03/2013
A ordem dos jesuítas, a que pertence o papa
Francisco, marcou a história por sua devoção ao
saber e pela presença em conturbações como a Reforma
e os desdobramentos socioeconômicos dos descobrimentos. No entanto,
em quase 500 anos, só agora tem sua importância reconhecida
no pontificado.
Nos mais renomados dicionários de línguas europeias, verbetes
correspondentes a "jesuíta" incluem acepções
como esta, do "Houaiss": "Que ou aquele que é
dado a intrigas; dissimulado, hipócrita". O registro não
teria surpreendido os fundadores da Companhia de Jesus pela irreverência,
mas a palavra em si os intrigaria: eles próprios nunca se chamaram
de jesuítas.
Na tomada de Pamplona por invasores
franceses em 1520, por pouco uma bala de canhão não decepou
a perna direita do libertino e aventureiro fidalgo Inácio de
Loyola (1491-1556). Durante meses de penosa convalescença num
castelo, sua única distração foi ler um livro sobre
a vida de Jesus e outro de biografias de santos. Estas conjugavam dois
estilos em moda: hagiografia e romance de cavalaria.
Impressionado, Loyola doou espada e
adaga como ex-votos à Virgem de Montserrat, na Catalunha, e se
deu a mendicância, autoflagelação e estudo. Peregrinou,
vagueou e, em Paris, diria ter tido uma visão na qual Jesus ouvia
Deus lhe determinar que chamasse Loyola a servi-los. Decidiu ordenar-se
padre.
Quando se ordenaram em Bolonha, em 1537,
Loyola e discípulos cogitavam criar uma ordem própria
alicerçada em certos princípios do etos militar: treinamento
rigoroso, obediência incondicional ao superior e ao papa, observância
intransigente dos votos de pobreza e castidade (a ordem nunca admitiria
mulheres).
A instituição formalizou-se
em Roma, três anos depois, com aprovação explícita
do papa Paulo 3º, seguida de eleição de Loyola como
superior-geral. (Quando substantivo, o termo "general" denota
noutras línguas europeias a patente militar; quando adjetivo,
denota "geral". Em português, os jesuítas optaram
pelo título "superior-geral", mas os seguidores de
Loyola o tratavam como "general".)
Loyola morreu aos 65 anos, em 1556.
Tinha sido tão poderoso e imperioso que a ele se atribuiu o epíteto
pejorativo de "Papa Negro", em alusão à cor
da batina preta (contrastante com a branca do papa) e a maquinações
malignas que desafetos lhe atribuíam.
No início a Companhia assistiria
o Santo Ofício (Inquisição) que os dominicanos
vinham exercendo desde 1480. Mas o mundo legado por Loyola impunha outras
prioridades. Em segredo reprimido pela Inquisição, a elite
científica europeia descobrira a redondeza do mundo. Combinado
com progressos da astronomia, navegação, engenharia naval
e artilharia (Galileu vendia serviços especializados de balística),
esse conhecimento redistribuiria os poderes do mundo.
Em paralelo com o ouro, itens como especiarias,
açúcar e escravos revolucionaram o comércio de
commodities e a alquimia bancária. "Player" nesse jogo,
a Santa Sé logo destacaria os diligentes jesuítas para
exploração e defesa de seus interesses.
Dois outros fatores complicavam a concorrência:
a ebulição intelectual advinda da industrialização
da escrita, processo iniciado por Gutenberg pouco mais de um século
antes, e o ódio sectário deflagrado pela Reforma protestante.
Um dos primeiros sucessos foi o de Francisco
Xavier no Japão. Ele obteve do senhor feudal Omura Sumitada,
a quem batizara, direitos proprietários sobre o porto de Nagasaki.
Por ali transitaria o rendoso comércio do Portugal católico
com o Japão.
Em 1572, Gregório 13 (o do calendário)
concedeu à Companhia o privilégio exclusivo de operações
bancárias. Para ganhar know-how, a Companhia se associou a organizações
de judeus, muitos dos quais, para trânsito mais fácil,
se diziam cristãos-novos e adotavam nomes não judeus.
Exemplo, o donatário Fernão Pereira Pestana de Loronha,
erroneamente registrado na história do Brasil como Fernando de
Noronha (c. 1470-1540).
Além desse expediente, judeus
perseguidos pelos reis católicos de Portugal e Espanha tinham
migrado para a Holanda com seus
saberes de comércio, relações
internacionais e capital. Menos de um século depois, a Holanda
despontava nos oceanos como potência rival da Inglaterra, da Espanha,
da França e de Portugal. Algum papel para os jesuítas
nesse novo episódio do comércio colonial?
O necessário sigilo de muitas
atividades da Companhia na época tem favorecido confuso retrato
dela, mistura de fatos com inferências e hipóteses que
vão do plausível ao paranoide. Que ligações
teria havido, se alguma, entre jesuítas e a Companhia Holandesa
da Índia Oriental, a Companhia Holandesa da Índia Ocidental,
o Bank of the Manhattan Company (hoje JPMorgan Chase & Co.), negócios
da família Rotschild e o banco suíço Lombard Odier
Darier Hentsch, que marca presença hoje também em Hong
Kong?
Que papel teria tido a Companhia, se
é que teve, na invasão da Itália por Napoleão
e na decisão de ele prender o papa Pio 6º, que morreria
no cárcere mês e meio depois? Mistérios possivelmente
espessados por delírios conspiratórios. Mas em que medida?
EDUCAÇÃO
Na visão abrangente dos jesuítas, logo sobressairia também
a importância da educação, que os protestantes vinham
mostrando ser instrumento eficaz de doutrinação e colonização.
Antes, a diretriz católica favorecera o obscurantismo, com perseguição
de cientistas e racionalistas. Era crime capital traduzir a Bíblia
do latim para vernáculos.
O teólogo John Wycliffe (c. 1330-1384),
que desafiara a proibição com ajuda de colaboradores,
escapou. Mas, 44 anos depois de morto, a Igreja o condenou e mandou
esparzir num rio as cinzas de seu esqueleto, que ela tinha mandado exumar
e incinerar.
Em contraste com louvações
católicas da pobreza, o etos protestante valorizava a educação
e o enriquecimento advindo dela. A princípio relutante, Loyola
ao morrer reconhecera essa opção e comprometera sua Companhia
com a vocação educativa que ainda hoje ela prioriza.
EXPULSÃO
No século 18, o poder econômico e político da Companhia
acabou por colocá-la em conflito com realezas coloniais europeias,
mesmo as católicas. A linha antiescravagista da Companhia escasseava
e encarecia os braços necessários ao trabalho em minas
e canaviais.
Em 1758, o Marquês de Pombal,
que governava Portugal para o vacilante rei José 1º, expulsou
do império os jesuítas. França e Espanha logo o
imitaram. Tão resoluta insubordinação convenceu
o papa Clemente 13 a dissolver a Companhia, mas ele morreu na véspera
do dia em que baixaria a decisão. Envenenamento continua sendo
hipótese não provada.
Clemente 14, sucessor de Clemente 13,
conduziu o caso com mais prudência. Após quatro anos de
manobras diplomáticas, emitiu um breve (breve é forma
simplificada de bula) que determinava a extinção da Companhia.
Imediato confisco dos bens e precavido encarceramento do superior-geral
Lorenzo Ricci facilitaram o cumprimento da decisão.
Mas a morte do papa no mês seguinte
gerou especulações que, como no caso de seu antecessor,
continuam tão controvertidas quanto as que adviriam da morte
de Ricci, dois meses depois. (Entre risadas, na semana passada o papa
Francisco revelou à imprensa ter rejeitado a sugestão
de, como fiau a Clemente 14, ele optar por chamar-se Clemente 15.)
A reconciliação entre
o papado e a Companhia sobreviria em 1814. Mas no século 19 e
primeiras décadas do 20, jesuítas se viram expulsos e
até martirizados em numerosos países: Alemanha, Áustria,
Bélgica, China, Equador, Espanha, França, Galícia
(ucraniana), Itália, Madagascar, México, Portugal, Rússia,
Síria, Suíça.
HOJE
Em números redondos, a Companhia congrega, em mais de cem países,
uns 14 mil sacerdotes, 2.000 irmãos (membros leigos) e 4.000
escolásticos (termo que corresponde ao de seminaristas). Já
foram mais: em meados do século 20 a ordem compreendia pelo menos
26 mil membros. Tipicamente, a formação de um padre jesuíta
leva 15-20 anos, ou mais, o que dificulta a reposição
do efetivo.
Rancores subsistem, mas aos poucos a
cinza se espessa por cima das brasas. Hoje o mundo já não
se pergunta tanto o que é e o que faz a Companhia, mas o que
ela fará do poder aumentado que agora assume com o espírito
do padre-general pairando sobre o trono milenar dos papas.
Fonte:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/100106-a-ordem-de-francisco.shtml
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