Revista Espírita, agosto de
1858
Sociedade de estudos espíritas,
sessão de 8 de junho de 1858.
N. do T.: Essa
instrução de São Vicente de Paulo, com algumas
modificações que a reduziram, foi inserida por Allan
Kardec em O Evangelho segundo o Espiritismo. Corresponde,
na edição definitiva de 1866, ao capítulo
XIII, item 12.
Sede bons e caridosos, eis a chave dos céus que tendes em vossas
mãos; toda a felicidade eterna está encerrada nessa máxima:
amai-vos uns aos outros. A alma não pode se elevar às
regiões espirituais senão pelo devotamento ao próximo;
não encontra felicidade e consolação senão
no impulso da caridade; sede bons, sustentai vossos irmãos, deixai
de lado essa horrível chaga do egoísmo; esse dever cumprido
deve vos abrir o caminho da felicidade eterna. De resto, dentre vós,
quem não sentiu seu coração pulsar, sua alegria
interior dilatar pela ação de uma obra caridosa? Não
deveríeis pensar senão nessa espécie de volúpia,
que uma boa ação proporciona, e permaneceríeis,
sempre, no caminho do progresso espiritual. Os exemplos não faltam;
não há senão a boa vontade, que é rara.
Vede a multidão de homens de bem, dos quais vossa historia vos
evoca a piedosa lembrança. Eu vo-los citaria aos milhares aqueles
cuja moral não tinha por objetivo senão melhorar vosso
globo.
O Cristo não vos disse tudo o que concerne a essas virtudes de
caridade e de amor? Por que deixar de lado esses divinos ensinamentos?
Por que fechar os ouvidos às suas divinas palavras; o coração
a todas essas doces máximas? Gostaria que as leituras evangélicas
fossem feitas com mais interesse pessoal; abandona-se esse livro, dele
se faz uma palavra oca. Uma carta fechada; deixa-se esse código
admirável no esquecimento: vossos males não provêm
senão do abandono voluntário em que deixais esse resumo
das leis divinas. Lede, pois, essas páginas ardentes do devotamento
de Jesus, e meditai-as. Estou envergonhado comigo mesmo, de ousar vos
prometer um trabalho sobre a caridade, quando penso que nesse livro
encontrareis todos os ensinamentos que devem vos conduzir, pela mão,
às regiões celestes.
Homens fortes, cingi-vos; homens fracos, fazei vós armas de vossa
doçura, de vossa fé; tende mais persuasão, mais
constância na propagação de vossa nova doutrina;
não é senão um encorajamento que viemos vos dar;
senão para estimular vosso zelo e vossas virtudes que Deus nos
permite nos manifestar a vós; mas, querendo, não se teria
necessidade senão da ajuda de Deus e de sua própria vontade:
as manifestações espíritas não são
feitas senão para os de olhos fechados e os corações
indóceis. Há, entre vós, homens que têm a
cumprir missões de amor e de caridade; escutai-os, elevai sua
voz; fazei resplandecer seus méritos, e vos exaltareis a vós
mesmos pelo desinteresse e pela fé viva com a qual vos penetrarão.
As advertências detalhadas seriam muito longas para dar, sobre
a necessidade de alargar o círculo da caridade, e dela fazer
participar todos os infelizes, cujas misérias são ignoradas,
todas as dores que devem ser procuradas, em seus redutos para consolá-los
em nome desta virtude divina: a caridade. Vejo com felicidade quantos
homens eminentes e poderosos ajudam esse progresso que deve ligar, entre
elas, todas as classes humanas: os felizes e os infelizes. Os infelizes,
coisa estranha! se dão todos a mão e sustentam suas misérias,
uns pelos outros. Por que os felizes são mais retardatários
para escutarem a voz dos infelizes? Por que é preciso que seja
mão possante e terrestre que dê o impulso às missões
caridosas? Por que não se responde com mais ardor a esses chamados?
Por que deixar as misérias mancharem, como por prazer, o quadro
da Humanidade?
A caridade é a virtude fundamental, que deve sustentar todo o
edifício das virtudes terrestres; sem ela, as outras não
existem: sem caridade, não há fé nem esperança;
porque, sem a caridade, não há esperança em uma
sorte melhor, nenhum interesse moral que nos guie. Sem a caridade, não
há fé, porque a fé não é senão
um raio puro que faz brilhar uma alma caridosa; é a sua conseqüência
decisiva.
Quando deixar o coração se abrir ao pedido do primeiro
infeliz que vos estende a mão; quando lhe der, sem perguntar
se sua miséria não é fingida, ou se o mal num vício
lhe é causa; quando deixar toda justiça nas mãos
divinas; quando deixar o castigo das misérias mentirosas ao Criador;
enfim, quando fizer a caridade tão-só pela felicidade
que ela proporciona, e sem procurar a sua utilidade, então, sereis
os filhos que Deus amará e que ele chamará para si.
A caridade é a âncora eterna da salvação
em todos os globos: é a mais pura emanação do próprio
Criador; é sua a própria virtude, que ele dá à
criatura. Como desejaríeis desconhecer essa suprema bondade?
Qual seria, com esse pensamento, o coração bastante perverso
para pisotear e enxotar esse sentimento todo divino? Qual seria o filho
bastante mau para se revoltar contra essa doce carícia: a caridade?
Não ouso falar daquilo que fiz, porque os Espíritos também
têm o pudor das suas obras; mas creio que a obra que comecei,
é uma daquelas que devem mais contribuir para o alívio
de vossos semelhantes. Vejo, freqüentemente, Espíritos pedirem,
por missão, para continuarem a minha obra; eu as vejo, minhas
doces e caras irmãs, em seu piedoso e divino ministério;
vejo-as praticar as virtudes, que vos recomendo, com toda a alegria
que proporciona essa existência de devotamento e de sacrifício;
é uma grande felicidade, para mim, ver quanto o seu caráter
é honroso, quanto sua missão é amada e docemente
protegida Homens de bem, de boa e forte vontade, uni-vos para continuar,
grandemente, a obra de propagação de caridade; encontrareis
a recompensa dessa virtude pelo seu próprio exercício;
não há alegria espiritual que ela não dê
desde a vida presente. Sede unidos; amai-vos uns aos outros, segundo
os preceitos do Cristo. Assim seja.
____________
Agradecemos a São Vicente de
Paulo pela bela e boa comunicação que consentiu nos dar.
-
Gostaria que fosse proveitosa a todos.
Poderíeis nos permitir algumas perguntas complementares, a respeito
do que acabais de nos
dizer?
- Eu o desejo muito; meu objetivo é vos esclarecer; perguntai
o que quiserdes.
1. A caridade pode entender-se de dois modos: a esmola propriamente
dita, e o amor aos semelhantes. Quando nos dissestes que é preciso
deixar seu coração abrir ao pedido do infeliz que nos
estende a mão, sem perguntar se sua miséria não
é fingida, não quisestes falar da caridade do ponto de
vista da esmola?
- R. Sim, unicamente nesse parágrafo.
2. Dissestes que é preciso deixar à justiça de
Deus a apreciação da miséria fingida; parece-nos,
entretanto, que dar sem discernimento às pessoas que não
têm necessidade, ou que poderiam ganhar sua vida por um trabalho
honroso, é encorajar o vício e a preguiça. Se os
preguiçosos encontrassem, muito facilmente, a bolsa dos outros
aberta, eles se multiplicariam ao infinito, em prejuízo dos verdadeiros
infelizes.
- R. Podeis discernir aqueles que podem trabalhar,
e então a caridade vos obriga tudo fazer para lhes proporcionar
trabalho; mas há, também, pobres mentirosos que sabem
simular o jeito das misérias que não têm; é
para estes que é preciso deixar a Deus toda a justiça.
3. Aquele que não pode dar senão cinco francos, e deve
escolher entre dois infelizes que lhe pedem, não tem razão
em perguntar, quem tem, realmente, maior necessidade, ou deve dar sem
exame ao primeiro que chega?
- R. Deve dar àquele que pareça ser o
mais sofredor.
4. Não se pode considerar, também, como fazendo parte
da caridade, a maneira de praticá-la?
- R. É, sobretudo, na maneira pela qual se presta
o serviço, que a caridade é verdadeiramente meritória;
a bondade é, sempre, o indício de uma alma bela.
5. Que gênero de mérito concedeis àqueles que chamam
benfeitores ásperos?
- R. Não fazem o bem senão pela metade.
Recebem seus benefícios, mas eles não comovem.
6. Jesus disse: "Que vossa mão direita não saiba
o que dá a vossa mão esquerda." Aqueles que dão
por ostentação têm alguma espécie de mérito?
- R. Não têm senão o mérito
do orgulho, pelo qual serão punidos.
7. A caridade cristã, em sua mais larga acepção,
não compreende também a doçura, a benevolência
e a indulgência pelas fraquezas alheias?
- R. Imitai Jesus; Ele vos disse tudo isso; escutai-o
mais do que nunca.
8. A caridade é bem intencionada quando feita exclusivamente
entre as pessoas de uma mesma seita, ou de um mesmo partido?
- R. Não; é sobretudo esse Espírito
de seita e de partido que é preciso abolir, porque todos os homens
são irmãos. É sobre essa questão que concentramos
nossos esforços.
9. Suponho um indivíduo que vê dois homens em perigo; deles
não pode salvar senão um, mas um é seu amigo e
o outro seu inimigo; a quem deve salvar?
- R. Deve salvar seu amigo, porque esse amigo podia
reclamar daquele que crê amá-lo; quanto ao outro, Deus
se encarregará dele.
Fonte: http://www.oconsolador.com.br/linkfixo/bibliotecavirtual/revista-espirita-1858.pdf
topo