José Carlos Monteiro de Moura
> Ponto de Mutação: A Visão
Espírita
1. Um exame da atual experiência
humana leva, inexoravelmente, à constatação de
que ela vive uma de suas fases mais contraditórias, em que
os extremos atingiram limites nunca antes alcançados. Jamais
o progresso científico e o avanço tecnológico
foram tão vertiginosos, como o observado nos últimos
cem anos. Todavia, quanto ao aspecto moral, o homem não conseguiu
caminhar no mesmo ritmo.
Daí a razão por que os cientistas sociais são
unânimes em reconhecer que o final do século passado
e o início do atual constituem mais um ponto de mutação
da Humanidade, cuja principal característica será a
implantação de uma nova consciência, conforme
acentua Leonardo Boff, em seu livro “FEMININO E MASCULINO, Uma
nova consciência para o encontro das diferenças [1],
escrito a quatro mãos com Rose Marie Muraro.
De acordo com eles,
“...é só
recentemente, no final do século XX e no início do
século XXI que podemos falar realmente da emergência
de uma nova consciência. A aceleração histórica
e a tecnologia se tornaram incontroláveis e imprevisíveis.
Mais de 90% de todas as grandes invenções foram feitas
nos últimos cem anos. Assim, a humanidade caminhou de uma
lenta escalada para uma aceleração explosiva, principalmente
depois da invenção das tecnologias eletrônicas,
das quais a mais importante é a do computador, que dá
início à Segunda Revolução Industrial.
Estamos vivendo, portanto, mais um “ponto de mutação”
da nossa espécie, criador de uma nova consciência das
novas estruturas humanas. Só que este é, talvez, o
mais profundo de todos, tão radical quanto aquele que nos
transformou de animais em seres humanos: nos primórdios integrados
à natureza, os seres humanos também integrados entre
si”.
2. Fritjof Capra [2]
sustenta que a revolução da física moderna prenuncia
uma revolução iminente em todas as ciências e
uma transformação da nossa visão do mundo e dos
nossos valores. Entende, também, que os movimentos sociais
dos anos sessenta e setenta (o livro aqui citado foi escrito em 1981)
representam uma nova cultura em ascensão, que, fatalmente,
irá substituir as instituições vigentes, reconhecidamente
obsoletas. O seu raciocínio se apóia nas tradições
místicas orientais, com especial destaque para o I
Ching, cujas palavras são utilizadas na abertura da
referida obra:
“O término
de um período de decadência sobrevém o ponto
de mutação. A luz poderosa que fora banida ressurge.
Há movimento, mas este não é gerado pela força...
O movimento é natural, surge espontaneamente. Por essa razão,
a transformação do antigo torna-se fácil. O
velho é descartado, e o novo é introduzido. Ambas
as medidas se harmonizam com o tempo, não resultando daí,
portanto, nenhum dano” (op.
cit, s/n)
3. Essas opiniões, confrontadas
com a realidade, dão a impressão de que não
passam de utópicas esperanças de seus autores, e que
é quase impossível alimentar qualquer expectativa mais
otimista quanto ao futuro da Humanidade. A agressividade, tanto individual
como coletiva, vem alarmando as autoridades das diferentes nações
e os órgãos internacionais incumbidos de zelar pela
paz mundial. A tecnologia a serviço do crime e da guerra dá
uma dimensão exata dessa “era de perplexidades e
contradições”, em que a fome e a miséria
convivem no mesmo espaço com a fartura e a riqueza, o lixo
com o luxo, a doença com a saúde, a guerra com a paz!
As pesquisas de Erich Hobsbawm [3],
professor aposentado do Birkbeck College da Universidade de Londres
e atualmente (então)
lecionando na New School for Social Research, de Nova York, concluem
que, no século XX, mataram-se mais seres humanos do que em
qualquer outra época. Mas, contraditoriamente, tais pesquisas
apontam, também, que nunca se chegou a níveis de bem-estar
e a transformações iguais aos observados nesse período.
Quem conhece a obra de Kardec não se espanta nem se admira
diante dessa realidade. Em A GÊNESE,
ele é por demais explicito ao afirmar que uma nova geração
virá substituir aquela já velha e carcomida que ainda
ocupava - e ocupa - seu lugar no mundo, o que implicará, necessariamente,
uma série de sacudidelas no planeta. Adverte, porém,
que tais sacudidelas não serão caracterizadas por grandes
hecatombes de natureza física, porquanto ocorrerão no
interior da própria Humanidade, cujas entranhas serão
seriamente abaladas: “Hoje, já não
são mais as entranhas do planeta que se agitam: são
as da Humanidade” (p.
405).
Publicada em janeiro de l868, encerra uma autêntica profecia
em relação a todos os acontecimentos que ocorrem atualmente
na Terra. No Capítulo XVIII, o Codificador faz uma síntese
magistral da situação da Terra neste início de
um novo ciclo. Tomando como ponto de referência a Lei do Progresso,
ele destaca o duplo aspecto da evolução planetária,
o físico e o moral, o que conduzirá à depuração
dos Espíritos encarnados e desencarnados que povoam a Terra.
Enquanto a primeira se realiza de forma brusca e caracterizada por
impressões muito acentuadas, a outra segue um ritmo lento,
gradual e insensível. Daí a razão da distância
que ainda separa as duas formas de evolução.
5. O “ponto de mutação”
dos filósofos e sociólogos, com todas as conseqüências
que as grandes transformações sempre provocaram, está
definido de uma maneira clara e incontestável no seguinte trecho
da referida obra:
“A Humanidade tem
realizado, até ao presente, incontestáveis progressos.
Os homens, com a sua inteligência, chegaram a resultados que
jamais haviam alcançado, sob o ponto de vista das ciências,
das artes e do bem-estar material. Resta-lhes ainda um imenso progresso
a realizar: o de fazerem que entre si reinem a caridade, a fraternidade,
a solidariedade, que lhes assegurem o bem-estar moral. Não
poderiam consegui-lo nem com as sua crenças, nem com as suas
instituições antiquadas, estas de outra idade, boas
para certa época, suficientes para um estado transitório,
mas que, havendo dado tudo o que comportavam, seriam hoje um entrave.
Já não é somente de desenvolver a inteligência
o de que os homens necessitam, mas de elevar o sentimento e, para
isso, faz-se preciso destruir tudo o que superexcite neles o egoísmo
e o orgulho” (p. 404).
6. É indiscutível a importância do papel que ao
Espiritismo cabe desempenhar na árdua tarefa de elevação
do sentimento humano. Isso não significa nenhuma vã
pretensão de torná-lo universalmente aceito, uma vez
que as enormes diferenças culturais e raciais, ainda presentes
no mundo, inviabilizam tal resultado. O conflito de culturas, principalmente
entre o Ocidente e o Oriente, impede, no nosso modo de ver, a sua
acolhida e adoção entre povos e nações
que ainda não conseguiram desembaraçar-se do formalismo
e ritualismo religiosos, fato que se observa, sem exceção,
em todos os credos. Isso tem gerado um outro conflito de seríssimas
consequências e ao qual não se dá o devido cuidado:
o conflito de teologias, que existe mesmo no seio das próprias
correntes de uma mesma religião. Basta lembrar, por exemplo,
as disputas que ocorrem entre partidários da Teologia da Libertação
e os Ortodoxos, na Igreja Romana; entre os Tradicionalistas e os adeptos
da Teologia da Prosperidade - base de todo o sistema neopentecostalista,
nas Igrejas Reformadas, ou a contenda quase bélica entre sunitas
e xiitas, observada no Islamismo.
7. O Espiritismo, no seu aspecto religioso, é o único
que se mantém distante dessas indesejáveis divisões,
não obstante as malogradas tentativas de alguns de seus seguidores
mais exaltados, o que se explica e até se justifica como resultante
das reminiscências de seu passado religioso. A razão
de ser de sua importância na atual conjuntura da Terra decorre
desse fato. Compete-lhe, pois, a relevante missão de contribuir
para a efetiva instalação, divulgação
e manutenção da noção de religiosidade
entre os homens, o que somente se conseguirá com a espiritualização
do ser humano.
Kardec anteviu essa situação e toda sua obra se destina,
iniludivelmente, a tarefa de alfabetização espiritual
da Humanidade, principal causa de todos os seus males e sofrimentos.
Tal encargo originariamente caberia às religiões, mas
elas se deixaram levar pelas disputas internas e externas, e não
assimilaram as lições legadas por Jesus. Ao invés
de aproximar o homem de Deus, empenharam-se em torná-Lo cada
vez mais distante, através das complicações de
seus rituais, dos absurdos de seus dogmas, do verdadeiro culto de
terror divino que implantaram, aliados à presunção
de serem titulares absolutas da verdade, em detrimento das demais.
O pároco da Igreja do Carmo em Belo Horizonte, Frei Cláudio
Van Balem – que há muito anda na mira da Congregação
para a Doutrina da Fé (nome moderno do Tribunal do Santo Ofício)
– em entrevista concedida ao jornal ESTADO DE MINAS do dia 6
de outubro de 2002, declarou textualmente que “talvez o
berço maior de toda a violência da história da
humanidade se encontre nas religiões, com sua ânsia de
monopolizar a verdade”. Depois de denunciar o enorme analfabetismo
espiritual que ainda predomina no mundo, afirma: “...o analfabetismo
é marcado pela uniformidade e conservação, e
a espiritualidade pela diversidade e inovação. O analfabetismo
aprisiona e fragmenta. A espiritualidade liberta e integra. Enquanto
o analfabetismo exclui, a espiritualidade inclui”. E conclui
dizendo que “o analfabetismo pode estar associado à
religião, ao passo que as pessoas espiritualizadas vivem a
religiosidade”. Essas idéias “coincidem”
com aquilo que o Codificador sempre sustentou, e guardam profunda
identidade com o pensamento dos Espíritos. É o que se
vê, por exemplo, em Joanna de Ângelis [4]:
“A religiosidade é uma conquista que ultrapassa a
adoção de uma religião; uma realização
interior lúcida, que independe do formalismo, mas que apenas
se consegue através da coragem de o homem emergir da
rotina e encontrar a própria identidade”.
Em síntese, referidas opiniões confirmam a afirmativa
de que as revelações do Plano Espiritual Superior seriam
comunicadas ao mundo em diferentes lugares e por diferentes pessoas,
independentemente de cor, raça, posição social
ou credo religioso, porque “o vento assopra onde quer, e
ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai;
assim é todo aquele que é nascido do Espírito”
(João, 3: 8).
Referências
[1] Boff, Leonardo
e Muraro, Rose Marie – FEMININO E MASCULINO, Editora Sextante,
Rio, 2002, pp 10 e 11
[2] Capra, Fritjof – O PONTO DE MUTAÇÃO,
Editora Cultrix, 1987
[3] Hobsbawm – ERA DOS EXTREMOS – O breve
século XX – 1914-1991, Cia. das Letras, São Paulo,
2003
[4] O HOMEM INTEGRAL, psicografia de Divaldo Pereira
Franco, Livraria Espírita Alvorada – Editora, Salvador,
Bahia, 1991, p. 60.
Fonte: CASA EDITORA O
CLARIM - Brasil
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