Rubens Nunes Sobrinho
dedicou-se em seu doutoramento (UFMG) à questão da natureza
da alma e da sua correlação com a cosmologia. No pós-doutorado
(UCLA), em Los Angeles, debruçou-se acerca do psiquismo envolvido
na 'ambição' por bens materiais e poder. Nesta entrevista
ao Correio Fraterno ele analisa o aspecto filosófico do espiritismo
e os atuais desafios das pesquisas sobre a espiritualidade e enaltece
a necessidade de pensar a vida.

Durante o curso de graduação em Filosofia, pela Universidade
Federal de Uberlândia, MG, Rubens Nunes Sobrinho desenvolveu
uma pesquisa sobre a imortalidade e a transmigração
da alma. A encenação simbólica das últimas
palavras de Sócrates o comoveu de tal modo que o levou a não
mais parar de refletir acerca delas
A encenação simbólica
das últimas palavras de Sócrates o comoveu de tal modo
que, segundo ele, não deixou mais de refletir acerca delas,
o que o levou a desenvolver um projeto de mestrado (UFMG) sobre o
tema da imortalidade da alma em Platão, com publicação
pela Edufu com o título Platão e a imortalidade. Também
em seu doutoramento (UFMG) dedicou-se à questão da natureza
da alma e da sua correlação com a cosmologia.
Recentemente, Rubens desenvolveu pesquisa de pós-doutorado
na Universidade da Califórnia (UCLA), em Los Angeles, acerca
do psiquismo envolvido na ‘ambição’ por
bens materiais e poder. No Encontro Nacional da Liga dos Pesquisadores
do Espiritismo, realizado em São Paulo, em agosto, o pesquisador
apresentou como tema a grande influência da filosofia de Platão
em Léon Denis, analisando a obra O grande enigma.
O aspecto filosófico do espiritismo e os atuais desafios das
pesquisas sobre a espiritualidade são temas desta entrevista.
Acompanhe.
O aspecto científico, do fenômeno, sempre chamou a atenção,
atraindo muitos curiosos para o espiritismo. Chegou o momento da filosofia?
A história do espiritismo moderno emerge em sincronia com uma
gama de revoluções científicas. Uma plêiade
de cientistas notáveis passa a dedicar-se à pesquisa
da fenomenologia espiritual com o rigor científico. Todavia,
a pretensão de que o método científico, consagrado
pela experimentação quantitativa, explique toda a natureza
implica tentar explicar a totalidade do real através dos recortes
e seleções reduzidas de certa classe de fenômenos,
ou seja, em tentar explicar o todo pela parte. Como afirma Denis,
“o momento das mesas girantes passou”. É chegado
o momento de uma síntese entre filosofia e ciência para
que as instruções que nos foram legadas na codificação
sejam explicitadas, desdobradas e que delas sejam deduzidas todas
as consequências que nortearão novos rumos para a humanidade.
Por que Léon Denis
é um filósofo platônico?
Denis, assim como Platão, procura a compreensão e a
fundamentação dos problemas morais e dos problemas do
psiquismo a partir da conexão do destino, ou seja, das condições
efetivas do viver, com a causalidade e as leis universais que regem
o cosmo. A síntese entre questões ético-políticas,
a psicologia da reencarnação e do espírito, a
educação, a estética, a cosmologia e a justiça
social constituem os mesmos fulcros, os mesmos princípios que
inspiram os dois pensadores. A questão da síntese causal
entre fenômenos naturais e o agir humano, entre causa e efeito,
de um lado, e ação e consequência, de outro, são
postulados fundamentais assumidos tanto por Platão, como por
Denis.
Kardec e Denis seriam discípulos da mesma escola filosófica?
Como teria sido a influência de Platão em suas ideias?
Estudo ou inspiração?
Kardec foi um homem erudito de academia. Denis foi um estivador autodidata
que arruinou sua visão de tanto estudar. Ambos leram Platão
e ambos foram inspirados. Denis desenvolveu um tipo particular de
intuição mediúnica. A reflexão acerca
da teleologia, da psicologia, da arte, do belo, dos princípios
transcendentes, da justiça social distributiva e a questão
da deterioração dos valores e dos sistemas políticos
materialistas indicam a amplitude do horizonte teórico. Em
todas as obras escritas por Léon Denis, é possível
estabelecer conexões com concepções fundamentais
da filosofia. Kardec e Denis remontam às origens celtas e ambos
participaram da reforma protestante. A história espiritual
de ambos é ligada.
Você, como um dos grandes estudiosos de Platão,
acredita que Léon Denis, retomando seus conceitos, possa ser
reconhecido no meio acadêmico também como grande pensador?
Em minha opinião, Denis foi um dos pensadores que melhor entendeu
Platão. Penso que o fato de ele não ser filósofo
de profissão foi uma escolha missionária e constituiu
uma oportunidade para que as gerações posteriores fossem
coparticipantes de sua obra. Denis não precisava de reconhecimento.
Imitou o Mestre e esvaziou-se em sua encarnação. Nós
é que precisamos ser capazes de fazê-lo reconhecido.
Este é o desafio para todo filósofo espírita:
revelar Denis como grande pensador é um modo de compreendê-lo
e uma oportunidade de evoluir seguindo os seus passos.
Como você analisa a obra de Kardec? O que ela trouxe
de novo em termos de filosofia?
A sistematização e a originalidade de Kardec são
incomensuráveis. Sua filosofia sintetiza a essência das
mais elevadas conquistas da história das ideias, conciliando
ética, ontologia, teoria do conhecimento, lógica argumentativa,
antropologia, filosofia da religião, educação
e ciência. Se Sócrates e Platão foram precursores
do espiritismo, a sistematização promovida por Kardec
não deixa de evocar Aristóteles.
Qual a autoridade do espiritismo como filosofia?
O espiritismo é denso de filosofia. As obras da codificação
fazem referência a muitos filósofos e sua própria
estrutura pode ser objeto de análise filosófica. A autoridade
intrínseca deriva da elevação do conteúdo
e da autoridade dos espíritos, posta à prova pela metodologia.
A autoridade acadêmica depende da investigação
filosófica e das pesquisas futuras a serem desenvolvidas pelos
pensadores espíritas. Por que muitos ainda torcem o nariz para
a filosofia, achando-a tão complicada?
Basicamente porque a filosofia deixou de ser um gênero de vida
virtuoso baseado em exercícios espirituais e no diálogo
amistoso para se tornar uma instrução dogmática
de princípios e sistemas de signos logicamente coerentes, mas
incompreensíveis para profanos.
Qual o papel da filosofia na evolução do espírito?
Segundo Emmanuel, em O consolador, ciência e filosofia devem
convergir como rios que deságuam no mesmo oceano da sabedoria.
A filosofia é a suma evolutiva da experiência do espírito
e essa ‘sedimentação’ cultural multimilenar
deve ‘espiritualizar’ a ciência mediante a energia
dos princípios.
No pensamento materialista de hoje o espiritismo é
ainda mal compreendido na sua essência. Por quê?
A modernidade e a revolução industrial engendraram modalidades
de organização social em que as condições
materiais da existência e a gestão de recursos escassos
passaram a ser determinações a priori, tanto no plano
das relações pragmáticas, como no plano do pensamento.
O materialismo constitui o eixo em torno do qual pivotam todos os
sistemas e seus fundamentos não são somente teóricos,
mas configuram uma arquitetura de dominação social.
O espiritismo adota axiomas e métodos incompatíveis
com essas bases.
Como levar a filosofia para as casas espíritas? Há
espaço para essas reflexões?
Todo discurso deve ser modelado em função das possibilidades
da audiência. É possível levar a filosofia para
todo tipo de audiência, desde que a linguagem seja apropriada.
A atitude de pensar a vida segundo os princípios fundamentais
da lei de evolução, de amor e de causa e efeito já
é fazer boa filosofia.
Qual a aplicação da filosofia na atualidade?
Sartre, um filósofo contemporâneo, disse que não
existe ‘a filosofia’. Existem muitas filosofias que gravitam
em torno de grandes filósofos. Essa concepção
é significativa porque o papel da filosofia acabou relegado
à crítica histórico-social, aos instrumentos
lógicos da análise e da linguagem e à reflexão
secundária acerca dos princípios adotados pelas ciências
particulares. Todavia, nem sempre foi assim. A filosofia, em sua gênese,
é um amor. Trata-se de um gênero de amor modelado a partir
de uma realidade intrinsecamente humana: a carência e a aspiração
pela perfectibilidade. Para os antigos, em vez de se constituir através
da exposição dogmática de uma doutrina, a filosofia
leva a uma gradual mudança de atitude frente à vida:
trata-se de um exercício espiritual que tem como alvo a mudança
de si mesmo.
Você acredita que esteja havendo uma busca pela filosofia,
depois que ela voltou à grade curricular do ensino médio?
No contexto da educação brasileira, a Universidade é
a principal instância de produção de saberes.
A filosofia no ensino médio trouxe uma demanda crescente pelo
ofício do filósofo, mas teve de se enquadrar dentro
dos pressupostos anacrônicos que privilegiam o adestramento
técnico em detrimento da formação humana. A filosofia
é exposta como um acervo histórico de doutrinas cuja
única exigência é a memorização
descontextualizada da vida efetiva. A filosofia, diferentemente dos
fármacos alopáticos, só pode ser formadora e
fecunda na especificidade única de cada aluno diante do desafio
de pensar a vida.
Como você analisa as angústias da Humanidade
hoje?
Em primeiro lugar, vale lembrar com Denis que os conhecimentos e as
representações da verdade de um tempo específico
refletem o desenvolvimento geral das consciências desse tempo.
O próprio conceito de ‘angústia’ designa
um complexo de representações do espírito. Expressa
a radicalidade da liberdade de que dispõe o espírito
diante da exigência incontornável de determinar sua própria
natureza. Léon Denis diagnosticou as angústias contemporâneas
de modo quase profético na sua obra. Diferentemente do niilismo
de valores anunciado por Nietzsche, ou da luta de classes revolucionária
propugnada pelo marxismo, a maior angústia contemporânea
viria a ser a falta de sentido, de finalidade e, notadamente, os sinais
do egoísmo que já se prenunciava no horizonte negro
do totalitarismo.
Como a moral do Cristo está inserida na história
da filosofia?
A moral do Cristo é indissociável da história
da filosofia ocidental. Mesmo os filósofos mais anticristãos
necessariamente usam o Cristo como referencial absoluto para erigir
seus sistemas de pensamento. Como disse Carl Jung, mesmo para aqueles
que o negam, Cristo é o ‘centro’ necessário.
Ele é a pérola preciosa, o tesouro oculto no campo,
o grão de mostarda que se faz árvore frondosa. Por mais
que a presunção orgulhosa ou a revolta sofisticada das
filosofias o reneguem, é impossível não referir-se
a Cristo. Se Ele não habita em alguns sistemas, inexoravelmente
habita no cerne de cada um de nós.
Como conciliar as bem-aventuranças com o mundo do jeitinho,
do consumo, da superficialidade?
As bem-aventuranças configuram a moralidade mais sublime de
toda a experiência humana. As camadas múltiplas de significação
desta filosofia divina são inesgotáveis. O frenesi pela
saciedade consumista representa aquilo que Platão qualifica
como o ‘mal primordial’, que consiste em tomar a minúscula
realidade presente, que vai do nascimento até a morte, como
se fosse a única e a verdadeira realidade. Isso significa que
a falta de consciência da perspectiva evolutiva da reencarnação
condiciona todas as ‘vantagens’ ilusórias. A moralidade
sublime das bem-aventuranças é incompreensível
sem o axioma da reencarnação evolutiva. Para que elas
sejam gradativamente incorporadas ao agir humano, é preciso
que o mal primordial mencionado por Platão seja afastado. Quantos
séculos serão ainda necessários para que a reencarnação
se torne um princípio universalmente aceito?