“Todas as ciências
se encadeiam e se sucedem numa ordem racional; elas nascem
umas das outras, à medida que encontram um ponto
de apoio nas idéias e conhecimentos anteriores.”
(3)
Pedagogia
e método são termos fundamentais para quem quer
se dedicar ao estudo do Espiritismo. Se consultarmos o dicionário,
veremos que um significado possível para a palavra pedagogia
é: teoria e ciência da educação e do
ensino. A palavra método, por sua vez, tem um significado
que abrange não só as noções de meios
e fins (caminho), mas, indo além desse conhecimento, liga-nos
às noções de ordem, regra, sistema, procedimento,
etc. Essas acepções nos remetem à idéia
de ensino, ou melhor, de ensino e aprendizado.
Nas casas espíritas que mantêm Curso de Médiuns,
ou Curso de Educação Mediúnica (chamada antigamente
de Escola de Médiuns), os dirigentes desses cursos vivem,
dia a dia, a experiência de um ensinar e aprender constantes,
a lhes mostrar as crianças espirituais que somos todos
nós. É o defrontar da religião com a ciência:
nesse espaço, conhecimento teórico da doutrina espírita
é condição necessária, mas não
suficiente, porque há todo um aprendizado que é
feito in loco, caso a caso. Para isso, é preciso crer.
Infelizmente, no meio espírita, não se dá
real valor aos Cursos de Médiuns: ou ele é tratado
como continuação natural de uma Escola de Aprendizes
do Evangelho, ou como uma espécie de aperfeiçoamento
da parte técnica da Doutrina. Também não
há pesquisas nessa área, como se elas não
fossem do interesse das próprias casas espíritas.
Como resultado, estamos assistindo a uma espécie de tomada
de posição por parte dos dirigentes de cursos. Temos
aqueles que acreditam no fenômeno em si, e não procuram
aprimorar seus conhecimentos: preparam alunos crédulos,
sem base. E temos dirigentes que, por um suposto cientificismo,
rejeitam os fenômenos que lhes caem às mãos:
preparam alunos sem fé, incapazes de entender o que existe
de maravilhoso na mediunidade.
Em se tratando de mediunidade, ortodoxia é má conselheira.
Provamos que desconhecemos Kardec, se não aceitarmos que
“duas forças regem o universo: o elemento espiritual
e o elemento material; da ação simultânea
desses dois princípios nascem fenômenos especiais
que são naturalmente inexplicáveis, se se faz abstração
de um dos dois...” (4) Cada
caso é único, cada médium um mundo próprio.
A preocupação
do mestre lionês em comunicar-se eficazmente já se
nota desde as primeiras páginas de “O
Livro dos Espíritos”. Ao insistir na
compreensão do que é a alma, ou na justificativa
para a introdução dos neologismos (para uma coisa
nova, um nome novo), Kardec já antevia o quão difícil
seria convencer a posteridade do caráter científico
do Espiritismo. É por demais óbvio que uma tarefa
de tal envergadura necessitava de alguém com grande conhecimento
da ciência de sua época e, mais que isso, com preparo
para passar esse conhecimento. Quem melhor que Kardec, um educador
comprometido com uma nova pedagogia, aprendida com Pestalozzi?
Escrever “O Livro dos Espíritos”
em forma de perguntas e respostas foi uma decisão adrede
preparada, para facilitar a compreensão de temas tão
complexos. Quem melhor que um professor para a transmissão
da nova revelação? O próprio Kardec tinha
bem a consciência do papel a desempenhar: “Qual
é o papel do professor diante de seus alunos, senão
o de um revelador? Ele lhes ensina aquilo que não sabem,
o que não teriam tempo nem possibilidade de descobrir por
si mesmos, porque a ciência é obra coletiva dos séculos
e de uma multidão de homens que trouxeram, cada um, o seu
contingente de observações, e das quais se aproveitam
aqueles que vêm depois. O ensino é, assim, na realidade,
a revelação de certas verdades científicas
ou morais, físicas ou metafísicas, feita por homens
que as conhecem a outros que as ignoram e que permaneceriam ignoradas,
se assim não fosse.” (5)
Em todas as obras de Kardec é claramente perceptível
o esforço feito para nos transmitir os assuntos de maneira
didática (didática, aqui, no sentido de utilizar
uma técnica eficaz de ensino, arte de ensinar): parecem
até ingênuas, em certas ocasiões, as repetições
de alguns conceitos, ou a insistência em fixar algumas premissas.
Na verdade, é nessas ocasiões que Kardec revela
toda a sua genialidade, e o quanto permanece atual. Nos dias de
hoje, um trabalho que busque legitimação na área
científica tem que dizer a que veio, que hipóteses
está levantando, quais as justificativas e procedimentos
adotados. Kardec não deixou por menos: em pleno século
XIX escreveu, com toda a clareza, que o Espiritismo “aplica
o método experimental... é uma ciência da
observação e não o produto da imaginação”
e que “As ciências não fizeram progressos
sérios senão depois que os seus estudos se basearam
no método experimental; mas acreditava-se que esse método
não poderia ser aplicado senão à matéria,
ao passo que o é igualmente às coisas metafísicas.
(6)
É pena que a esse conjunto de afirmações
de Kardec não se dê a importância que merece:
evitaríamos muitos problemas em nossas casas espíritas,
que passam pelo misticismo, fatalismo e extravagâncias que
nada tem a ver com a Doutrina. Quando tais tipos de conduta não
encontram oposição fundamentada por parte dos dirigentes
de Cursos de Médiuns, a casa tende a se afastar da essência
do trabalho sério, feito com conhecimento. Em nome desse
conhecimento, todo dirigente de curso tem por obrigação
estudar Kardec com afinco.
Por tratar da parte prática, técnico-científica
(ou fenomênica, se preferirem) do Espiritismo, “O
Livro dos Médiuns” revela, desde sua
primeira página, a preocupação do Codificador
com o estabelecimento das premissas, as argumentações,
o desenvolvimento das explicações para os fatos
e as refutações necessárias: é o pedagogo
explicando a mais pura ciência. E por se tratar de ciência,
foi mister estabelecer as bases, fora das quais não caberia
continuar a discussão: “Seja qual for a idéia
que dos Espíritos se faça, a crença neles
necessariamente se funda na existência de um princípio
inteligente fora da matéria. Essa crença é
incompatível com a negação absoluta deste
princípio.” (7)
É neste ponto que quero chegar. Num trabalho acadêmico,
por exemplo, minhas conclusões se verificarão mediante
a aceitação de determinadas condições
estabelecidas a priori. Em outras palavras, derrubadas as premissas,
minhas conclusões poderão ser falsas.
No meio espírita, vez por outra me encontro diante de temas
para os quais as pessoas se perguntam: “Isto é
ciência ou religião?” No meu modo de ver,
alimentar esse tipo de discussão é recusar o princípio
da indivisibilidade entre os elementos material e espiritual,
premissa para ler “A Gênese”.
Grassa no meio espírita a idéia de que é
possível sermos espíritas de modo “científico”:
se essa afirmação é feita por um dirigente
de Curso de Médiuns, a distorção das palavras
de Kardec atinge aspectos de maior gravidade, porque esse dirigente
convive com o lado fenomênico da mediunidade, cotidianamente.
“Em lógica elementar, para se discutir uma coisa,
preciso se faz conhecê-la...”, (8)
é o que nos assevera o Codificador. Se o ponto de partida
é a existência da alma, torna-se incoerente nos dizermos
espíritas e ao mesmo tempo buscarmos a justificação
científica da existência dela. Creio que isso se
resolve a partir da leitura do Capítulo III de “O
Livro dos Médiuns”, intitulado “Do
Método”, o qual considero a leitura definitiva
não só para dirigentes, mas para os médiuns
em geral. Todos os argumentos de que necessitamos para a compreensão
dos fenômenos mediúnicos estão ali, sem subterfúgios.
É nosso dever procurar uma base racional para explicar
os fenômenos espíritas. Entretanto, não temos
o direito de negar autenticidade aos fenômenos que não
são passíveis de constatação através
de nossos sentidos, pela simples razão de que os espíritos
não estão à nossa disposição,
nem têm obrigação de nos prestar contas. “Se
houvéssemos de somente acreditar no que vemos com os nossos
olhos, a bem pouco se reduziriam as nossas convicções.”
(9)
Aceitam-se como válidos, no meio científico, os
processos de argumentações e teste de hipóteses,
muitas vezes baseados em dados estatísticos questionáveis.
Em suma, é válido o método que se utiliza
da persuasão através dos processos de explicações
e/ou das experiências. Por qual razão – pergunto
– o método de Kardec encontra objeção
na área da Ciência ? Vejamos o que afirmou o mestre
de Lion: “Não se espantem os adeptos com esta
palavra – ensino. Não constitui ensino unicamente
o que é dado do púlpito ou da tribuna. Há
também o da simples conversação. Ensina todo
aquele que procura persuadir a outro, seja pelo processo das explicações,
seja pelo das experiências.” (10)
Impossível ser mais claro ! Se o método é
válido, é válido sempre: não há
como criar uma dupla conceituação de método,
valendo uma para fenômenos ditos “científicos”
e outra para fenômenos que, por serem da área do
Espiritismo, são ditos “religiosos” ou - para
voltar ao século de Kardec - metafísicos.
Quem quiser entender realmente o porquê da preocupação
de Kardec com o método e qual a razão de o mundo
espiritual se utilizar de um espírito encarnado envolvido
com a Pedagogia, leia o que vem depois das afirmações
citadas no parágrafo anterior. Duas delas são fundamentais,
em se tratando de “fazer ciência”, e é
com elas que me despeço dos caros leitores. Muita paz a
todos ! Que Jesus nos abençoe, hoje e sempre!
1a) “No Espiritismo, a questão dos Espíritos
é secundária e consecutiva; não constitui
o ponto de partida. Este precisamente o erro em que caem muitos
adeptos... Não sendo os Espíritos senão as
almas dos homens, o verdadeiro ponto de partida é a existência
da alma.”
2a) “Todo ensino metódico tem que partir do conhecido
para o desconhecido. Ora, para o materialista, o conhecido é
a matéria: parti, pois, da matéria e tratai, antes
de tudo, fazendo que ele a observe, de convencê-lo de que
há nele alguma coisa que escapa às leis da matéria...
Falar-lhe dos Espíritos, antes que esteja convencido de
ter uma alma, é começar por onde se deve acabar,
porquanto não lhe será possível aceitar a
conclusão, sem que admita as premissas.” (11)
_______________
[1] Este artigo foi escrito com o
objetivo de aprofundar a reflexão em torno de um antigo
tema, qual seja, o da ciência versus religião, visto
a partir da obra de Allan Kardec.
[2] O autor, Raimundo Wilson Santos Duarte Morais, é dirigente
de Curso de Médiuns e do Centro Espírita Discípulos
de Jesus, da Aliança Espírita Evangélica.
Cursou a Universidade de São Paulo (graduação
e licenciatura plena).
[3] Kardec, A. – A Gênese – Capítulo
I – Item 17 – São Paulo, Ed. LAKE, 17a edição,
outubro de 1 990, p.17.
[4] Idem, idem – Introdução à 1a edição
publicada em janeiro de 1868, p.7.
[5] Op. cit. - Capítulo I – Item 4, p. 11
[6] Idem, ibidem – Item 14, p. 16
[7] Kardec, A. – O Livro dos Médiuns – Primeira
Parte – Capítulo I – Item 1 – Rio de
Janeiro, FEB, 58a edição, junho de 1 991, p. 17
[8] Idem, idem, ibidem – Capítulo II – Item
12, p. 28.
[9] Op. cit. – Idem – Item 17, p. 34, in fine.
[10] Idem, idem – Capítulo III – Item 18, p.
36.
[11] Idem, idem, ibidem, pp. 36-37.