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No livro "O Fio e os Rastros" , Carlo Ginzburg afirma o compromisso do historiador em distinguir o verdadeiro do falso


O que divide história e ficção? Essa é a pergunta que une os 16 ensaios de Carlo Ginzburg, originalmente escritos para ocasiões diversas, em tempos diversos, no livro "O Fio e os Rastros" (Companhia das Letras, 456 págs.).

A preocupação do autor com essa antiga questão acentuou-se no início dos anos 1980, na contracorrente de um “ceticismo pós-moderno” tendente a eliminar as fronteiras entre narrações ficcionais e narrações históricas. Ginzburg reconhece que ambas compartilham um aspecto de construção, além de “uma contenda pela representação da realidade”, ou melhor: uma luta cheia de “desafios, empréstimos recíprocos, hibridismos”. Reconhece também que, em meio à sua complexidade, “não era possível combater o neoceticismo repetindo velhas certezas. Era preciso aprender com o inimigo para combatê-lo de modo mais eficaz”.

O “inimigo” tem vários nomes e um deles é Hayden White. Mas Ginzburg jamais o nomeia com ênfase, mantendo a elegância áspera peculiar de seu texto. “Hayden White” é citado 180 mil vezes no Google; “Carlo Ginzburg” aparece 174 mil: um empate técnico. Durante a palestra de Ginzburg, na Universidade de São Paulo, para o lançamento de "Os Fios e os Rastros", em agosto de 2007, o auditório apinhado de estudantes e professores, foi Hayden White um dos nomes mais citados nas questões da platéia (outro nome foi o de Arnaldo Momigliano).

No livro, White dilui-se entre as centenas de autores e personagens, reais ou fictícios, citados por Ginzburg a partir de outros autores e personagens, reais ou fictícios, como em uma caixa que revela outra caixa na busca infatigável pela “verdade”.

Este é um ponto crucial para Ginzburg: a busca pela “verdade”, palavra hoje “impronunciável” (exceto entre aspas escritas ou gestuais, lembra o historiador), afortunadamente muito constante em "O Fio e os Rastros". Ginzburg não busca apenas a verdade: busca também a falsidade e a ficção, isto é, a mentira e a invenção, espalhadas por toda a literatura, voluntária ou involuntariamente.

O que se verifica em "O Fio e os Rastros" são as idéias construídas, adaptadas, transformadas e passadas de narrativas a narrativas. O livro, portanto, afirma o compromisso de todo e qualquer historiador diante do verdadeiro, do falso e do fictício. Para isso Ginzburg não utiliza somente fontes textuais, mas também visuais e materiais, ponto em que encontramos uma de suas grandes qualidades: a aguda observação aos objetos artísticos (como o fez notavelmente em "Indagações sobre Piero", Paz e Terra, 1989).

Ginzburg evoca o trompe l’oeil de Veronese, representando uma menina abrindo uma porta. Relaciona-o às idéias de Sperone Speroni, defensor da prática histórica sem “ornamentos”, porém consciente da possibilidade de “ornar o verdadeiro com algum acréscimo: da mesma forma que nas construções de palácios nas estradas se adorna o mármore com entalhes e o interior com pinturas; e essas obras não são trabalho daquele que constrói, mas de pintores e escultores” (pág. 32); e ainda: que tais adornos, transpostos ao trabalho do historiador, sejam capazes de iludir por apenas alguns segundos, preservando o compromisso com a verdade.

Nesse sentido, um dos melhores momentos do livro encontra-se no ensaio “Unus testis - O Extermínio dos Judeus e o Princípio de Realidade”. Após lembrar a polêmica entre historiadores revisionistas do Holocausto (como Faurisson, para quem os campos de extermínio nazistas não teriam existido) e Pierre Vidal-Naquet (que perdeu a mãe em Auschwitz), Ginzburg lembra as análises “tolerantes” de Hayden White ao conflito árabe- israelense. White diz: “A interpretação israelense (do Holocausto) deixa intacta a ‘realidade’ do acontecimento, enquanto a interpretação revisionista o desrealiza, redescrevendo-o de tal modo que faz dele uma coisa diferente daquilo que as vítimas sabem do Holocausto”. Ginzburg prossegue citando White:

"A interpretação histórica do Holocausto fornecida pelos sionistas, diz White, não é uma contre-verité (como havia sugerido Vidal-Naquet), mas uma verdade: 'Sua verdade, como interpretação histórica, consiste precisamente na sua eficácia em justificar uma ampla gama dos atuais comportamentos políticos de Israel, que, do ponto de vista dos que os formulam, são essenciais não apenas para a segurança, como para a própria existência do povo judeu'. De modo análogo, 'os esforços do povo palestino em dar vida a uma resposta politicamente eficaz à política de Israel geram uma ideologia também eficaz, provida de uma interpretação da própria história dotada de um significado até hoje ausente”. Podemos concluir que, se a narração de Faurisson se tornasse eficaz, White não hesitaria em considerá-la verdadeira".

A repetição de eficaz em itálico (do próprio livro) alude a outro historiador, o “ex-amigo” de Croce, Giovanni Gentile, conforme observa Ginzburg: “De fato, a argumentação de White que liga a verdade à eficácia chama inevitavelmente não a tolerância, mas o seu oposto – o juízo de Gentile sobre o porrete como força moral”.

Ginzburg é um escritor de invariável ponderação e cautela, inclusive para o sentido das palavras. Mas, nesse caso, o porrete parece trocar de mão:

"Uma conclusão do gênero [considerar algo verdadeiro conforme a sua eficácia narrativa] é o resultado de uma atitude tolerante?... White sustenta que ceticismo e relativismo podem proporcionar as bases epistemológicas e morais da tolerância. Mas essa pretensão é insustentável... Do ponto de vista lógico, porque o ceticismo absoluto entraria em contradição consigo mesmo se não fosse estendido também à tolerância como princípio regulador".

A relação entre verdade e eficácia por si só seria suficiente à argumentação de Ginzburg. Mas a insistência faz surgir o que talvez seja um exagero: o que seria um “ceticismo absoluto” ("absolute skepticism") para um cético que se propõe relativista? É possível vislumbrar na insistência argumentativa de Ginzburg algo mais do que uma análise isenta; talvez um ponto cego. Contudo, não se pode deixar de frisar a inabalável integridade contextual e conclusiva de seu raciocínio, suficiente para desmontar com habilidade o ceticismo/relativismo de White.

Essa postura de Ginzburg dá uma outra qualidade importante ao livro: uma abertura franca ao debate (por exemplo, com Eric Hobsbawm, entre as págs. 154 e 157), isto é, a objetividade com os pares, dando lição suplementar a muitos de nós, acostumados a não nomear corretamente os “inimigos” e a mencionar sempre os “amigos”.

"O Fio e os Rastros" é um livro fundamental, sólido alicerce à prática historiográfica, mas não um preâmbulo: é, antes, a exposição de um conjunto de idéias maturadas ao longo de anos, partindo de outra coletânea de textos, "Mitos, Emblemas, Sinais" (Companhia das Letras, 1989) e passando por "Nenhuma Ilha É Uma Ilha (Companhia das Letras, 2004), livros, aliás, estruturalmente muito semelhantes, congregando ensaios aparentemente desconexos, mas admiravelmente amarrados.

Um diferencial de "O Fio e os Rastros", obra mais experiente, é conter pequenos depoimentos autobiográficos esclarecedores. No primeiro (pág. 264), Ginzburg reflete sobre os motivos que o levaram a “transformar num livro aquilo que, para outro estudioso, poderia ter sido uma simples nota de rodapé”: refere-se a "O Queijo e os Vermes (Companhia das Letras, 1986), a história de um moleiro muito curioso (em todos os sentidos) e provavelmente ainda hoje um de seus mais apreciados trabalhos.

O segundo depoimento está no ensaio 15, “Feiticeiras e Xamãs”, no qual Ginzburg retraça o caminho que o levou da região nordeste da Itália, berço de suas pesquisas sobre bruxarias, às estepes centro-asiáticas; a auto-incompreensão inicial de suas motivações seguida da surpreendente compreensão. Em todo o livro o autor se acusa, munido de um conhecimento vasto, entretecendo temas, autores e personagens múltiplos, verdadeiros ou fictícios, célebres ou desconhecidos: Montaigne e Heródoto, Jean-Jacques Barthélemy e Luciano de Samosata, Nacolabsou, rei do promontório dos Canibais, e Atabalipa, rei do Peru, Maquiavel e Montesquieu, Auerbach e Voltaire, Byron e Israël Bertuccio, Marino Faliero e Julien Sorel, Stendhal e Tolstói, Menichino della Nota e Robinson Crusoé.

É como uma intrincada marchetaria (metáfora apropriada de Ginzburg), junto à qual nos aproximamos inicialmente com uma lupa e que, somente aos poucos, dela nos afastando, podemos enfim contemplar uma formidável coesão: sentimento possível ao término da leitura de "Os Fios e os Rastros".

 

 

Publicado em 16/3/2008.



Alex Miyoshi
É arquiteto e professor, doutorando em história da arte no IFCH-Unicamp, onde faz pesquisas sobre arte e arquitetura dos séculos XIX e XX. Edita a "Revista de História da Arte e Arqueologia" na mesma instituição.

 

 

Fonte: http://www.revistatropico.com.br/tropico/html/textos/2964,1.shl

 



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