
O paradigma espírita de homem
é muito revelador: somos espíritos em progresso, que
necessitados de múltiplos aprendizados no campo da inteligência
e da moral, mergulhamos sucessivamente em corpos, das mais diversas
naturezas, em diversos mundos, obedecendo à lógica educativa
da necessidade individual. Desse modo, cada encarnação
oferecerá ao espírito o(s) cenário(s), irremediavelmente,
necessário(s) ao seu crescimento.
Reencarnação e planejamento
É nesse sentido, da diversidade de nossas necessidades
de aprendizagens e, portanto, de progresso, que a questão 167
de O Livro dos Espíritos vem nos esclarecer:
O número de existências
corporais é limitado, ou o espírito reencarna perpetuamente?
“A cada nova existência, o espírito dá
um passo no caminho do progresso; quando se despoja de todas as
suas impurezas, não tem mais necessidade das provas da vida
corporal.”
Entendemos o caminho do espírito
como o acúmulo de virtudes. Cada conquista contribui para despojá-lo
dessas impurezas, tornando-o forte diante das provas que a matéria
lhe oferece. Viver é por si só, um desafio: sair da
incompletude para a felicidade, através do desenvolvimento
do senso moral.
No livro Missionários da Luz, o mentor Alexandre nos
aponta uma importante distinção no que tange ao modo
pelo qual o planejamento dessas encarnações se dão.
Ele diz que há um modus operandi geral, pelo qual
“grande percentagem de reencarnações na Crosta
se processa em moldes padronizados para todos, no campo de manifestações
puramente evolutivas. Mas outra percentagem não obedece ao
mesmo programa. Elevando-se a alma em cultura e conhecimentos, e,
consequentemente, em responsabilidade, o processo reencarnacionista
individual é mais complexo, fugindo à expressão
geral, como é lógico”(1).
Ora, o que vemos aqui se não um cuidado em oferecer ao espírito,
conforme sua maturidade, autonomia, livre-arbítrio, para que,
a cada encarnação ele seja ainda mais senhor do seu
destino.
- 1 André
Luiz, por Francisco Cândido Xavier, em Missionários da
Luz, capítulo 12.
Com isso queremos abrir a premissa de nossas reflexões nesse
curto trabalho, que será a seguinte: nenhuma grande questão
moral, que distinga determinada reencarnação do “pacote
genérico” em que constam milhares de homens e mulheres
sobre a Terra, haverá de ser “por acaso”, ou um
por um desvio da Lei. Não há desvios e os grandes traumas
que nos abatem são planos individuais, confirmados por nossos
guias, para nosso progresso espiritual.
“Os espíritos têm
sexo?”
Haveremos, com muita justiça,
de concordar que as questões da diversidade da sexualidade
humana são um desses aspectos consequentes ao planejamento
reencarnatório, necessariamente. Ver-se numa condição
corporal que não corresponde à sua psique ou antes disso,
ver-se atraído por determinado homem ou mulher que lhe caracterize
certo risco social, por conta do preconceito, certamente constitui-se
uma das mais difíceis provas por que pode passar um ser nesse
campo da sexualidade. Uma prova dessa natureza não poderia
deixar de estar no planejamento feito para a encarnação.
Allan Kardec, preocupando-se com o tema e procurando as distinções
entre essência e aparência, perguntou em O Livro dos
Espíritos:
200. Os espíritos
têm sexos?
“Não como o entendeis, pois os sexos dependem da organização.
Há entre eles amor e simpatia, mas baseados na semelhança
dos sentimentos.”
201. O espírito que animou o corpo de um homem pode,
numa nova existência, animar o de uma mulher e reciprocamente?
“Sim, são os mesmos espíritos que animam os
homens e as mulheres.”
202. Quando se é um espírito errante, prefere-se
encarnar no corpo de um homem ou de uma mulher?
“Isso pouco importa ao espírito; dá-se em função
das provas por que haja de passar.”
Fica evidente que do ponto de vista
espírita sexo é uma aparência, que durará
o tempo em que a necessidade de provar-se durar. Precisando passar
por diversas encarnações distintas e recolher de cada
uma delas o aprendizado que está ou aquele gênero lhe
conferem, o espírito define a polaridade em que vai mergulhar,
a cada encarnação.
Se por um lado, isso nos leva a compreender que no fim do processo
o espírito é um ser assexuado, ou seja, sem polarização,
já que terá apreendido o que ambas as experiências
podiam lhe conferir, por outro concluímos com certa facilidade
que durante o processo, ou seja, na fase em que se reencarna sucessivamente,
o espírito terá quase sempre certa preferência,
por este ou aquele gênero, consequência da quantidade
e da qualidade de suas últimas experiências.
Dificilmente o espírito passando, por exemplo, por algumas
dezenas de reencarnações sucessivas em corpo feminino,
conseguirá adaptar-se de pronto à polaridade masculina
quando a hora desta experiência soar. Foi o que Kardec concluiu
em interessante texto publicado na Revista Espírita: “Se
essa influência da vida corporal repercute na vida espiritual,
o mesmo se dá quando o Espírito passa da vida espiritual
para a corporal. Numa nova encarnação, ele trará
o caráter e as inclinações que tinha como Espírito;
se ele for avançado, será um homem avançado;
se for atrasado, será um homem atrasado. Mudando de sexo ele
poderá, portanto, sob essa impressão e em sua nova encarnação,
conservar os gostos, as inclinações e o caráter
inerentes ao sexo que acaba e deixar. Assim se explicam certas
anomalias aparentes (2),
notadas no caráter de certos homens e de certas mulheres”(3).
- 2 Grifo nosso.
- 3 Revista Espírita, janeiro de 1866. As mulheres têm
alma?
O trecho grifado nos mobiliza uma interessante reflexão, pois
Kardec, em 1866, com uma mente progressista e ousada, falou em anomalia
aparente, ou seja, não se trata de diferença essencial,
e muito justificada no campo da reencarnação. Vai parecendo,
como alguns estudiosos já concluíram, que a orientação
sexual do individuo na Terra é mero detalhe, estando o essencial
muito mais atrelado ao que se faz da sexualidade do que àquilo
que se está. Hetero ou homossexual são condições
circunstanciais, passageiras, enquanto que aquilo que fazemos de nós
mesmos e dos outros no campo de nossa sexualidade, esses sim, são
elementos formadores de nosso caráter.
O que é normal?
Uma importante discussão social
está em alta e para ela ainda há de produzir não
só conhecimentos científicos sólidos como também
opiniões espíritas com mais amplo embasamento teórico.
Trata-se das aproximações e distanciamentos dos conceitos
de gênero e sexo. Durante séculos, as condições
inversivas, acima expostas, foram tratadas como doença, anormalidade
e por isso alvo de perseguição, seja ela moral, seja
física, como em muitos povos e épocas.
O sexo é biológico, definido por questões mais
ou menos fáceis de se observar, como os níveis hormonais
e a aparência do órgão sexual, interno ou externo.
Gênero vem sendo definido como a polaridade em que o ser se
sente à vontade. Na maior parte dos casos, o sexo está
alinhado com o gênero, já que a heterossexualidade prevalece
na atual população da Terra. Mas como fica, do ponto
de vista espírita os muitos casos em que se dá um certo
desalinhamento e aquela alma sente-se atraída por pessoas do
mesmo sexo? Essa é uma condição anormal pelo
fato de se dar em, estatisticamente, menos pessoas? André Luiz
vem em nosso socorro, com um texto espantosamente de 1964:

Como explicar os homossexuais?
“Devemos considerar que o espírito reencarna, em regime
de inversão sexual, como pode renascer em condições
transitórias de mutilação ou cegueira. Isso não
quer dizer que homossexuais ou intersexos estejam nessa posição,
endereçados ao escândalo e à viciação,
como aleijados e cegos não se encontram na inibição
ou na sombra para ser delinquentes.”
“Compete-nos entender que cada personalidade humana permanece
em determinada experiência merecendo o respeito geral no trabalho
ou na provação em que estagia, importando anotar, ainda,
que o conceito de normalidade e anormalidade são relativos.
Lembremo-nos de que se a cegueira fosse a condição da
maioria dos espíritos reencarnados na Terra, o homem que pudesse
enxergar seria positivamente considerado minoria e exceção.”(4)
- 4 - Ver anuário espírita de
1964, número 1. Pergunta 16. Atualmente essa mensagem é
encontrada no livro Chico Xavier e suas mensagens no anuário
espírita. Editora Boa Nova.
À guisa de conclusão,
faremos diferente desta vez, dada a natureza do tema, que ainda mexe
com muitos conceitos arraigados em nós, e deixaremos a condição
de análise e julgamento ao foro íntimo, que será
sempre nosso guia, já que, conforme vimos no início,
estamos em processo e desenvolvendo nosso senso moral, capaz de perceber
a amplitude das leis e do amor de Deus.
Por mais que não me veja em condições de dar
qualquer palavra final ao tema dizendo o que é, não
posso deixar de dizer ao menos o que, em matéria de Espiritismo
(depreendido das citações acima) a homossexualidade
não é: