cultural, sua rejeição
da ciência, da razão, do espírito crítico,
da história.
Um cristão fundamentalista,
quando bebe diretamente no texto bíblico, pode de repente topar
com a máxima "Dai a César o que é de César
e a Deus o que é de Deus" e encontrar nessas palavras
de Jesus uma boa razão para separar a autoridade religiosa
do governo. Hoje, no mundo muçulmano, os diversos grupos fundamentalistas
são político-religiosos, não somente religiosos.
São todos eles partidários de um retorno ao texto do
Alcorão para aí, na fonte, beber os referenciais religiosos,
morais, sociais e políticos do renascimento da "era muçulmana",
do "islã como cultura total". Todos convergem na
concepção de que a conquista do poder político
é uma ferramenta indispensável para a implantação
do "verdadeiro" islã, o islã total. Eis aí,
nessa passagem ao político, nessa escolha da conquista do poder
do Estado como escala obrigatória na rota de um projeto civilizador
total, uma outra dimensão na qual o ativismo islâmico
revigora seu coração justamente e, com isso, partilha
esta característica própria do integrismo religioso:
a de implementar a verdadeira religião em todas as esferas
da vida.
Nesta ponta o fundamentalismo islâmico encontra
seu lado inevitavelmente integrista. É que o ímpeto
caracteristicamente fundamentalista de ir em busca das origens primeiríssimas,
de revalorizar a letra do Alcorão e aí reencontrar a
inspiração original, termina por jogá-lo de volta
à idade de ouro, ao momento fundador triunfal da conquista
militar de Meca, em 630. E aí, então, o que se redescobre
para reavivar e reviver é um islã inseparavelmente religião-e-política,
uma teocracia holista e monista: uma coletividade político-religiosa
sob domínio da Lei, só que esta Lei é divina
e imutável. Intocável. Durma-se com um barulho desses.