Sempre se aponta a inspiração
divina dos textos. Aí começa a dificuldade. Há
contradições, expurgos posteriores de textos e discórdia
sobre autenticidade
Judeus devotos talvez respondam: antigos
hebreus inspirados por Deus ou de quem receberam revelações
em encontros pessoais. Cristãos devotos acrescentariam que homens
do credo judaico reformado por Jesus também contribuíram
com outros textos inspirados por Deus.
Elemento comum nessas respostas é
a ideia de inspiração divina dos textos bíblicos.
Dela deriva toda a autoridade sacra da Bíblia. Bíblias
cristãs explicitam na segunda Epístola a Timóteo
3:16:
"Toda escritura é inspirada
por Deus (...)".
Aí começam as dificuldades.
Alguns arqueólogos, paleógrafos
e outros especialistas pigarreiam: Paulo deve ter escrito, sim, sete
das treze cartas atribuídas a ele, mas três das outras
seis, hum, são de autoria duvidosa - e as demais são decididamente
não paulinas, inclusive as duas a Timóteo.
Pareceres como esse indicam ceticismo
quanto à autoria dos textos compilados como "livros"
da Bíblia.
Em 2 Macabeus 2:13-14 se lê que
Neemias (século 5 a.C.) e Judas Macabeus (século 2 a.C.)
compilaram textos presumivelmente bíblicos. Mas até hoje
a arqueologia não recuperou nenhum texto original desses: apenas
cópias de cópias, todas posteriores ao século 15
a.C. Datação de carbono atesta que os mais antigos dos
manuscritos do mar Morto, descobertos de 1947 a 1956, são cópias
escritas no século 5 a.C.
Nem todo o material do Velho Testamento
é originalmente hebraico. A narrativa do dilúvio, por
exemplo, reconta episódio da epopeia de Gilgamesh, poema sumério
escrito séculos antes de haver menção histórica
a hebreus.
Em Gênesis 2:7-22, Deus cria o
homem depois de transcorridos os sete dias da criação.
Em seguida, cria o Éden e seus rios, ouro e pedras preciosas;
só então anestesia o homem para lhe efetuar ressecção
duma costela e com esta criar a mulher.
Mas no capítulo anterior, 1:27,
Deus cria do pó o homem e a mulher, juntos, no sexto dia da criação.
Ocorre pois, nos dois capítulos, clara colagem de documentos
diferentes; as duas narrativas provêm de fontes distintas. Outra
evidência de montagem são abundantes redundâncias
e contradições, quer no mesmo livro, quer de um livro
para outro.
A Bíblia cristã já
foi bem diferente. Antes do século 13, nenhum livro dela se dividia
em capítulos como hoje; numeração dos versículos
é invenção do século 16. Ao longo da era
cristã, a Bíblia passou por acréscimos de livros
e expurgo de outros, tidos como "apócrifos". Este eufemismo
conota faltar ao texto a tal inspiração divina. Bíblias
protestantes excluem como apócrifos treze livros da Bíblia
católica, inclusive os dois Macabeus.
Autenticar inspiração
de cada livro abrangeu discórdia furiosa, tortura, hereges à
fogueira, até guerras, disputas que remontam a indicações
aceitas ou rejeitadas, por votação, em sínodos
e concílios (assembleias de bispos). De cada um deles resultava
um cânone, coleção de material atestado como autêntico;
isto é, de inspiração divina.
Bispos dos primeiros séculos
da era cristã montaram cânones segundo arbítrios
pessoais, mas decisões colegiadas subsequentes reformariam tais
seleções. Teólogos como o próprio Martinho
Lutero (1483-1546) teriam preferido excluir, se pudessem, livros como
Cântico dos Cânticos, Ester, várias epístolas
e Apocalipse. "A história de Jonas é tão monstruosa
a ponto de ser absolutamente incrível", escreveu Lutero
em "Colóquios Familiares".
Hoje, católicos, protestantes,
cristãos ortodoxos e judeus creem na inspiração
divina do Pentateuco (ou Torá). Quanto aos demais livros, não
há consenso.
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ALDO PEREIRA, 80,
é ex-editorialista e colaborador especial da Folha de São
Paulo