João Hélio Fernandes tinha apenas seis anos de vida quando,
no último dia 7, não conseguiu se livrar do cinto de segurança
que o prendia ao banco de trás do carro antes que os assaltantes
que renderam sua mãe arrancassem o veículo e o arrastassem
por 15 minutos, 7 quilômetros, 14 ruas e 4 bairros. Ali terminava
uma curta vida e iniciava, certamente, uma dor sem tamanho para a mãe,
Rosa Maria Fernandes. E não deve existir dor pior do que a perda
de um filho.
Delma Domingos de Carvalho, quase da idade de Rosa Maria
Fernandes, oito filhos, chora também um filho morto que ainda
não morreu. A. começou a construir a sua sepultura lá
pela favela de Nhocuné, em São Paulo, com três anos
a mais do que João Hélio. Continua lá, abrindo
o buraco, pá por pá, até que a droga o jogue na
sepultura. Foi internado pela primeira vez na Febem aos nove anos, outra
aos 11 e a última aos 16. Depois "de maior", já
amargou dezoito meses de presídio. Tem grandes chances de engrossar
as estatísticas de morte entre jovens, principal indicador de
violência. Não tem muito jeito. Lá no morro, se
A. quiser voltar para a "farinha" encontra-a na esquina. As
mães da favela não reclamam falta de escolas, mas se perguntam
o que fazer com os filhos quando estão no trabalho e eles fora
do ambiente escolar. Uma tranca os filhos em casa. A outra reza. Aquele
pequeno exército de sandálias havaianas, no entanto, pode
ser A. - ou um dos outros sete filhos de Delma que escaparam desse destino.
Basta andar na rua.
Dona Delma é considerada a filósofa da
favela. Enche cadernos e cadernos com pensamentos e poemas, a maior
parte deles na tentativa de entender a diferença entre as pessoas
- inclusive entre os próprios filhos -, o mundo em que vive e
saber como ser feliz apertando-se com os filhos num pequeno barraco
e vivendo da caridade alheia. Fez até o segundo ano primário,
mas escreve com pouquíssimos erros. E é através
das palavras que tenta construir ideais de felicidade que, sem dúvida,
estão muito longe de seu alcance.
Dona Delma fez parte de um programa que arregimentava
mães de internos para trabalhar na Febem. Esteve lá. Rezou
pela primeira internação de A.. Achou que se o filho ficasse
longe das ruas de Nhocuné teria mais chances de recuperar a infância
perdida. No caderno, é perceptível o processo de reconhecimento
que faz da instituição. Primeiro, a primeira impressão
de que todos - funcionários, as mães faxineiras e a instituição
- estavam no mesmo lado. Mas as desconfianças chegavam na forma
de sombras. "O peso da noite tira o sossego. Pelos vitrôs
entra a brisa, que não faz diferença nenhuma no clima
tenso dali. A noite faz com que os corredores se tornem tumbas, mas
com seres vivos andando como zumbis (...). Adolescentes infratores seguem
seus condutores. Ouvem as ordens, obedecem ou se rebelam." O clima
que impregna vem em outra parte: "Hoje na Febem/ Garotos enraivados/
Agentes irados/ O clima estava pesado/ E eu com meu balde e minha vassoura/
Me sentindo uma invasora". O balde e a vassoura lhe permitiram,
aos poucos, ver que o clima era sólido como uma pedra. "Hoje
meu coração está apertado. Porque na Febem, tive
um fato revelado. Um adolescente machucado, pedindo pra ao ir banheiro
ser acompanhado. O condutor demorou meia hora, que eu mesma, sem acreditar,
marquei no relógio. O adolescente, sem escolha, teve que esperar.
Então que eu percebi onde eu fui parar. No meio de desumanos,
descendentes de Hitler. Sentem prazer em judiar, maltratar e prejudicar
os garotos que, sem escolha, são instrumentos do bel prazer tenebroso
no campo de concentração dos condutores da Febem."
Periferia fabrica bandidos e vítimas
É a mãe também que tenta entender,
em seu sofrimento, a individualidade do filho. É a mesma mãe
que tem medo da violência que toma conta do mundo à sua
volta. É a mãe que, num poema quase ingênuo, conta
que extraterrestres chegaram ao planeta mas resolvem ir embora. "É
assim que vocês vivem uns com os outros? Iguais mas tão
diferentes. O que houve com a sua gente?" Numa rima pobre, em outro
poema, a outra dúvida - quem sabe foram os marcianos que a incutiram
em Delma: "Brasil varonil/ quem foi que te feriu?"
E é a mãe que dói que está
à espera do filho, que vai sair da Febem: "Te espero aqui
na porta. Hoje ou quando tiver que ser. Não tenha pressa. Só
quero o bem pra você (....). Acredito em você. Faça
o seu lado do bem vencer".
O caderno de Delma é uma lição.
Essa é apenas uma tentativa de dividi-la nesse momento em que,
justamente, o país compartilha o sofrimento pela vida de um menino
de seis anos e tenta medir a dor de uma mãe que perdeu um filho
- e não deve ter padrão métrico que dê conta
disso. Mas Delma, também, que pode enterrar o seu filho a qualquer
momento, tem direito à mesma fita métrica. Nesse momento
em que o tema sobre a redução da maioridade penal tem
tudo para se tornar hegemônico, talvez se possa inverter o debate
e ver como o país, principalmente nas suas periferias, constrói
fábricas de menores infratores ou candidatos a celas de presídios.
Ou, pior ainda, vítimas de bandidos e policiais que, de tão
banalizados nas periferias, sequer comovem ou remetem a qualquer debate.
Ensina Delma, em outro poema: "Somos reféns
dos astros, no palco da vida. A peça todos conhecemos: Polícia
e Bandido, Dinheiro ou a Vida". Ou a recomendação
justa, num texto intitulado "Não julgues": "A
situação já é dolorosa, não coloque
ninguém à prova. Nem diminua quem já está
sofrendo. Não se sinta um poderoso, por sua profissão
ser um pouco melhor que a dos outros. Pense que todos somos irmãos:
ao invés do chicote, estenda a mão, ao invés da
língua, use o coração."
Termino com um texto que Delma fez ao filho A., chamado
"Desajustado": "Está aprendendo na vida, na base
de muita porrada. Apronta, escapa! Faz a vida certa, faz a vida errada.
Traz no corpo cicatrizes dos seus vários deslizes. Mas teima
em ser feliz. Cuida do seu próprio nariz. Agora foi parar num
dos piores lugares: na Febem do Brás, pra aprender a não
andar para trás. Aos dezessete, na Febem. A partir dos dezoito....
Responder? Só a ele convém!!!"
Maria Inês Nassif é editora de Opinião
do jornal "O Valor" - esta reportagem saiu em março
de 2007 no jornal. Escreve às quintas-feiras
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