Júlio Nogueira
> Breve exame dos estatutos da FEB
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BREVE EXAME DOS ESTATUTOS DA FEDERAÇÃO
ESPÍRITA BRASILEIRA (1883-1924). MUDANÇA DE ORIENTAÇÃO
INICIAL. INCLUSÃO DE ROUSTAING SÓ REALIZADA NA REFORMA
ESTATUTÁRIA DE 1917. CRIAÇÃO DE SISTEMA DE
PODER EXCLUSIVISTA QUE NÃO NASCE DO CONSENSO ENTRE AS INSTITUIÇÕES
ESPÍRITAS, MAS QUE SE PRETENDE IMPOR DE CIMA PARA BAIXO.
Qualquer pessoa com tempo disponível
e alguma dose de perseverança poderá ter acesso
aos Estatutos da Federação Espírita Brasileira
(FEB), e suas alterações/reformas, pois eles se
encontram arquivados no registro público do Cartório
de Títulos e Documentos do Rio de Janeiro, e, também,
disponíveis na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro através
do arquivo da publicação de seus extratos no Diário
Oficial e em “O Reformador”.
O exame desses estatutos elaborados
pelos fundadores da FEB e aqueles decorrentes das sucessivas reformas
sofridas mostra claramente uma mudança de direcionamento
através de movimento executado em 03 (três) atos:
I) eliminar dos Estatutos a necessidade dos estudos das correlações
entre o Espiritismo e as Ciências Físicas, Naturais
e Morais; II) a determinação oficial de dar equivalência
aos estudos das obras de Roustaing às de Kardec e III)
a criação de um sistema de poder exclusivista.
No momento de fundação
da Federação Espírita Brasileira (FEB) esta
fez registrar seus estatutos em registro público, e, também,
fez publicar um extrato deste em “O Reformador” de
março de 1893. Neste instrumento de constituição
da FEB, a instituição manifesta entre outras questões
o desejo de estudar, também, as correlações
entre o Espiritismo e as Ciências Físicas, Naturais
e Morais (art. 2º, Inc. VIII).[1]
É fácil notar que, do ponto de vista administrativo,
a FEB se apresenta como mais um centro espírita fundado
àquela época na capital da República, sem
qualquer evidência de que pretendesse se estruturar como
um sistema ou estrutura de poder, ou mesmo como órgão
de cúpula do Espiritismo no país, até mesmo
porque a própria FEB reconhece a existência de outras
instituições como ela de representações
nacionais (art. 2º, Inc. IX).[2]
É importante registrar que não há qualquer
referência a Roustaing nos estatutos de fundação
da FEB.
Após período de
grande dificuldade financeira, a FEB foi presidida por Bezerra
de Menezes de 1895 até sua desencarnação
em 1900, mas no período de sua presidência não
houve reforma dos estatutos, ao contrário do que muitos
pensam.
A 1ª revisão do estatuto
só veio ocorrer em 1901, sob a presidência de Leopoldo
Cirne, e nesta revisão foi abolido o desejo de estudar
as correlações entre o Espiritismo e as Ciências
Psíquicas, Naturais e Morais, passando a contemplar apenas
o estudo das “obras fundamentais de Allan Kardec, ou outras
subsidiárias e complementares” (art. 2º, §1º).[3]
Note-se ainda que não há no estatuto reformado qualquer
referência expressa a Roustaing ou à necessidade
de estudar sua obra, podendo ser ela, quando muito, enquadrada
como de natureza subsidiária ou complementar aos estudos
realizados. Por outro lado, é importante destacar que nesse
estatuto reformado de 1901 a FEB manifesta o desejo de inserir-se
no movimento espírita universal estabelecendo como objetivo
atuar junto às diversas associações espíritas
existentes no Brasil e no exterior (art. 1º, §2º)
[4], prestando-lhes, sempre que desejarem,
o apoio na defesa perante os poderes públicos (art. 3º)[5],
sem, todavia, apresentar qualquer pretensão de criar uma
estrutura de poder em torno de si.
A 2ª revisão do estatuto
ocorreu em 1905, ainda sob a presidência de Leopoldo Cirne,
e nessa revisão foram mantidos em linhas gerais os mesmos
dispositivos da reforma anterior do estatuto de 1901 com acréscimos
quanto aos esboços iniciais de uma estruturação
de poder. Quanto ao viés doutrinário, continuou
a contemplar a necessidade de estudo das obras de Allan Kardec
sem menção expressa às de Roustaing, apenas
diferindo do texto que constava dos estatutos da reforma de 1901
quanto à troca de duas preposições, pois
na 1ª revisão falava-se em estudar as obras de Allan
Kardec ou subsidiárias e complementares, mas agora na reforma
de 1905 fala da necessidade de contemplar o estudo das “obras
fundamentais de Allan Kardec e outras subsidiárias ou complementares”
(art. 2º, §1º).[6]
Essa pequena alteração pareceria sem sentido se
não soubéssemos que o então Vice-Presidente
da FEB aquela época – Aristides Spínola -
era um excelente advogado, e por isso entendemos que não
se tratava de uma simples correção de texto, mas
de uma adequação de rumos para a FEB ser mais bem
aceita pelas demais instituições espíritas
que necessitavam de apoio judicial nos litígios em que
se viram envolvidas a partir de 1904. Nesse período - aproveitando
a ocasião em que médiuns curadores, receitistas
e instituições espíritas passarem a responder
criminalmente pela realização de curas violando
o então Código Penal da República e o Regulamento
Sanitário – a FEB coloca-se à disposição
das outras instituições espíritas para apoiá-las
na assistência judiciária, responsabilizando-se pelos
custos de advogados e, em algumas oportunidades, até pelas
custas judiciais, inclusive, nos Tribunais Superiores que eram
localizados na mesma cidade de sua sede, Rio de Janeiro, então
capital da República (art. 3º)[7].
Com essa facilidade e a justificativa da assistência judicial,
levados a efeito pelo então vice-presidente e advogado
Aristides Spínola, a FEB aproveita a oportunidade das comemorações
do centenário de nascimento de Allan Kardec em outubro
de 1904 para realizar um congresso nacional e lançar um
documento intitulado “Bases de Organização
Espírita”[8], que era
na verdade um esboço inicial de um sistema de estruturação
de poder onde ela se responsabilizaria pela criação
de braços estaduais e se colocava como órgão
de cúpula do Espiritismo no Brasil, fato esse facilmente
constatado através da leitura de novos dispositivos estatutários
ali inseridos, que não encontram paralelo nos estatutos
anteriores (arts. 68 a 71).[9]
A 3ª revisão do estatuto
ocorreu em 1917, sob a presidência de Aristides Spínola,
quando já bastante adiantado o movimento de criação
e consolidação dos braços da FEB nos estados.
Sob a justificativa de se adaptar ao então recém
aprovado Código Civil, foram implementados diversos direcionamentos
novos. Nessa revisão foi colocado em prática o movimento
no sentido de doutrinariamente ombrear Roustaing a Allan Kardec,
bem como o de finalmente legitimar o projeto de estruturação
de poder da FEB. Veja-se que, quanto ao viés doutrinário,
houve uma guinada significativa e sem precedentes nas revisões
anteriores, pois houve a equiparação de importância
de Allan Kardec a Roustaing, ao se contemplar a necessidade de
estudo “das obras fundamentais de Allan Kardec, de J. B.
Roustaing e outras subsidiárias e complementares”
(art. 2º, alínea “a”)[10],
além do que a FEB constituiu um capital para publicar e
divulgar as obras de Kardec e de Roustaing (arts. 62 e 63).[11]
Mas a joia da coroa estava justamente na inserção
do Capítulo XVI, também sem precedentes nas revisões
anteriores, denominado de “Da Organização
Federativa” (art. 109 a 115).[12]
Nele iremos encontrar a criação de um verdadeiro
sistema de poder exclusivista em que a FEB se autointitula a cúpula
do Espiritismo no Brasil e estabelece os meios de se perpetuar
nesta situação.
A 4ª revisão do estatuto
ocorreu em 1924, sob a presidência de Aristides Spínola,
quando já totalmente consolidados os braços da FEB
nos Estados. Nele iremos encontrar o desdobramento com detalhamento
do sistema de poder exclusivista então criado pela FEB.
Foram preservados os aspectos da reforma anterior e incluídos
dispositivos que tiveram por objetivo criar um Regulamento para
promover uma revisão geral nos atos de adesão das
federações estaduais e instituições
espíritas aderentes para cobrar mudanças nos estatutos
dos filiados com vistas a sua adequação, sob pena
de serem excluídas (art. 113 e art. 114).[13]
Neste estatuto foi instrumentalizada no Capítulo XVII a
criação de um “Conselho Federativo”.
Um órgão composto pelos membros da Diretoria da
FEB e representantes das federações estaduais, sendo
a princípio um órgão consultivo, sem força
vinculativa, mas, se acolhidas as suas proposições
por unanimidade em consulta realizada individualmente e posteriormente
pela Diretoria da FEB, tais deliberações tomam força
vinculativa, passando a FEB a cobrar a sua implementação
e eventual mudança nos estatutos das instituições
adesas (art. 123, §2º).[14]
Como é sabido, dentre as
numerosas proposições antidoutrinárias, as
concepções roustanguistas pretendem descaracterizar
o Espiritismo através de suas bases epistemológicas
e éticas, afirmando este como uma religião, com
dogmas e preceitos místicos, além de apresentar
uma teoria moral heterônoma, semelhante à das religiões,
o que representava um evidente retrocesso, senão um esvaziamento
dos princípios espíritas, inclusive no que toca
à sua teoria moral.
Portanto, essas revisões
estatutárias realizadas nos primeiros 40 (quarenta) anos
da FEB revestem-se de grande gravidade, porque através
delas foram estabelecidas mudanças significativas do ponto
de vista doutrinário, de princípios e de objetivos,
em evidente desvirtuamento dos objetivos iniciais insculpidos
em seu estatuto original pelos fundadores. Ademais, é possível
identificar que nesse período, após nebulosas deliberações,
foi implementado um sistema de poder exclusivista, hierarquizado
e um tanto autoritário, que não nasceu do consenso
entre as instituições espíritas - cujas opiniões
foram ignoradas, mas que se pretendeu impor de cima para baixo,
com o intuito de produzir no seio do movimento espírita
uma hegemonia das ideias contidas na obra de Roustaing em detrimento
das ciências filosóficas, da moral autônoma
e do trabalho de Kardec.
Posteriormente, outras revisões
foram realizadas no estatuto da FEB, modificando questões
importantes e de grande significado para o Espiritismo no Brasil,
mas isso deverá ser tema de outra abordagem porque foge
dos nossos objetivos no momento.
Júlio Nogueira
é Presidente do TELMA - Teatro Espírita Leopoldo Machado
(Salvador – BA); Delegado Especial da CEPA – Associação
Espírita Internacional; Advogado; Membro da ABPI – Associação
Brasileira de Propriedade Intelectual e da LIDC – Ligue Internationale
du Droit de la Concurrence.
Notas de rodapé
[1] “Art. 2º. Nestes intuitos ella
poderá:
...
VIII – Constituir-se antes do mais em reunião de
estudos com o fim de discriminar as adaptações que
possa ter o Spiritismo aos vários ramos dos conhecimentos
humanos: sciencias physicas, naturaes e moraes.”
[2] “IX - Fazer-se presente por um ou mais
delegados nas corporações de representação,
nacionaes ou estrangeiras.”
[3] “Art. 2º. Na realização
de seu programma, se utilisará a Federação
dos seguintes meios de acção:
...
§1º Para o estudo, theorico e pratico, da doutrina realizará
sessões, nos dias e pelo modo indicados no regimento interno,
versando esse estudo sobre as obras fundamentaes de Allan-Kardec,
ou outros subsidiários e complementares da revelação
espirita, tendo em vista a sua progressividade e assegurada a
liberdade de discussão”.
[4] “Art. 1º (...)
...
§2º Constitui-se, quer entre as associações
spiritas do Brazil, quer entre estas e as suas congêneres
no estrangeiro, o traço de união que estabeleça
a sua solidariedade, integrando-se no movimento spirita universal
(...)”.
[5] “Art. 3º. Para mais effectiva
tornar a sua função como laço entre todas
as associações federadas, a Federação
lhes prestará todo o apoio ao seu alcance, na defesa de
seus direitos e prerrogativas, junto dos poderes públicos,
sempre que preciso for”.
[6] “Art. 2º. (...)
§1º Para o estudo, theorico e pratico, da doutrina realizará
sessões, nos dias e pelo modo indicados no regimento interno,
versando esse estudo sobre as obras fundamentaes de Allan-Kardec
e outros subsidiários ou complementares da revelação
espirita, tendo em vista a sua progressividade e assegurada a
liberdade de discussão”.(grifamos)
[7] SOUZA. Juvanir Borges de. Escorço Histórico
da Federação Espírita Brasileira - Aspectos
Marcantes de Sua Trajetória. 1ª ed., FEB, 1989, p.
17.
[8] Ob. Cit., p. 17.
[9] “Art. 68. As associações
espiritas do Brasil, que desejarem filiar-se à Federação,
deverão, no acto de o solicitar, enviar um exemplar dos
seus estatutos, ou pelo menos o programma por extenso dos seus
trabalhos, afim de, examinados pela directoria, e verificando
estarem de acordo com os intuitos da Federação,
serem ellas inscriptas, recusando-se, porém, a inscripção
no caso contrario.
Art. 69. Nos Estados, em cujas capitaes existam Centros de propaganda
regularmente constituídos, filiados à Federação,
a directoria d´esta poderá ouvil-os para os effeitos
de filiação das sociedades existentes no respectivo
território.”
[10] “Art. 2º. Para o estudo a que se refere o §1º
do artigo antecedente, a Federação realizará
duas ordens de sessões:
A) Doutrinárias, nos dias e pelos modos indicados no Regimento
interno, versando o estudo sobre as obras fundamentaes de Allan
Kardec, de J. B. Roustaing e outras subsidiarias e complementares
da revelação, tendo-se em vista a sua progressividade.”
[11] “Art. 62. A Livraria da Federação
Espírita Brasileira é constituída com o capital
de trinta e oito contos de reis (38:000$000) representado em dinheiro
e effeitos existentes na data dos presentes Estatutos.
Art. 63. O capital acima será applicado à edição
por conta própria e à compra de livros espiritas,
tendo sempre preferência as obras fundamentaes de Allan
Kardec e J. B. Roustaing”.
[12] “Art. 109. (...)
...
§3º. A representação do Espiritismo no
Brasil pela Federação, em todos os actos e solenidades
internacionaes (...).”
[13] “Art. 113. Do Regulamento a que se refere o art. 111
constarão, além das condições previamente
exigíveis para o acto de adhesão, as obrigações
que as Sociedades assumem com esse acto, os direitos que adquirem
e também as causas que determinarão serem excluídas
do quadro respectivo e o modo por que se procederá à
exclusão.
§ Único. Uma vez posto em vigor o Regulamento, a Diretoria
providenciará no sentido de uma revisão geral das
filiações até então feitas, para tornal-as
todas accordes com as normas aqui estabelecidas.
Art. 114. Além dos casos especiais que o Regulamento considerar
de exclusão, (...). Essa medida se tornará effectiva
pela fórma que o aludido Regulamento determinar.”
[14] “Art. 123. (...)
...
§2º. A cada uma destas fica, entretanto, livre o adoptar,
incluindo-a na sua lei orgânica, qualquer das conclusões
votadas pelo Conselho. Cumpre-lhe, porém, nesse caso, proceder
de acordo com o Regulamento de adhesão determinar acerca
da reforma dos Estatutos das mesmas Sociedades, ulteriormente
ao acto de adhesão”.
Obs: Este artigo teve trechos publicados originalmente
no livro Autonomia - a história jamais contada do Espiritismo,
de Paulo Henrique de Figueiredo
Fonte: http://www.telma.org.br/artigos/breve-exame-dos-estatutos-da-federacao-espirita-brasileira-1883-1924-mudanca-de-orientacao-inicial-inclusao-de-roustaing-so-realizada-na-reforma-estatutaria-de-1917-criacao-de-sistema-de-poder-exclusivista-que-nao-nasce-do-consenso-ent
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