Entrevista para a lista
da CEPA
O ingresso de espíritas que vieram à
lista para conhecer o pensamento da CEPA e que, antes, jamais haviam
tido qualquer contato com a Confederação Espírita
Pan-Americana, me levaram a fazer uma entrevista com o presidente
da CEPA, Milton R. Medran Moreira, reunindo exatamente algumas indagações
que foram endereçadas por participantes da lista:
· O que é a CEPA?
· Um pouco de sua história.
· As dificuldades e os avanços
de seu relacionamento com os espíritas
religiosos do Brasil e de outras partes do mundo.
· A questão da atualização
do espiritismo.
· Por que a CEPA não considera
o espiritismo uma religião?
· Por que diz que o espiritismo não
é cristão?
Entrevista
Cynthya – Este
veículo da Internet, um grupo de discussão patrocinado
pela CEPA, tem atraído espíritas de diferentes regiões
do mundo, e especialmente do Brasil, que pouco ou nada conhecem da
história e do pensamento da Confederação Espírita
Pan-Americana. Eles perguntam resumidamente o que é a CEPA,
qual sua história e quais seus objetivos e, muito particularmente,
qual a relação histórica da CEPA com o movimento
espírita brasileiro, já que só há muito
pouco tempo passaram a ouvir falar nela, dentro do movimento espírita
do Brasil. Você poderia, Milton, lhes esclarecer brevemente
sobre esses pontos?
Milton – Bem, a CEPA, Confederação
Espírita Pan-Americana, foi fundada em 1946, em Buenos Aires,
Argentina, com o objetivo de congregar o movimento espírita
da América, que não tinha nenhum organismo pan-americano,
com essa dimensão. Nessa época, o Brasil já contava
com um movimento espírita forte, sob a coordenação
da Federação Espírita Brasileira, fundada ainda
nos finais do Século 19. Mas, a FEB nunca participou formalmente
da CEPA, pois sempre sustentou uma visão marcadamente religiosa
de espiritismo, não inteiramente coincidente com a visão
científica, filosófica, sociológica, inspiradora
de uma moral laica e livre-pensadora que caracterizou a CEPA desde
sua fundação.
A ausência formal da FEB junto à CEPA,
entretanto, não significou a ausência do Brasil na CEPA.
Desde seu Congresso de fundação, intelectuais espíritas
contribuíram eficazmente na formação e na trajetória
da CEPA, especialmente através de uma instituição
que hoje não mais existe no Brasil, que foi a Liga Espírita
do Brasil. E foi exatamente no Rio de Janeiro, promovido pela Liga
Espírita do Brasil, que se realizou o II Congresso Espírita
Pan-Americano em 1949. Dele participaram personalidades como Aurino
Barbosa Souto, Deolindo Amorim (que foi o Secretário Geral
do Congresso), Artur Lins de Vasconcellos, Carlos Imbassahy, Lauro
Sales, Francisco Klörs Werneck, Campos Vegal, Leopoldo Machado
e Delfino Ferreira. Este último foi eleito Presidente da CEPA
no Congresso do Rio de Janeiro.
Uma das conclusões desse Congresso versou exatamente
sobre a "questão religiosa", e se expressou nestes
termos: "Considerando que a religião é matéria
de foro íntimo, não podendo, portanto, ser determinada
por normas e regras humanas; considerando que ainda não existe
unanimidade quanto à maneira de interpretar o Espiritismo frente
ao problema religioso, o Congresso não estabelece normas a
respeito e resolve dar plena liberdade nesse sentido, afirmando, entretanto,
os aspectos científico e filosófico do Espiritismo,
segundo a codificação de Allan Kardec, tendo por base
moral os ensinos de Jesus...".
Cynthya– Essa posição
bastante plural e abrangente, ao que parece, já dissentia do
posicionamento da FEB, que, a essa altura, já tinha como princípio
firmemente estabelecido o chamado tríplice aspecto do espiritismo:
ciência, filosofia e religião, com forte predominância
desse último aspecto. Não é isso?
Milton – É verdade.
Por isso, e especialmente, pela convicção assumida pela
FEB, presente no livro "Brasil, Coração do Mundo
e Pátria do Evangelho", de que o Brasil teria essa "missão
divina" de conduzir e coordenar o movimento espírita mundial,
a FEB historicamente sempre manteve um distanciamento da CEPA. Em
seguida, o chamado "Pacto Áureo" (um grande movimento
de unificação do movimento espírita, comandado
pela FEB, e que, casualmente, foi assinado aproveitando-se a presença
de lideranças espíritas no Congresso da CEPA no Rio
de Janeiro, em 1949) terminou por decretar o fim da Liga Espírita
Brasileira que, no processo de unificação resultou enfraquecida.
Desaparecida a Liga, a CEPA restou sem base no Brasil. Apesar disso,
daí por diante, a CEPA sempre buscou um relacionamento fraterno
com a FEB, convidando sistematicamente seus dirigentes, que se faziam
presentes à maioria dos Congressos Espíritas Pan-Americanos
promovidos pela CEPA.
Cynthya– Mas, houve
um esfriamento dessas relações a partir de um
determinado momento. Quando?
Milton – Bem, no início
da década de 90, sob o impulso da FEB, criou- se o Conselho
Espírita Internacional – CEI – que pretendeu, seguindo
uma clara inspiração evangélica de nítida
feição febeana, coordenar e unificar o movimento espírita
internacional. A partir desse momento, explicitamente, a FEB passou
a mostrar seu desagrado com a presença da CEPA no movimento.
Essa situação teve seu ápice em 1994, quando
a CEPA promoveu algumas ações visando concretamente
criar uma base mais forte no Brasil. Presidia então a CEPA
o venezuelano Jon Aizpúrua que enviou uma circular ao movimento
espírita brasileiro (que, a essa altura, muito pouco conhecia
da CEPA) clarificando as posições doutrinárias,
nitidamente kardecistas e livre-pensadoras da Confederação
e convidando os espíritas brasileiros e suas instituições
que concordassem com essas suas históricas posições
a ingressassem na CEPA como instituições adesas, filiadas
ou que, pessoalmente, os espíritas com essa visão se
associassem à CEPA. A FEB reagiu indignada a essa manifestação
da CEPA. Em editorial publicado no Reformador de setembro de 1994
qualificou a circular da CEPA como uma tentativa de "divisão
do Movimento Espírita brasileiro", representando "intervenção
indevida, indigna das práticas doutrinárias, que fere
os princípios éticos mais elementares de união
e de fraternidade".
Cynthya– Intervenção?
Divisão? Mas, sendo a CEPA um organismo pan- americano, criado
com o fim específico de congregar o movimento espírita
das Américas, não estaria no seu legítimo direito
e até na obrigação estatutária de buscar
a adesão formal de instituições espíritas
em todo o Continente?
Milton - A FEB deixou claro que não
via legitimidade da CEPA em atuar no Brasil, como a dizer que aqui
era seu território exclusivo. Depois, em editorial ainda mais
incisivo, publicado no Reformador de novembro de 1994, com o título
de "O trigo e o joio" (o trigo seriam os "espíritas
cristãos" e o joio os demais), assim se expressou: "Ainda
há pouco o Movimento Espírita brasileiro experimentou
injustificável agressão, partida de instituição
que pretende liderar o movimento espírita nas Américas,
mas que age de forma antiética e autoritária na defesa
de interpretação restitiva da Doutrina".
Ora, é evidente que, com essas manifestações,
as relações entre a CEPA e a FEB se tornaram muito delicadas.
Nesse ponto, já diversas instituições espíritas
estavam aderindo formalmente à CEPA e aqui se realizaria o
Congresso de 2.000, em Porto Alegre, onde tive a honra de ser eleito
presidente. Com alguns meses de antecedência, o presidente da
Comissão Organizadora do Congresso, Salomão Jacob Benchaya,
enviou atenciosa carta ao presidente da FEB convidando-o para aquele
conclave, que teria como tema central "Deve o Espiritismo Atualizar-se?".
Seu presidente de então, Juvanir Borges de Sousa, respondeu
a carta, agradecendo o convite, mas dizendo que a FEB não compareceria
a um congresso que pretendia atualizar o Espiritismo, tarefa para
a qual só teriam legitimidade, no entendimento da FEB, os "Espíritos
Superiores". Na mesma oportunidade, a Federação
Espírita do Rio Grande do Sul, também convidada, reagiu
ao convite com uma circular ao movimento espírita do Rio Grande
do Sul recomendando que não comparecessem ao congresso.
Cynthya – Vê-se,
então, que, pelo menos dois pontos ficam bem claros relativamente
a divergências doutrinárias entre a FEB, e com ela o
movimento espírita evangelico do Brasil, e a CEPA: 1º,
a CEPA não considera o Espiritismo uma religião, diferentemente
da FEB para quem o Espiritismo tem fundamentalmente um caráter
religioso; 2º, a idéia da atualização, defendida
pela CEPA em seus últimos eventos (Porto Alegre e São
Paulo), também é rejeitado pela FEB . É isso?
Milton – Ocorre que para nós,
da CEPA, não parece que essas questões sejam tão
fundamentais assim que não possam ser objeto de discussão
e muito menos que justifiquem a divisão dos espíritas.
Veja bem, na questão de religião, Kardec foi muito claro
ao explicitar que "o verdadeiro caráter do Espiritismo
é de uma ciência e não de uma religião".
No seu famoso Discurso de Abertura, pronunciado no dia 1º de
novembro de 1868, na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas,
Kardec admitiu que o "o Espiritismo é uma religião
no sentido filosófico", para, adiante, fazer ele próprio
a seguinte indagação: "Por que, então, afirmamos
que o Espiritismo não é uma religião?".
Seguem-se, então, argumentos muito fortes, mediante os quais
Kardec enfatiza que não convém que o Espiritismo se
declare uma religião. Discorre longamente sobre o que o povo
entende por religião, que não consegue dissociar de
cultos, de sacerdócio organizado, de sistemas fechados de crença,
coisas que o Espiritismo não tem e não é. Então,
por uma questão de estratégia, e por fidelidade ao seu
objeto de estudo, que se afasta do mundo fechado do fideísmo,
para se inserir no campo aberto da ciência, da filosofia e da
ética, Kardec recomendou que não tratássemos
do Espiritismo como uma religião. Ele próprio, quando
o Padre Chesnel qualificou o espiritismo como uma nova religião,
protestou veemententemente dizendo ao abade que era ele, o padre,
quem estava jogando o espiritismo num novo caminho, que sequer fora
pensado antes pelo espiritismo.
Diante de tudo isso, a CEPA tem essa posição
histórica, que é genuinamente kardecista, o que não
afasta o espiritismo da moral de Jesus, reconhecido como modelo e
guia da humanidade. Mesmo assim, temos um respeito muito grande por
pensadores espíritas, especialmente brasileiros, que consideram
o espiritismo uma religião, mas que têm de religião
um conceito filosófico, não sectário, que não
diviniza Jesus e nem o coloca na posição de mito, meio
deus e meio homem, como o fazem os roustainguistas. Esse conceito
superior de religião é bem compreendido pela CEPA, mesmo
que defenda o caráter laico do pensamento espírita,
que consideramos espiritualista e não religioso. Mas, esses
são detalhes conceituais, semânticos, que não
chegam a ser fundamentais, embora institucionais. Atendem a uma necessidade
de precisão terminológica, firmemente recomendada por
Kardec. Não são questões, porém, que nos
devem separar dos outros espíritas, que têm visão
diferente da nossa, mas que guardam as mesmas convicções
nos pontos essenciais da doutrina espírita: existência
de Deus, como inteligência suprema, causa primeira de todas
as coisas; imortalidade e comunicabilidade dos espíritos; pluralidade
dos mundos habitados; pluralidade de vidas; lei de causa e efeito;
conseqüências morais e éticas derivadas desses conhecimentos.
De nossa parte, não há nenhum impecilho
ao bom relacionamento com todas as correntes espíritas, ao
trabalho conjunto, respeitando o pluralismo de idéias e guardando
a união e a unidade em torno do essencial. Kardec mesmo previu
que o espiritismo teria essas nuanças diferenciadas, que lhe
dariam perfis diversos, em diferentes partes do mundo, preservando-se
a unidade em torno dos princípios basilares que, naquele mesmo
discurso (Revista Espírita, dezembro 1868), ele sintetizaria
no que chamou de "credo espírita".
Cynthya– E a questão
da atualização do Espiritismo, bandeira ultimamente
desfraldada pela CEPA que, também, gerou incompreensões
e críticas de parte do movimento espírita chamado religioso
ou evengélico?
Milton – Também aqui,
estamos diante de um procedimento tipicamente kardeciano, expresso
claramente por Kardec quando afirmou: "Marchando passo a passo
com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado por
ele, pois se novas descobertas lhe demonstrassem que estava errado
sobre um certo ponto, ele se modificaria nesse ponto, e se uma nova
verdade se revelar, ele a aceitará" (A Genese). A CEPA,
desde seus primódios, também levantou a bandeira da
atualização permanente. O artigo 4º do Estatuto
da CEPA, que trata de seus objetivos, proclama como um deles (letra
b): "Pretender a revisão periódica da doutrina,
para adaptar seus postulados científicos, filosóficos
e morais às exigências do momento e definir sua posição
com respeito às distintas correntes do pensamento moderno,
de acordo com seu caráter fundamentalmente evolucionista".
Então essa é uma vocação
que se fez expressa e que se tornou programa de ação
da CEPA desde seu nascimento. Nos últimos eventos da CEPA,
especialmente no Congresso de 2.000 em Porto Alegre (Tema: "Deve
o Espiritismo Atualizar-se?") e na Conferência de São
Paulo de 2002 (Tema: "Atualizar para Permanecer"), se deu
ênfase a esse caráter progressista do espiritismo, com
dezenas de trabalhos que vincularam os postulados básicos espíritas
a temas epistemológicos, de linguagem, de atualização
científica, etc. Esse é um trabalho permanente na CEPA
e que, evidentemente, não queremos que fique restrito ao âmbito
da CEPA mas para o qual contamos com o apoio, a participação
e a interlocução com todos os segmentos do pensamento
espírita.
Cynthya– Essa parece
ser uma característica muito forte da CEPA: a disposição
de interlocução com as mais amplas áreas do pensamento
e do movimento espírita. É uma instituição
que expressa muita clareza no seu pensamento, mas que, ao mesmo tempo,
se abre ao diálogo, ao pluralismo, à alteridade. É
difícil manter essa política?
Milton – Não tem sido
realmente muito fácil. E, no entanto, ela é sincera
e muito honesta. Parte de um sentimento de muito respeito que temos
por todos os segmentos do pensamento e da organização
espírita. As dificuldades que acima relatamos de relacionamento
com a FEB ou com outras federativas no Brasil e nos demais países
da América, por exemplo, jamais partem de nós. Como
não poderia deixar de ser, temos um respeito muito grande pela
FEB e por todo o movimento espírita que ela coordena e lidera,
não apenas no Brasil mas em todo o mundo. Sem a ação
da FEB, o espiritismo não teria o significado que tem entre
nós. Não seria a expressão que é. Mas,
temos uma visão diferente de alguns aspectos conceptuais e
organizacionais. Diferentemente do temor às vezes expresso
pelos segmentos evangélicos do espiritismo, não estamos
em busca de poder. A CEPA, hoje, mais do que nunca, não se
comporta como uma "confederação", em busca
de adesões de federações e centros espíritas.
É, claramente, hoje, um movimento de idéias. O momento
que vivemos, pensamos nós, não se compatibiliza mais
com os ideais do início do século passado, onde, no
movimento espírita, a palavra de ordem era "unificação".
O espiritismo constituia, então, um movimento incipiente, com
enorme influência religiosa, católica, e tendente a um
sincretismo afro-cristão. Eram necessárias instituições
de caráter bastante normatizador, com propósitos básicos
de orientação. Hoje, o espiritismo, no Brasil e na América,
é um respeitável repositório de conhecimento,
onde estão pensadores, intelectuais, estudiosos das mais diferentes
áreas do conhecimento, conectando esses conhecimentos aos pressupostos
espíritas. Há centenas de instituições
amadurecidas pelo estudo, pela pesquisa, que não cabem mais
nesse modelo de subordinação a uma orientação
central. Por isso, a CEPA não orienta, congrega. Estimula o
estudo, a pesquisa. Promove eventos culturais: congressos, conferências,
simpósios, que não são torneios de oratórias
de alguns "ungidos", mas fóruns de discussão,
de debate, de troca de experiência. E, assim, abandonamos, pouco
a pouco, a idéia da unificação, substituindo-a
por um forte sentimento de união. A união é corolário
do conhecimento. Da identidade comum, fundada nos princípios
básicos que devem formar esse "laço" entre
todos os espíritas. Diante disso, uma instituição
que adere à CEPA não está subordinada a regramentos
de obediência a normas emanadas da CEPA. É um relacionamento
que se dá sob o fio condutor da identidade de pensamento. Além
do mais, essas instituições podem, simultaneamente,
pertencer a outros movimentos federativos. Podem estabelecer os vínculos
que quiserem, com as instituições que desejarem. São,
enfim, livres. Mas, têm de apresentar esse perfil genuinamente
kardecista e livre-pensador.
Cynthya– Em razão
desse entendimento é que a CEPA estaria por abrir mão
da condição de Confederação paa assumir
estatutariamente um outro nome e uma outra formatação
institucional?
Milton – Bem, esse é
um tema onde estamos buscando construir um consenso dentro da CEPA.
O próximo Congresso da CEPA, que se realiza na cidade argentina
de Rafaela, de 3 a 7 de setembro de 2004, tem na sua ordem do dia
uma grande reforma estatutária. No contexto do que explicitamos
acima, há uma proposta de estatuto, oferecida pelo Centro Cultural
Espírita de Porto Alegre (CCEPA), que sugere que a denominação
"confederação" seja substituída por
um termo menos formal, que poderia ser, por exemplo, "movimento"
ou "conselho", mantendo, entretanto, a denominação
CEPA (termo que, inclusive, coincide, tanto em português como
em espanhol, com o substantivo comum "cepa" relativo à
videira, e que foi um símbolo utilizado pelos espíritos
para caracterizar o espiritismo, conforme se vê nos prolegômenos
de O Livro dos Espíritos"). Uma ampla consulta quefizemos
a todas as instituições espíritas, com vistas
à reformaestatutária, mostrou uma tendência muito
ampla para um modelo organizacional mais leve, liberto de qualquer
resquício de autoritarismo e contemplando mesmo essa característica
de movimento de idéias, e não mais de um organismo confederativo.
Mas, isso será questão a ser definida no Congresso de
Rafaela. Permanecendo ou não com a denominação
"confederação", o certo é que a CEPA
não tem hoje mais a menor preocupação com esse
objetivo de unificar o movimento espírita. Cada vez mais, nos
caracterizamos como um movimento qualificado de idéias, progressista,
livre-pensador, horizontalizado, democrático, firmemente inspirado
em Kardec e com uma preocupação adicional voltada à
união fraterna entre todos os espíritas, mesmo que em
diversificadas estruturas institucionais. União, no nosso entender,
é muito mais importante que unificação. Esta
última traz em seu bojo algumas pretensões de poder,
de hierarquização, de hegemonia, com as quais a CEPA
não tem a menor relação.
Cynthya– Por fim,
Milton, há uma outra questão que, parece, assusta um
pouco o movimento espírita evangélico, relativamente
à CEPA. É que esta estaria procurado desvincular espiritismo
de cristianismo. Fala- se que isso contraria algumas afirmaçõs
do próprio Kardec. Dá para esclarecer essa divergência.
Ou será que é apenas mais uma divergência meramente
aparente? Enfim, o que pode haver de verdadeiro nessa afirmação
de que "a CEPA quer tirar Jesus do espiritismo"?
Milton – O substantivo "cristianismo"
e o adjetivo "cristão", tanto quanto outros termos
que Kardec recomendou não se utilizassem, emrazão de
sua dubiedade (como é o caso de religião), têm
sofrido alterações nos seus signfiicados ao curso da
História. Ainda no tempo de Kardec, era muito comum falar-se
em "cristianismo" e em "cristão" simplesmente
para designar a doutrina "do Cristo" (expressão muito
usada por Kardec e os espíritos, para aludirem a Jesus). Por
uma marcada influência eclesiástica no meio em que vivia
Kardec, a Europa do Século 19, ainda se confundia Jesus, o
homem, com Jesus Cristo, produto das crenças e dos dogmas cristãos.
Mas quando Allan Kardec fala em "espiritismo
cristão" (expressão usada algumas poucas vezes
em sua obra) claramente ele adjetiva o espiritismo para vinculá-lo
não ao Jesus das igrejas mas ao pensamento, à moral
de Jesus de Nazaré. Com relação a essa questão
de fundo, não temos nenhuma objeção a fazer.
A moral de Jesus é a própria moral espírita.
Entretanto, na questão da forma, está na hora de fazermos
reparos a essa expressão, mesmo que Kardec a tenha utilizado
(há diversas expressões usadas por Kardec e que hoje
estão fora de contexto).
Ao curso do Século 20 e nestes primeiros anos
do Século 21, está sendo possível estabelecer
a distinção entre estas duas figuras:
a) a de Jesus de Nazaré, o homem, com algumas
referências históricas que estão sendo resgatadas,
que nasceu da relação carnal de José e Maria,
que teve irmãos e que foi um pensador fecundo, um reformador
moral, e
b) a de "Jesus Cristo", que é o mito
das Igrejas, aquele que "foi concebido sem pecado", filho
da Virgem Maria, Deus encarnado, 3ª pessoa da Santíssima
Trindade, responsável por alguns dogmas e crenças que
foram tecendo essa cultura cristã que hoje já tem 2.000
de existência e que pouco tem a ver com o outro Jesus, o homem
de Nazaré.
Com o primeiro personagem, o Jesus histórico,
sistematizador de um código de moral que tem validade universal,
coincidente com aquilo que o espiritismo chama de "lei natural",
e que é divina, mas não religiosa (jamais Kardec identificou
a lei natural com as leis religiosas), com esse Jesus, a CEPA concorda.
Jamais pensou em retirá-lo do Espiritismo. É uma forte
referência moral e ética, especialmente porque o espiritismo
surgiu no seio de uma cultura onde os referenciais éticos e
morais dos ensinos de Jesus nos são amplamente disponíveis
e fazem parte de nosso patrimônio moral, como indivíduos
e como comunidade de espíritos.
Mas, com esse Jesus Cristo, o salvador das igrejas
cristãs, do cristianismo, tal qual este se tornou conhecido,
com este a CEPA não concorda. E, no entanto, esse é
que hoje identifica o "cristianismo real". Nas últimas
décadas firmou-se muito bem o conceito de "cristão"
e de "cristianismo" reais. Esse conceito foi plasmado num
amplo acordo entre as igrejas, no contexto de um movimento que se
chamou "ecumenismo cristão", onde foi possível
estabelecer o vínculo que une os crentes nos chamados dogmas
cristãos fundamentais: o da divindade de Jesus, o de sua condição
de "único Senhor e Salvador", aquele que com seu
"sacrifício", com o seu "derramamento de sangue",
possibilitou a "salvação" dos homens que nele
cressem e fossem em seu nome batizados. Queiramos ou não, nós,
espíritas, é isso que identifica na cultura contemporânea
o cristianismo, a condição de cristão.
Ora, evidentemente, o espiritismo está fora
disso. E, por isso, não é cristão. É quase
uma usurpação a uma cultura de dois mil anos, que foi
construída demoradamente até se sedimentar nesses princípios,
querermos, nós, que temos uma outra visão de Deus, de
mundo e do próprio Jesus, nos declararmos cristãos.
Por isso, os cristãos reagem, e com toda a razão, quando
um espírita se diz cristão. A reação é
a mesma que nós muitas vezes temos, quando um umbandista se
declara espírita.
O espiritismo é uma doutrina nova. Nasceu no
meio cristão. Como todo o paradigma novo, ele precisou se apoiar
no paradigma antigo que ele desejou superar, para poder ser proposto.
Mas, nestes 150 anos de existência, já podemos postular
uma identidade própria, que não se confunde com o cristianismo,
especialmente porque este, também, tomou seu próprio
caminho.
Por todas essas razões, diríamos como
Kardec disse em relação à religião: não
convém que o espiritismo se diga cristão. Isso geraria
confusão, ambigüidade, e nós precisamos ser firmes
naquilo que diz com a nossa identidade. Somos espíritas, simplesmente.
E não espíritas-cristãos.