Publicações recentes
estudam o papel da imagem nas diferentes religiões e buscam
no passado comum chaves para um diálogo interconfessional.
Pelo menos desde a polêmica internacional em
torno da publicação de caricaturas de Maomé na
imprensa dinamarquesa, em 2006, a opinião pública européia
atinou para o impacto explosivo que o uso indiscriminado da imagem
no Ocidente pode ter sobre sociedades religiosas que mantiveram normas
rígidas do que pode ou não ser representado.
Para os círculos teóricos e acadêmicos,
no entanto, a relação entre imagem e religião
sempre foi objeto de investigação, embora os rumores
de um iminente "choque de civilizações" tenham
conferido novas nuances ao assunto. Três recentes publicações
teóricas alemãs abordam esta questão com diferentes
enfoques e objetos de estudo.
Obra aberta e discurso
subversivo

Bildunterschrift: Em Vom Aufstand der Bilder (Sobre
a rebelião das imagens), a estudiosa de filosofia judaica Almut
Bruckstein recorre à reflexão imagética do judaísmo
rabínico, para desvelar o caráter subversivo da arte.
Paralelamente à tradição exegética de
um Maimónides (1138–1204), convicto de que as imagens
apenas deturpavam o conhecimento da verdade religiosa, o judaísmo
abarca tradições – como o Midrash e a Cabala –
que enxergam na imagem uma mídia reveladora.
Demonstrando o potencial deconstrutivista do pensamento
rabínico, Bruckstein transita entre Rembrandt a Chagall, Cântico
dos Cânticos e Sabá, Talmude e Maria Madalena, numa série
de fragmentos ensaísticos sobre o poder da imagem de afirmar
uma mensagem e ao mesmo tempo revertê-la. É nesta tradição
exegética do judaísmo, capaz de minar as palavras sagradas
e atribuir à verdade religiosa os mais diversos rumos, que
a autora enxerga a heterogeneidade necessária para o diálogo
intercultural e interconfessional.
Mais do que uma coletânea de divagações
sobre a sedução da imagem, o livro de Almut Bruckstein
se entende como programa de uma convergência judaico-islâmica,
que inspirou a autora a fundar o ha'atelier, em Berlim, uma oficina
intercultural de filosofia e arte.
Resistir à polarização
de culturas com passado comum
"Uma das conseqüências fatais da crescente
instrumentalização da identidade coletiva, religiosa
e cultural, é o fato de que existe cada vez menos espaço
de contato entre tradições literárias e artísticas
árabes, judaicas e européias que são intimamente
ligadas e possibilitam uma visão não polarizada das
fontes na presença do outro", justifica a pesquisadora
sua iniciativa.
No ensaio central do livro, dedicado à pintura
Jacó se debate com o Anjo (1660), de Rembrandt, Bruckstein
resgata a tradição exegética narrativa do Midrash,
para apontar as ambigüidades com que o quadro mina a fonte bíblica.
O encontro com o anjo que renomearia Jacó em Israel é
lido ao mesmo tempo como luta e abraço, guerra e beijo de irmãos.
Menos interessada em relações históricas
do que na correlação hermenêutica e fenomenológica
entre arte e exegese, Almut Bruckstein consegue traduzir – através
de um intenso interesse associativo – as herméticas referências
do judaísmo para um leitor leigo.
Arca da salvação e da perdição

Bildunterschrift: Com cunho mais acadêmico, o livro Sintflut
und Gedächtnis (Dilúvio e memória), organizado
pelos teóricos Martin Mulsow e Jan Assmann, toma o mito diluviano
bíblico como metáfora de ruptura na memória histórica.
Num estudo iconográfico, o estudioso Moshe
Barash investiga as representações pictóricas
do Dilúvio desde as primeiras imagens cristãs até
os esboços de Leonardo da Vinci. Enfocando a passagem da Idade
Média para o Renascimento, o autor mostra como a fonte bíblica
pode ser interpretada das formas mais diversas e contraditórias
conforme a época.
Se as pinturas das catacumbas mostravam a Arca de
Noé como antecipação da Igreja, ou seja, um local
que pudesse agregar os adeptos perseguidos da nova religião,
os primeiros manuscritos iluminados a partir do século 6º
passam a representar o Dilúvio como evento apocalíptico
a trazer para a humanidade morte e destruição. O motivo
medieval da efemeridade e da punição divina dá
lugar a uma tragédia humana mais personalizada no Renascimento,
tanto nas representações humanizantes de Michelangelo
como nos esboços visionários de Leonardo da Vinci.
Esta coletânea de estudos teóricos (em
alemão e inglês) oferece um enfoque interdisciplinar,
abordando desde as fontes bíblicas até investigações
geológicas, com enfoque na elaboração de rupturas
históricas através da imagem do Dilúvio.
Imagem de verdade?
Bildunterschrift:
O historiador da arte austríaco Hans Belting analisa, em Das
echte Bild (A imagem autêntica), os resquícios religiosos
na nossa forma de criar e consumir imagens até hoje, destacando
a permanente expectativa de que a representação seja
verídica.
"Toda sociedade mediatizada pressupõe
crença. Isso também se aplica ao cosmo dos signos, que
– sem a nossa crença – jamais poderiam denominar
aquilo para o que são utilizados", escreve o teórico.
Apesar de qualquer representação ter
um caráter convencional, ou seja, baseado num contrato social
sobre seu significado, nunca cessou o impulso de querer provar a autenticidade
das imagens, ou então de combatê-las, impondo-lhes uma
alternativa de maior autoridade. No âmbito religioso, isso se
revela com nitidez ainda maior, algo que Belting demonstra em exemplos
como o Santo Sudário, a máscara de Jesus; o ícone
com seu valor de relíquia; a prioridade da Cruz como signo
durante a iconoclastia bizantina; a emancipação da escrita
contra a imagem no islamismo.
Essas três publicações mostram
o quanto a nossa compreensão da realidade através da
imagem, por mais profana que seja, se baseia em pressupostos religiosos
geralmente descartados do discurso corrente como eruditos demais.
Mas o estudo de questões como essas com certeza poderia relativizar
as imagens deformadas que ameaçam levar a um suposto "choque
de civilizações".
Almut Sh. Bruckstein – Vom Aufstand der Bilder:
Materialien zu Rembrandt und Midrasch (Sobre a rebelião das
Imagens: Materiais sobre Rembrandt e Midrash). Munique: Wilhelm
Fink Verlag, 2007; 148p.
Matin Mulsow e Jan Assmann – Sintflut und
Gedächtnis: Erinnern und Vergessen des Ursprungs (Dilúvio
e memória: Lembrança e esquecimento da origem). Munique:
Wilhelm Fink Verlag, 2006; 414p.
Hans Belting – Das echte Bild: Bildfragen
als Glaubenfragen (A imagem autêntica: Questões pictóricas
como questões de crença). Munique: C.H. Beck, 2005;
240p.