A complexidade nos convoca para uma verdadeira reforma do
pensamento, semelhante à produzida no passado pelo
paradigma copernicano. Mas essa nova abordagem
e compreensão do mundo, de um mundo que se "autoproduz",
confere também um novo sentido à ação:
trata-se de fazer nossas apostas, o que vale dizer que com
a complexidade ganhamos a liberdade.
A grande descoberta do século é que a ciência
não é o reino da certeza. Ela se baseia, seguramente,
numa série de certezas local e espacialmente situadas. A
rotação da Terra em torno do sol, por exemplo, nos
parece certa; mas seria possível dizer isso, tanto 100 milhões
de anos antes de nossa era quanto depois, sabendo-se que o Universo
está submetido a flutuações e perturbações,
às quais hoje chamamos de movimento caótico? A
ciência é de fato um domínio de múltiplas
certezas, e não o da certeza absoluta no plano teórico.
A obra de Popper se tornou indispensável para a compreensão
de que uma teoria científica não existe como tal,
a não ser que, na medida em que aceita ser falível,
submete-se ao jogo da "falsificabilidade" e, portanto,
aceita sua biodegradabilidade.
Ordem, Separabilidade e Lógica: os
Pilares da Ciência Clássica
A ciência clássica se apóia
nos três pilares da certeza, que são a ordem, a separabilidade
e a lógica. Para ela, esses eram os fundamentos
absolutos. A ordem do Universo, tal como entendida
por Descartes e Newton, era o produto da perfeição
divina. Com Laplace, a hipótese de Deus é descartada:
a ordem funciona sozinha, é "autoconsolidada".
A idéia de determinismo absoluto tornou-se objeto de uma
crença quase religiosa entre os cientistas, que por isso
se esqueceram de que ela não pode, de modo algum, ser demonstrada.
A segunda idéia-chave era a separabilidade.
Conhecer é separar: face a um problema complicado, dizia
Descartes, é preciso dividi-lo em pequenos fragmentos e trabalhá-los
um após o outro. Assim, as disciplinas científicas
são desenvolvidas a partir da divisão do interior
das grandes ciências, a física, a biologia etc., o
que dá origem a compartimentos sempre novos. No limite, pode-se
dizer que a separação entre ciência e filosofia
e, mais amplamente, entre ciência e cultura humanista —
filosofia, literatura, poesia etc. —, está instituída
em nosso século como uma necessidade legítima.
Nas ciências, a separação entre o observador
e sua observação, ou seja, entre nós, humanos,
que consideramos os fenômenos, e estes (os objetos de conhecimento),
tinha valor de certeza absoluta. O conhecimento científico,
objetivo, implicava a eliminação do indivíduo
e da subjetividade. Se existisse um sujeito, ele causaria perturbação
— seria um ruído.
Terceiro pilar: a lógica, a indução.
Com base em um número importante e variado de observações,
podia-se tirar delas leis gerais. Quanto à dedução,
era um meio implacável de conduzir à verdade. Os
princípios aristotélicos da identidade, da não-contradição
e do terceiro excluído, permitiam eliminar toda confusão,
equívoco e contradição.
A lógica, a separabilidade e a ordem levaram para a ciência
clássica essa certeza absoluta, na qual ela se baseia. E
os resultados têm sido tão brilhantes que acabaram,
paradoxalmente, colocando em xeque os princípios fundamentadores
da separação. Foi a ordem, isto é,
o determinismo (tudo o que escapa ao acaso, às perturbações
e à imprevisão), que entrou primeiro em crise.
Com efeito, a termodinâmica introduziu a desordem molecular
no fenômeno chamado calor. Sabemos hoje que nosso Universo
tem uma origem calorífica, surgiu de um fenômeno térmico
inicial, uma espécie de explosão seguida de enorme
agitação.
A presença da desordem universal se revela em todos os níveis:
microscópico, cosmofísico e também histórico,
humano. Em relação a este, lembramos que a história
não se reduz a processos determinísticos: é
também feita de bifurcações, acasos, crises,
daquilo que Shakespeare chamou de "o som e a fúria".
Isso não quer dizer, no entanto, que a desordem tomou o lugar
da ordem. Um Universo assim seria tão insensato e impossível
como aquele em que reinasse a ordem pura.
No reinado da ordem pura não há criação,
não há possibilidade de nada novo. Se só existisse
a desordem, agitação, a álea, o Universo seria
simplesmente inviável.
É preciso, portanto, que desde o começo
um certo número de princípios, considerados como de
ordem, provoquem, sob certas condições, alguns encontros
nessa agitação de partículas. O princípio
de interação forte ligará e formará
núcleos; o princípio de interação eletromagnética
impelirá os elétrons, para que eles se coloquem em
volta do núcleo e formem os átomos; enfim, o princípio
gravitacional atua no plano da formação dos astros,
das galáxias...
Em outros termos, estamos diante deste paradoxo:
as noções de ordem e desordem se repelem mutuamente.
O Universo é um coquetel de ambas, uma mistura muito
diferente segundo os casos, as condições, os lugares,
os momentos... De acordo com o ângulo de observação,
um dado fenômeno pode ao mesmo tempo se inclinar para um lado
ou para o outro. Os átomos de carbono, por exemplo, são
formados nos sóis anteriores ao nosso, pela reunião
instantânea de três núcleos de hélio.
No interior dessas fantásticas forjas que são os astros,
as interações são inumeráveis e o encontro,
no mesmo momento, de três núcleos de hélio,
é tão raro quanto aleatório. Entretanto, uma
vez ocorrido, uma lei entra em jogo: a do carbono que vai ser produzido.
É no encontro da ordem e da desordem que se produz
a organização. Quando os três núcleos
de hélio se reúnem, nasce uma delas, a do átomo
de carbono. Essas organizações criam, no seu próprio
interior, uma ordem que lhes é própria. O mundo dos
seres vivos obedece a todas as leis da física e da química;
sua ordem é baseada na autoprodução, na regeneração
etc.
Quanto á separabilidade, percebeu-se que ela leva à
divisão das partes constituintes dos conjuntos organizados
em sistemas, o que proporciona um conhecimento insuficiente, mutilado.
Pode-se extrair um corpo de seu meio natural, colocá-lo num
contexto experimental, controlado pelas variações
que sobre ele atuam. Não é possível conhecer,
numa única avaliação, a relação
profunda que existe entre o corpo e seu ambiente. Os seres vivos
não são nada sem o seu meio. As experiências
realizadas em cativeiro, para investigar a inteligência de
seres sociais como os chimpanzés, não nos têm
permitido saber o que eles aprenderam depois delas. Com efeito,
no curso de observações pacientes desses animais,
em seu meio natural e em suas sociedades, pôde-se constatar
que os indivíduos são diferenciados e que existem
relações muito complexas entre eles. O chimpanzé
adulto, por exemplo, não pratica o incesto.
A separabilidade perdeu seu valor absoluto. Uma
das peculiaridades de um conjunto organizado em sistema decorre
do fato de que, ao existir, essa organização produz
qualidades novas, chamadas "emergências". Estas
retroagem sobre o todo, e não podem ser identificadas quando
se tomam os elementos isoladamente. Desse modo, a organização
viva gera um certo número de qualidades, como autoprodução,
autonutrição e auto-reparação. Tais
qualidades não se encontram nas partes, mas as beneficiam.
Da mesma forma, uma sociedade produz emergências culturais,
como a linguagem, que retroage sobre os indivíduos
e lhes permite, por sua aquisição (que é também
conhecimento), tornarem-se plenamente humanos.
Consumou-se hoje, nas ciências, uma segunda transformação.
A primeira aconteceu na física, no começo deste século,
e destronou a ordem. A outra começou na segunda metade do
século, com as ciências ditas sistêmicas,
que lidam com os sistemas ecológicos espontâneos, que
nascem das interações entre as plantas, os animais,
o terreno geofísico, o clima. Todas essas interações
produzem um conjunto mais ou menos auto-regulado, submetido a perturbações.
Dessa maneira, a partir dos anos 80, a ecologia
começou a levar em conta, além dos ecossistemas, o
sistema ainda mais complexo e mais ou menos regulado que é
a biosfera. Isso permitiu acrescentar os seres
humanos e sua civilização técnica, e prever
com alguma certeza os riscos possíveis da desregulação.
A partir da descoberta da tectônica das placas, nos anos 60,
as ciências da Terra (sismologia, vulcanologia, geologia),
que não se comunicavam entre si, hoje são articuladas
umas às outras. Essa circunstância tem permitido compreender
o planeta como um conjunto articulado e complexo. O ecologista,
por exemplo, não conhece todos os dados da zoologia, botânica,
física, geografia; tem um conhecimento parcial de cada uma,
"um pouco de tudo", como dizia Pascal. No entanto, ao
apelar para as competências dessas diferentes especialidades,
ele dá um sentido a seus conhecimentos e os articula entre
si. Infelizmente, a sociologia não fez essa revolução.
A biologia também não.
A cosmofísica, na realidade, tornou-se inseparável
da cosmologia, que é um ensaio de compreensão do mundo.
A revolução da ressurreição do cosmos
(durante um século, o espaço-tempo — uma espécie
de infinito — havia tomado o seu lugar) começou logo
que se constatou o afastamento das galáxias. Num determinado
momento, supunha-se que elas eram muito próximas umas das
outras e que havia existido um núcleo inicial. Hoje sabemos
que o cosmos tem uma história e que ela sofreu transformações.
O cosmólogo foi levado a refletir sobre o mundo, sua origem,
seu propósito ou sentido, se é que existe um. Ele
retoma assim a relação filosófica,
reinventa uma filosofia em estado selvagem. Com efeito,
por falta de interesse dos filósofos, os cientistas são
obrigados a refletir sobre o sentido de suas descobertas.
A questão: "O que é o real?", que
parecia tão evidente, reapareceu. O que é
o Universo onde — para seguir d'Espagnat — as coisas
obviamente separadas são, num certo nível, inseparáveis,
a partir do momento em que interagem? Trata-se de falar
de inseparabilidade na separabilidade. O grande desafio
do conhecimento repousa sobre esse paradoxo: para
uma mesma realidade, depara-se ao mesmo tempo com o contínuo
e com o descontínuo. As célebres experiências
sobre a onda e o corpúsculo, relativas à natureza
da partícula, mostraram que ela se comporta tanto como ondulação
quanto como grânulo. Ou seja: ora de modo contínuo,
ora de forma descontínua — o que é contraditório
do ponto de vista lógico. Reencontramos os mesmos problemas
no que se refere à sociedade: se a consideramos
de modo global, trata-se de um continuum. Os indivíduos nela
se dissolvem, como ainda imaginam numerosos sociólogos. Ou
então, pode-se considerar que tanto os indivíduos
quando a sociedade se diluem, o que permite a certos autores dizer
que esta não existe, e que só contam as interações
entre as pessoas. No caso da espécie e do indivíduo
é a mesma coisa: não existem senão indivíduos.
Contudo, quando se leva em conta um longo espaço de tempo,
eles se dissolvem e surge a noção contínua
de espécie.
Eis o paradoxo do separável e do inseparável.
Pascal não só já o havia colocado,
mas tinha também indicado o caminho a seguir para avançar
no conhecimento. Que dizia ele? Que "sendo todas as coisas
ajudadas e ajudantes, causadas e causadoras, estando tudo unido
por uma ligação natural e insensível, acho
impossível conhecer as partes sem conhecer o todo,
e impossível conhecer o todo sem conhecer cada uma
das partes". Nessa frase, de uma densidade e clareza
extraordinárias, ele formula — no mesmo momento em
que Descartes, triunfante, introduz o princípio da separação
absoluta — o programa do conhecimento contemporâneo,
que ainda não se conseguiu pôr em prática.
No que concerne à lógica,
o umbral foi transposto no momento em que certos teóricos,
ou pensadores, mostraram os limites da indução.
Segundo o célebre exemplo de Popper, a regra geral que diz
que "todos os cisnes são brancos" já não
é una, porque não se pode pressupor que não
existam, em algum lugar, cisnes negros. A indução
não é certeza absoluta; significa, em muitos casos,
a existência de fortes possibilidades, de quase-certezas.
Essa "derrapagem", que ocorre também na dedução,
foi assinalada pelos gregos. É o "paradoxo de
Creta", segundo o qual todos os cretenses são
mentirosos. Se um deles disser a verdade será, portanto,
um mentiroso, porque todos os demais o são.
Esse paradoxo foi retomado por Russell, que tentou
superá-lo. Ele nos conduz ao teorema de Gödel,
cujo sentido é múltiplo, desde que queiramos investigá-lo
além de seus limites matemáticos. É um problema
de lógica fundamental, que nos ensina que nenhum sistema
tem a capacidade de dar a si próprio a prova de sua consistência,
atribuir-se uma certeza suficiente a partir de suas próprias
fontes. Conseqüência metalógica: nenhum
ser humano pode se autoconhecer por completo. O mesmo acontece
com a Humanidade. Eis uma abertura reveladora da inconclusibilidade
do conhecimento — e da lógica.
A partir daí, a ciência clássica se
defrontou com a contradição e começou a temer
o erro. Niels Bohr teve a coragem de afrontar
a aporia da onda e do corpúsculo sem poder ultrapassá-la,
o que significa reconhecer que se trata de dois termos contraditórios
e complementares. Admite-se hoje que é possível
chegar, por meios racionais e empíricos, a essas contradições.
De resto, Kant já havia mostrado que no
horizonte da razão havia um certo número de impasses
fundamentais.
Pode-se enfrentar esse problema não sonhando entrar numa
nova lógica, que nos permita integrar as contradições,
mas mostrando que é possível promover um incessante
jogo de circularidade entre nossa lógica tradicional
e as transgressões necessárias ao progresso de uma
racionalidade aberta. Esse propósito pode ser ilustrado
tomando o aforismo de Heráclito: "Viver
de morte, morrer de vida". Eis uma proposição
extravagante. No entanto, sabemos hoje que os seres vivos —
nosso organismo, por exemplo — ao funcionar degradam sua energia,
isto é, as moléculas de suas células. Estas
morrem e são substituídas por outras. Dizendo de outra
forma, nossa vida continua graças à morte
celular, porque o organismo é dotado de um poder
de regeneração contínua. Cada batimento do
coração, cada movimento respiratório, é
uma obra de regeneração. O oxigênio é
um detoxificante.
Do mesmo modo, uma sociedade vive da morte de seus indivíduos.
Faz isso passando às novas gerações a cultura
que começa a se decompor nos cérebros mais senis.
É como viver da morte. Essa contradição lógica
fundamental pode ser explicada, etapa por etapa, de modo segmentar,
sem sair do caminho lógico (as células têm a
capacidade de se reproduzir). Entretanto, para compreender esse
fenômeno básico necessitamos do paradoxo (que vale
também para os ecossistemas) chamado circularidade
trófica, que ilustra a recursividade da vida: o
ciclo vital, que é também de morte. São duas
faces da mesma realidade. Morrer de vida: esse é o nosso
processo de rejuvenescimento contínuo. É "mortificante"
remoçar, eis a trágica lição da vida.
Estas formulações nos permitem unir o que
o pensamento clássico não conseguiu. Continua
sendo verdade que o maior inimigo da vida é a morte, e que
o maior desafio ao fenômeno da decomposição
é o renascimento da vida. O pensamento deve ser capaz
de confrontar os antagonismos, poder enxergar as aporias,
sem que para tanto precise renegar o valor da lógica, a dedução
ou a indução.
O Pensamento Complexo
Desses três desafios — a relação
entre a ordem, a desordem e a organização; a questão
da separabilidade ou a distinção entre separabilidade
e não-separação; e o problema da lógica
— podem ser tiradas as três vertentes do pensamento
complexo.
Discutir sem dividir: a palavra complexus retira
daí seu primeiro sentido, ou seja, "o que é tecido
junto". Pensar a complexidade é respeitar a tessitura
comum, o complexo que ela forma para além de suas partes.
A segunda linha fundamental é a imprevisibilidade.
Um pensamento complexo deve ser capaz de não apenas religar,
mas de adotar uma postura em relação à incerteza.
As ciências físicas, que descobriram a incerteza, encontraram
estratégias para lidar com ela, utilizando a estatística,
por exemplo. A eletrônica permite alcançar resultados
de grande precisão, em termos de conhecimento desse mundo
flutuante. O pensamento capaz de lidar com a incerteza
existe no domínio das ciências, mas não nos
âmbitos social, econômico, psicológico e histórico.
O terceiro ponto é a oposição
da racionalização fechada à racionalidade aberta.
A primeira pensa que é a razão que está a serviço
da lógica, enquanto a segunda imagina o inverso. Racionalizar
significa acreditar que, se um determinado sistema é coerente,
é portanto perfeito e por isso não precisa ser verificado.
Vivemos sob o império de idéias racionalizadoras,
que não conseguem se dar conta do que acontece e privilegiam
os sistemas fechados, coerentes e consistentes. A ciência
econômica contemporânea — formalizada e matemática
— é um magnífico exemplo de racionalização.
É inteiramente fechada, não consegue perceber as paixões,
a vida, a carne dos seres humanos. Por isso, é incapaz de
fazer previsões quando surgem eventos inesperados. Mais ainda
que no século de Moliére, os Disfoirus triunfam.
O desafio é hoje generalizado: falar
da incerteza é falar do caos. Emprego esse termo
em seu sentido original, e não no derivado das teorias sobre
o tema. Trata-se, como no pensamento grego, da idéia de que
o cosmos, ou universo ordenado, nasce do caos, isto é, que
forças genésicas extremamente violentas, comportando
potencialmente a ordem e a desordem indiferenciadas, podem se exprimir
num determinado momento. Os gregos pensavam que a origem do organizado,
ou racional, é a loucura. É o que sustenta Platão,
quando diz que diké, a justiça, é filha de
hubris, o delírio. O caos é um pouco daquilo que corresponde
à palavra physis, isto é, o mundo no qual estamos
e do qual as coisas nascem. Está continuamente presente sob
o cosmos, ou — pouco importa — no interior dele. O
Universo é caos. Isso quer dizer que forças de desordem,
ordem e organização brotam continuamente do seu seio,
o que dá origem à constituição de novas
estrelas, a colisões de galáxias e, em nossa Terra,
ao conflito de impulsos de barbárie e associação.
De acordo com a teoria do caos,
processos deterministas por natureza conduzem, com grande rapidez,
a estados imprevisíveis e aparentemente desordenados. Por
quê? Porque as interações são incontroláveis
e o conhecimento total e absoluto dos estados iniciais não
nos é permitido. É uma maneira de dizer que, mesmo
na ocorrência de um determinismo inicial, há imprevisibilidade
e desordem aparentes. O que compreendeu Henri Atlan, o
termodinâmico de origem austríaca, quando disse que
a vida existe à temperatura de sua própria destruição?
Segundo o seu belo livro Entre le Cristal et la Fumée [Entre
o Cristal e a Fumaça], é preciso entender que não
somos nem fumaça nem cristal. Não somos seres fluidos
nem sólidos. Somos híbridos que vivem à temperatura
de sua combustão e destruição.
No desafio da complexidade, certos
filósofos podem nos ajudar: Heráclito, com o enfrentamento
das contradições; Sócrates com a dialética,
cujo jogo de oposições faz progredir o conhecimento;
Nicolás de Cusa, no plano místico; João da
Cruz; Jacob Boehme; Pascal, em cuja obra não se reconheceu
o papel central que desempenham as contradições; Hegel,
evidentemente; Nietzsche, até certo ponto.
A Emergência dos Sistemas
Entretanto, para que adquiríssemos os meios intelectuais
e conceituais necessários à entrada no universo da
complexidade, foi preciso esperar pelos anos 50,
quando surgiram três teorias novas.
A primeira foi a cibernética de Norbert
Wiener, que é ao mesmo tempo engenheiro e pensador.
A ele devemos a idéia de retroação
e circularidade, que estava latente desde a obra de Marx,
na qual a superestrutura retroage sobre a infra-estrutura. Essa
idéia de ciclos retroativos, que quebram
a causalidade linear, mostra que os fatos podem, eles próprios,
tornar-se causadores, ao retroagir sobre a causa, como Pascal já
havia assinalado. Essa recursividade tem dois aspectos:
um, regulador, que impede que os desvios destruam os sistemas; e
outro potencialmente destruidor, chamado de feedback positivo, que
os fazem explodir.
Nos anos 60, outro pensador, o nipo-americano Magoroh
Maruyama, fez a seguinte proposição:
não se pode ter criação, a não ser por
meio dos feedbacks positivos. Em outros termos, quando
um sistema se desregula, há um desvio que se amplifica. Nesse
caso, o sistema - sobretudo se é complexo (social ou humano)
- em vez de se desgovernar pode transformar-se. A criação
não é possível senão pela desregulação.
O segundo aporte conceitual é a teoria
dos sistemas, que propõe que o todo é
maior que a soma de suas partes, mas também que é
menor que ela; assim, a totalidade pode oprimir as partes
e impedir que estas dêem o melhor de si mesmas. Isso tem conseqüências
político-sociais indiretas. Um grande império não
é melhor porque é um todo: sua bancarrota pode ser
salutar, ao liberar as potencialidades das partes dominadas.
A idéia capital aqui é a de emergência.
As qualidades que aparecem podem ser induzidas, mas não podem,
em contrapartida, ser deduzidas logicamente. As emergências
estão em qualquer espécie de flor. A evolução
biológica levou, num determinado momento, a uma verdadeira
explosão floral - mas persiste a questão de saber
por que as flores têm necessidade de mostrar o seu sexo, de
serem exibicionistas!
O terceiro aporte é a teoria da informação,
de Shannon e Weaver. É um instrumento capaz
de lidar com a incerteza, com o inesperado.
Extrai-se do mundo do ruído algo de novo e muitas vezes surpreendente.
A noção de informação, ao mesmo tempo
física e semântica, nos introduz num mundo onde o novo
pode aparecer, ser reconhecido, assinalado... Captamos o novo nessa
relação permanente de ordem e redundância, na
integração do conhecido e na ordem do ruído.
Essas três teorias formam uma espécie
de "rés-do-chão". No primeiro estágio,
pode-se colocar a contribuição de Von Foerster
e Von Neumann. Este, refletindo sobre a diferença
entre as máquinas artificiais - as que produzimos a partir
de elementos fabricados e confiáveis - e as máquinas
naturais, cujos elementos são pouco confiáveis (essas
moléculas que se degradam por um nada!), perguntou-se: por
que as primeiras, logo que começam a funcionar, iniciam seus
processos de usura e degradação, enquanto que as segundas
- os seres vivos - podem progredir, evoluir? A resposta é
que os viventes têm o poder da auto-reparação,
da auto-reforma.
A segunda idéia, de Von Foerster,
é a "ordem a partir do ruído".
Seu jogo experimental era o seguinte: tomava de uma caixa, dentro
da qual colocava cubos com determinados lados imantados. Em seguida
provocava agitação, isto é, introduzia na caixa
uma energia não-direcional e, portanto, a desordem. Apesar
disso, a presença de um princípio de ordem - os ímãs
- permitia que os cubos chegassem a uma arquitetura bem organizada.
Eis o fenômeno da auto-organização.
O segundo estágio é
o que se poderia chamar de auto-eco-organização.
Um ser vivo precisa nutrir-se para regenerar sua energia. Para ser
autônomo, tem necessidade do meio ambiente, de onde retira
não energia bruta, mas já organizada. Do mesmo modo,
temos gravada em nossa organização uma ordem cósmica,
a alternância do dia e da noite. Essa ordem (por uma espécie
de mecanismo cíclico, que pode se tornar independente da
luz e da obscuridade, como mostraram experiências em cavernas
sem luz) nos permite alternar a vigília e o sono...
Tudo isso para dizer que a separação
entre o conhecedor e o conhecido não pode ser alcançada.
Sabe-se, depois de Kant, que para conhecer o mundo
projetamos nele nossas categorias, nossos a priori espaciais e temporais.
Por uma Convivência Solidária
Essa circunstância pode ser ainda confirmada pelo funcionamento
do cérebro humano: isolado no interior de uma caixa fechada,
ele todavia se comunica com o Universo pela mediação
de terminais sensoriais. Os estímulos visuais, por exemplo,
são transformados num código binário, que tecido
cerebral retrabalha e transforma em percepção ou representação.
O conhecimento não é senão uma tradução,
uma reconstrução. Não conhecemos a
essência das coisas exteriores. Sabemos das coisas objetivas,
que podemos confirmar, mas não há conhecimento sem
integração do conhecido. Essa circunstância
vale também para os fenômenos sociais e humanos. O
sociólogo e o economista são parte da sociedade, e
a totalidade desta - ou seja, a cultura, a linguagem - está
também neles.
Num estágio superior, vejo a necessidade
de uma reforma paradigmática dos conceitos dominantes
e de suas relações lógicas, que controlam,
inconsciente e incorrigivelmente, todo o nosso conhecimento. O paradigma
sob o qual vivemos é o da disjunção e da redução:
e ele nos torna cegos, nesta era de globalidade e mundialização.
Não podemos produzir por decreto a reforma
necessária, porque ela está inscrita no próprio
curso da história; pensemos na passagem do paradigma
ptolomaico ao copernicano. Tal reforma consiste em passar
para um paradigma de religação, conjunção,
implicação mútua e distinção.
Ela pressupõe uma mudança no ensino, que por sua vez
implica uma transformação do pensamento. É
um círculo vicioso, do qual precisamos sair um dia... Um
conhecimento pertinente é aquele que é capaz de contextualizar,
isto é, religar, globalizar. A ação
adquire um novo sentido: fazer as apostas. Pascal
- novamente ele - apostava em Deus. Nós
apostamos em valores que não podem ser fundamentados. Assim
como o mundo, a ética se autoproduz.
Conhecer é também uma estratégia,
que pode se modificar em relação ao programa inicial,
que é flexível e leva em conta o que chamo de ecologia
da ação. Sabe-se hoje que uma ação,
lançada ao mundo, entra num turbilhão de interações
e retroações, que podem se voltar contra a intenção
inicial.
Por fim, uma última idéia: o
sentimento de uma comunidade de destino profundo, que liga as idéias
de solidariedade e fraternidade. O laço entre complexidade
e solidariedade não é mecânico. Uma sociedade
muito complexa proporciona muitas liberdades de jogo a seus indivíduos
e grupos. Permite-lhes ser criativos, algumas vezes delinqüentes.
A complexidade tem, assim, seus riscos. Ao atingir o extremo da
complexidade a sociedade se desintegra. Para impedi-lo, pode-se
recorrer a medidas autoritárias; entretanto, supondo que
desejemos o mínimo possível de coerção,
o único cimento que nos resta é a solidariedade vivida.