A
milenar Índia compartilha com o Brasil a posição
de país emergente e dos contrastes.
Destaca-se como 11ª economia mundial, enquanto
abriga mais de um quarto da população mais pobre do mundo.
Nos últimos 5 anos atraiu mais de 100 empresas globais que lá
instalaram seus núcleos de Pesquisa & Desenvolvimento graças
à disponibilidade de mão-de-obra e de recursos humanos
qualificados. É verdade que forma apenas cerca de cinco mil doutores
por ano, em uma população que ultrapassa um bilhão
de pessoas, enquanto 39% dos adultos não sabem ler ou escrever.
Mas há um enorme esforço em impulsionar o desenvolvimento
de C&T. Não é todo país que anuncia o investimento
de US$3,8 bilhões para pesquisas científicas a serem consumidos
até 2006. Tantos avanços parecem ser um enorme contraste
em um país fortemente religioso, onde as três principais
religiões são o hinduísmo, o islamismo e o budismo.
Ranjit Nair, diretor do Centro de Filosofia
e Fundações da Ciência (CPFS), conversou
por e-mail com a ComCiência e falou sobre uma ciência à
serviço do bem estar humano que não vai de encontro aos
princípios religiosos indianos. "As tradições
religiosas que se originaram na Índia, viam o conhecimento como
uma forma de libertação, não de aprisionamento",
afirma. Nair, que se considera um estudante de cosmologia, “um
assunto que é infinitamente fascinante”, acredita que já
é hora de haver uma reparação na relação
“tradicionalmente tensa” entre religião e ciência.
ComCiência –
Fala-se sobre os desafios que o novo Papa terá de enfrentar em
relação à ciência. Qual é o papel
de líderes religiosos em relação ao desenvolvimento
científico?
Ranjit Nair - O novo Papa é,
claramente, um homem de considerável aprendizado e experiência,
imerso nas tradições da Igreja. Sua ascensão causou
controvérsias. Seus detratores alegam que ele protegia as dioceses
onde os padres caíram em tentação. Talvez isso
mostre uma aceitação de que os padres são afinal
humanos e seria injusto estabelecer padrões extremamente elevados
de proibição.
Por outro lado, as relações entre a ciência
e a igreja têm sido tradicionalmente tensas e deve-se esperar
que uma reparação seja feita por este ou pelo próximo
Papa. A Igreja reabilitou oficialmente Galileu séculos após
sua morte, o que foi algo bom e que deveria ser estendido a outros mártires
da causa científica.
O melhor que os líderes religiosos podem fazer
é pensar sobre o lugar do dogma santificado em uma era em que
a ciência é a moeda do conhecimento e a tecnologia a moeda
do poder. Desde a Reforma, as igrejas tentaram tornar-se menos frias
e autoritárias e mais envolvidas com o bem estar de seus seguidores.
O Papa João Paulo II apoiou o esforço
heróico de Lech Walesa [líder metalúrgico, anti-comunista
polonês, ganhador do Nobel da Paz de 1983 e eleito presidente
da Polônia em 1990] e do Solidariedade [Comitê Sindical
fundado por Walesa para organizar o movimento social] contra um regime
tirano, mas decepcionou a muitos quando adotou atitudes desgastantes
contra questões como o controle da natalidade e a prevenção
da aids. A história o perdoará, já que ninguém
pode ser totalmente bom e mesmo aqueles que fizeram pouca bondade merecem
gratidão.
ComCiência –
Como está a situação na Índia em relação
a essa questão?
Nair - A situação na
Índia é muito diferente e não é fácil
compreendê-la quando se olha de fora. A Índia abriga todas
as religiões, tanto as nativas quanto as naturalizadas. As tradições
religiosas que se originaram no país viam o conhecimento como
uma forma de libertação, não de aprisionamento.
A evidência perceptiva foi aceita por todas as escolas filosóficas;
como Shankara [cerca de 788 – 820, teólogo e filósofo
que reformou o hinduísmo com uma interpretação
monística, onde toda realidade seria remetida a uma única
fonte] disse no século VIII, 'mesmo que cem textos escriturais
afirmem que o fogo é fresco e não radiante, isso não
o tornaria assim'. As tradições espirituais da Índia
receberam bem o conhecimento. O ritualista Mimamsa, uma das seis escolas
chamadas de filosofia védica, acreditava que as escrituras tratavam
do desempenho do ritual e tinham uma metafísica sobre como os
rituais conduziam aos resultados desejados. Mas, curiosamente, eles
não reservaram um lugar para um Deus. O único argumento
filosófico para um Deus aparece no século X em um texto
da escola de Nyaya [outra escola dentro da filosofia védica].
Isto não significa que os intelectuais desaprovaram as religiões
populares – elas foram aceitas como caminhos à verdade
de forma acessível para seus seguidores. O visitante árabe
Alberuni, no século X, viu claramente que o monismo dos intelectuais
não contradizia o monoteísmo. Quando o islamismo entrou
na Índia, não foi através de conquistas, mas através
dos homens sagrados chamados de sufi [responsáveis por falar
diretamente com Deus e compreender os mistérios espirituais],
que pertenciam a uma ordem considerada herética dentro do islamismo
ortodoxo.
ComCiência -
Como a sociedade indiana, principalmente os grupos religiosos nela contidos,
lida com temas científicos ligados à questão da
geração e destruição da vida – como
a clonagem, o uso de células-tronco e a eutanásia?
Nair - Na Índia não há,
à primeira vista, qualquer oposição a novas tecnologias
que possam aliviar o sofrimento humano. No século XIX, os intelectuais
religiosos não se sentiram ameaçados pela teoria da evolução
de Darwin. A eutanásia foi aceita dentro das tradições
religiosas. O imperador Chandragupta de Maurya [321 a. C. - 232 a.C]
tirou a própria vida em um templo em Jaina, apressando sua morte.
Os problemas enfrentados pela sociedade indiana são os mesmos
enfrentados pelas sociedades consumistas mundiais, com um agravante.
O equilíbrio de gênero, particularmente nas regiões
do norte da Índia onde há um atraso social, está
longe de ter a preponderância feminina natural, indicando uma
difusão do infanticídio feminino. O mau uso de tecnologias
como a amniocentesis [exame do líquido amniótico que envolve
o feto], para a seleção de gênero, apesar de ser
oficialmente proibido, ocorre com a conivência daqueles que dão
suporte à lei. Na sociedade consumista em que vivemos, dinheiro
é uma marca de sucesso, não importando o quão patológico
isso tenha se tornado.
ComCiência -
O governo indiano financia a pesquisa em áreas biotecnológicas?
Nair - O governo vê uma oportunidade
aqui, porque as nações ocidentais são prisioneiras
da história e, portanto, vacilam na hora de permitir pesquisas,
mesmo no campo da clonagem terapêutica. O sucesso das terapias
de cultivo de células-tronco para situações onde
não há cura ou de fatalidade aliviaria bastante o sofrimento
humano. Se Jesus Cristo fosse vivo, ele não tentaria todos os
recursos que estivessem ao seu alcance para ajudar os doentes e os que
estão morrendo? Seus milagres, os quais os céticos podem
considerar como lembranças nostálgicas, podem ser potencialmente
alcançados com o auxílio da ciência. Na Índia,
a pesquisa sobre o bioética é quase inexistente e na melhor
das hipóteses é derivativa, uma vez que os tecnocratas
não têm tempo para tais frivolidades. É uma questão
de tempo, espera-se, até que os tecnocratas possam desenvolver
antenas éticas.
ComCiência -
Como o governo deve agir em relação a superstições
populares para promover inclusão social através da ciência?
Nair - Eu não estou certo sobre
quais superstições está se falando aqui, porque
a crença popular existe em toda parte. Os ingleses não
comem cachorros, enquanto os coreanos comem. Os hindus tradicionais
não comem carne, mas os ingleses comem. Poderíamos dizer
que os ingleses são supersticiosos em relação aos
cães? Os melhores críticos de uma sociedade são
seus próprios críticos que compreendem as crenças
de forma contextualizada e são conscientes de suas inadequações.
Todas as sociedades do mundo têm alguma forma de superstição:
o detrito acumulado da história.
ComCiência –
É possível que cientistas sejam religiosos?Quando ciência
e religião se sobrepõem?
Nair - Sempre houve e ainda há
cientistas que são religiosos, então isso é claramente
possível. O problema surge somente quando suas inclinações
religiosas interferem na ciência que praticam – o que é
um caminho para a perdição. A comunidade científica
mundial não recebe bem as tentativas de legitimar opiniões
pessoais através da ciência. A ciência é feita
por povos de diferentes países e com diversas crenças
religiosas, homens e mulheres, altos e baixos, brancos e negros. Nenhuma
dessas diferenças extra-científicas importa na busca pela
verdade.
ComCiência -
Como lidar com necessidades locais em um mundo globalizado?
Nair - A liderança da Índia
livre era também multiétnica e comprometida com o desenvolvimento
da ciência, por exempl, como na época da liderança
de valentes como Jawaharlal Nehru [1889-1964, líder político
indiano que lutou para a independência de seu país]. O
desenvolvimento da ciência e da tecnologia para promover as capacidades
produtivas de seus cidadãos foi o objetivo principal da Índia
livre. Em situação internacional adversa, a democracia
indiana, que era secular, republicana e comprometida em melhorar os
povos, encontrou apenas hostilidade e condescendência de seus
exploradores. Agora os grandes países asiáticos, China
e Índia, têm as economias que mais crescem e sustentam
a demanda do mundo, prevendo um retorno do centro de gravidade da economia
mundial para a Ásia, depois da aberração provisória
da Revolução Industrial. De qualquer forma, são
os tecnocratas, que estão ansiosos sobre a capacidade tecnológica
emergente desses países, que precisam aprender com esses povos
sobre os problemas criados por mega projetos, como as grandes represas
que têm conseqüências ecológicas e sociais desastrosas.
A suposição implícita de que os mandarins necessitam
controlar as superstições populares é uma infeliz
conseqüência do colonialismo.
Entrevista feita por Germana Barata
Fonte:
http://www.comciencia.br/entrevistas/2005/05/entrevista2.htm
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