Objetivo: Compreender a diferença
filosófica entre conceito e opinião, o processo de representação
conceptual da realidade e de como o autoconhecimento converge pedagogia
e terapia da alma.
"A filosofia é um
treino de morrer e estar morto" Sócrates - Fédon
1- Como podemos associar o
autoconhecimento pregado por Sócrates com a Filosofia Espírita?
Com os sofistas o conhecimento se torna uma espécie
de invenção da medida humana, isto é, da faculdade
de julgar que submete todas as coisas aos seus critérios particulares.
Então, o conhecimento é um conjunto de opiniões
razoáveis acerca de qualquer assunto e a legitimidade dessas
opiniões se sustentam em critérios subjetivos e retóricos
e não em critérios objetivos e lógicos. O conhecimento
cujo referencial é puramente subjetivo não permite uma
unidade do saber e das ideias no tocante aos problemas e objetos universais
da experiência humana, tais como: coragem, destino, felicidade,
justiça, dever, beleza, virtude, etc.
Assim, Sócrates, em um primeiro momento, se preocupa
com o conjunto das opiniões que dominam a mente das pessoas,
opiniões que elas defendem e nem sabem por quê e qual o
seu fundamento. Então, convida o indivíduo a mergulhar
em sua própria interioridade. Através do diálogo,
insta-o a fazer uma introspecção investigativa, analisando
o seu próprio pensamento, sua visão de mundo, as noções
morais que acalenta e se há realmente uma compreensão
dessas noções. Desse modo, faz perceber que no fundo de
seu saber há uma ignorância originária, que é
precisamente perigosa por não ser percebida ou confusamente camuflada,
escondida.
Esse autoconhecimento que Sócrates propõe
faz com que o indivíduo, ao invés de ficar proferindo
uma avalanche de opiniões e ideias, segundo as conveniências
e os interesses particulares do momento, sem se preocupar com a ética
do discurso, antes perceba a confusão de seu pensamento, a inconsistência
de suas ideias, em uma palavra, em perceber que de fato não sabe
praticamente nada e que é necessário passar da postura
de mero opinador ao sujeito que detém o conceito do objeto de
que se quer tratar.
Na Filosofia Espírita a interioridade, cujo núcleo
essencial é a consciência, também é fator
preponderante para o conhecimento e vivência da verdade. Pois
o objetivo de Sócrates com a maiêutica, que leva ao autoconhecimento,
é fazer com que o indivíduo manifeste sua própria
razão a fim de julgar a si mesmo com coerência e reconhecer
os limites que lhe são próprios e, na Filosofia Espírita,
a consciência encerra em si mesma os princípios éticos
universais que devem orientar o homem na sua existência. Assim,
o homem deve conhecer a si mesmo, ou seja, pela reflexão, debruçar
sobre si mesmo e reconhecer as paixões que o dominam, as inferioridades
que tisnam seu caráter e, orientado pelos imperativos salutares
da consciência, iniciar sua educação, seu melhoramento,
efetivamente, seu desenvolvimento intecto-moral.
Tanto em Sócrates como na Filosofia Espírita,
o autoconhecimento tem um aspecto pedagógico e terapêutico:
ambos querem libertar o homem da ignorância do verdadeiro Bem
e da Verdade, e curar, por assim dizer, o homem das doenças morais
e fazê-lo alcançar a felicidade pela prática da
virtude (areté). O conhecimento tem uma finalidade ética,
diferente dos sofistas que querem uma promoção do sujeito
a qualquer custo, mesmo em detrimento da Verdade.
2- Sócrates distingue
os predicados essenciais dos predicados acidentais do sujeito. Como
podemos associar tal concepção com o pensamento cristão?
Ao abordar o homem, Sócrates
se detém naquilo que o determina e o permite ser tal como é.
Então, os predicados essenciais são concernentes as qualidades
fundamentais do homem, de maneira que sem essas determinações
ele não existiria. De outro modo, os predicados acidentais se
referem aos elementos contingentes da constituição humana,
sem os quais não alteram em nada seu verdadeiro ser.
Como vimos, em face do relativismo sustentado
pelos sofistas, Sócrates propõe que o conhecimento e antes
a sua busca seja baseada na apreensão da essência do objeto,
superando com isso a mera opinião no esforço dialético
de dizer o que é tal coisa. À pergunta: o que é?
Interroga-se pela essência, por aquilo que permite o objeto ser.
Assim, a essência do homem é
a alma, sem a qual ele deixa de ser; seu corpo pode sofrer inúmeras
transformações, como sofre, seja pelo fluir natural ou
por patologias várias, e isso caracteriza os predicados acidentais,
contudo ele não deixa de ser humano. Na perspectiva do pensamento
cristão isso é extremamente importante, pois se aborda
o homem também a partir de sua essência, de sua realidade
fundamental. Sócrates prepara as bases do pensamento cristão,
oferecendo elementos conceptuais para a ideia de igualdade, fundamentada
na realidade essencial do homem e não nas suas variações
biológicas, fisiológicas e sociais; para a ética
igualmente voltada ao essencial e para uma possível relação
com o corpo de modo a evitar escravidão, submissão e aviltamento
da realidade fundamental humana, a saber, a alma.
3- Em que medida os conceitos
socráticos de alma e de Deus preparam o pensamento espírita?
Vemos os princípios elementares da Filosofia
Espírita serem elaborados lentamente no próprio processo
histórico do conhecimento, tanto nos pré-socráticos
como agora com Sócrates, pois esse concebia não só
a independência da alma em relação ao corpo, como
a sua pré existência e que seu destino também está
sujeito a palingenesia (vidas sucessivas).
4- Em que consiste o conceito?
A Filosofia Espírita é conceptual? Exemplifique.
O conceito consiste precisamente em
apreender a essência do objeto, ele é uma representação
mental tanto de fatos como de valores. Por apreender a essência,
ele se detém nos aspectos gerais e universais do objeto, por
isso o conceito, quando é realmente concebido, ele se mostra
atemporal, não é passível de mudança, pois
seus sentido repousa na representação conceptual da essência.
Dizemos – quando é concebido – porque nos mantemos
na perspectiva do método socrático. Com efeito, Sócrates,
através do diálogo, insta o interlocutor a executar dois
movimentos no processo de autoconhecimento: primeiro a descida, em que
purga a mente das opiniões e ideias confusas; segundo, a ascese,
em que, por meio de interrogações sucessivas, faz a alma
ascender paulatinamente à visão do objeto a ser concebido,
então, concebe o conceito do objeto, porque vislumbrou sua realidade
sem a deturpação das opiniões que lhe embaralhavam
a mente.
A filosofia é esse exercício
lento, rigoroso e meticuloso do conjunto dos conceitos com os quais
tentamos conhecer a nós mesmos e toda a realidade, pois geralmente
as ideias e os conceitos que acalentamos na mente são concebidos
de forma errônea, sem exame, sem reflexão, são inconsistentes
e representam de forma muito vaga e imprecisa a realidade do objeto.
Há posições filosóficas
que sustentam que os conceitos são fabricados, são invenções,
elaborações da mente humana, porque o que existe é
apenas o particular, o contingente, o singular, o inapreensível
pelas categorias da razão, e o conceito pretende abarcar os aspectos
universais do objeto e aquilo que o fundamenta. A representação
conceptual da realidade é uma representação fixista
e incapaz de apreender as contingências dos objetos particulares
– e é só isso que na verdade existe.
Todavia, a Filosofia Espírita
é conceptual, isto é, pensa a realidade, os fatos e os
valores por meio dos conceitos. Fundamentada em princípios da
razão, seja por dedução de regras gerais e axiomas
ou por indução, através de inferências da
observação da realidade e de experiências mediúnicas,
elabora conceitos, mas não reduz o real à representação
conceptual, pois admite a intuição como meio de conhecer
aquilo que o conceito não apreende. Não compreende o conceito
tão somente como invenção, no sentido de que não
revela ou não corresponde a uma realidade em si mesma e passível
de ser apreendida, tanto na ordem dos fatos como na ordem dos valores.
Se mantém na posição socrática: o intelecto
pode gradativamente apreender a totalidade das coisas que são
em si mesmas, independes da mente; a ordem do pensamento deve se ajustar
a ordem do ser; o logos do indivíduo pode se ajustar ao logos
imanente do Cosmos.
Por isso que o campo de batalha do Espiritismo
é precisamente no campo da ideias, dos conceitos que encerram
a mente humana na perspectiva materialista e organocêntrica. Sua
missão é promover uma revolução conceptual,
ou seja, uma renovação completa das ideias, dos princípios,
da concepção de vida, dor e destino.
O conceito é como um intermediário
entre sujeito e realidade. O sujeito só poder acessar o real
pela representação conceptual. Quando o conceito não
apreende de fato o real, se estabelece uma esquizofrenia intelectual,
e o Espiritismo vem precisamente estreitar essa relação
do sujeito com sua realidade espiritual, reelaborando o conceito de
vida, corpo, espírito, destino, etc., para que seu intelecto
se adeque verdadeiramente a realidade em que ele está inserido
ontológica e existencialmente, mas que não pode ainda
perceber pela inconsistência e imprecisão das ideias que
pavoneiam em sua mente e que devem sofrer rigoroso exame à luz
dos fatos mediúnicos, donde dimana toda a Filosofia Espírita.
O Espiritismo, renovando a concepção
geral da vida e estabelecendo o paradigma imortal do Espírito,
é também a força propulsora e a substância
de um novo ciclo civilizatório que se inicia e uma transformação
imponderável de todas as ramificações da cultura,
porque repousa nos fundamentos do real, instituídos por Deus.
Bibliografia
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São Paulo: IEEF, 2012.
KARDEC, ALLAN . O livro dos Espíritos. São
Paulo: Lake, 2010.
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Paulo: Mestre Jou, 1970.
PIRES, J. HERCULANO. Introdução
à filosofia espírita. São Paulo: Paidéia,
2005.
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