RESUMO
Introdução
e justificativa.
A dissociação pode ser definida como a temporária
desconexão (patológica ou não patológica)
entre módulos psíquicos e / ou motores que se encontram,
em geral, sob o controle voluntário ou acesso direto da consciência,
do repertório comportamental usual e / ou do autoconceito.
Incluem-se nessa definição fenômenos tanto cognitivos
(e.g., envolvimento imaginativo, amnésia psicogênica)
quanto conversivos e somatoformes, os quais se relacionam, historicamente,
ao diagnóstico de histeria. As pesquisas internacionais têm
sustentado sua recorrente associação com determinadas
crenças e experiências alegadamente paranormais e / ou
de cunho religioso (como transe mediúnico, dons carismáticos
e vivências místicas). Tais crenças e experiências
estão também frequentemente correlacionadas com outras
variáveis ligadas à dissociação, como
sintomas depressivos e ansiógenos, queixas somáticas,
trauma infantil e transliminaridade (uma medida de alterações
de consciência e experiências anômalas). O fato
de algumas pessoas apresentarem características psicológicas
que as predispõem a tais ocorrências sugere a importância
de se compreender melhor como nelas se dá a formação
da identidade, seu desenvolvimento cognitivo, emocional e social,
de modo a permitir uma abordagem mais ampla de outros aspectos envolvidos
nessas alegações e na assunção de várias
das crenças relacionadas. A revisão da literatura internacional
indica grande quantidade de estudos quantitativos e poucos estudos
de natureza qualitativa, com a consequente ausência de aprofundamento
em aspectos biográficos e sociais. Até o momento, não
existem estudos brasileiros sobre as relações entre
dissociação, crença religiosa e transliminaridade.
Objetivos.
Investigar as relações existentes entre dissociação
(e seus tipos específicos), crença e formação
da identidade em grupos religiosos e não religiosos de participantes
brasileiros; Pesquisar os possíveis fatores etiológicos
das experiências dissociativas e das crenças e experiências
paranormais, bem como suas interações, a partir do estudo
de variáveis psicopatológicas e psicossociais diversas;
Investigar o papel dos processos inconscientes na formação
e manutenção das crenças e experiências
religiosas e paranormais; Verificar a extensão e o impacto
dos processos dissociativos e das crenças e práticas
paranormais e religiosas na formação da identidade e
na história de vida, com especial atenção ao
desenvolvimento afetivo / emocional e social do indivíduo;
Aprofundar a compreensão do contexto grupal e social de inserção
dos participantes, de modo a averiguar como tal contexto contribui
na construção de suas crenças e experiências,
e de como estas afetam ou determinam, em contrapartida, esse mesmo
contexto; Pesquisar empiricamente o nível de adesão
a crenças religiosas tradicionais e outras categorias de crença
paranormal em grupos religiosos e não religiosos de participantes
brasileiros.
Método.
De modo a permitir certa generalização para os dados
obtidos na pesquisa, bem como, paralelamente, um aprofundamento nos
processos individuais e coletivos de construção da identidade,
utilizou-se de uma proposta de investigação tanto quantitativa
quanto qualitativa. Por meio de questionário sociodemográfico
e escalas, compôs-se a frente quantitativa do estudo. No que
diz respeito à frente qualitativa, empregou-se entrevistas
biográficas abertas, questionário semi-dirigido sobre
experiências anômalas / paranormais e observações
de campo. Pressupondo-se que determinados contextos religiosos são
aparentemente mais receptivos e estimuladores de vivências dissociativas,
e que afiliações religiosas mais tradicionais ou mesmo
grupos ateístas tenderiam a estimular menos esse tipo de experiências,
os participantes do estudo foram divididos em três grupos, com
vistas a uma análise mais detalhada dessas diferenças:
grupo um (espíritas, umbandistas, membros de círculos
esotéricos e ocultistas) , grupo dois (outros religiosos
e pessoas sem afiliação definida) e grupo três
(ateus e agnósticos), abrangendo um total de 1450 respondentes
para a frente quantitativa. O único critério de exclusão
foi a idade (18 anos ou mais). O número de entrevistas biográficas
(22) e de observações de campo (31) foi determinado
com base no critério de saturação. No caso das
entrevistas, considerou-se também certo equilíbrio em
termos de gênero, idade e número de participantes acima
e abaixo da nota de corte utilizada para diferenciar high
e low scorers em dissociação (>=20). Para
efetuarmos a análise dos dados, recorremos às hipóteses
propaladas na literatura psicológica e sociológica recente
acerca das crenças e experiências paranormais e de sua
relação com os fenômenos dissociativos, buscando
avaliar até que ponto nossos dados confirmavam ou não
tais modelos hipotéticos. Nossas avaliações também
tiveram como pano de fundo trabalhos que versam sobre os processos
de construção psicossocial da identidade no mundo contemporâneo
e sobre as transformações mais recentes na família
e na religião (Bauman, 2005, 2007; Castells, 1999; Giddens,
2002; Paiva, 2007; Poster, 1979), bem como sobre novas formas de subjetivação
e sofrimento psíquico (Roudinesco, 2006), incluindo contribuições
de teorias psicodinâmicas atualmente em voga, em particular
a teoria do apego (Granqvist & Kirkpatrick, 2008) e a
teoria da gestão do terror (Pyzscynski, Solomon &
Greenberg, 2003).
Principais resultados.
O grupo um e o grupo dois não diferiram entre si em termos
de dissociação cognitiva (e.g., despersonalização,
envolvimento imaginativo, amnésia psicogênica), mas ambos
pontuaram acima dos ateus e agnósticos. Não obstante,
o grupo um (em especial, os membros de religiões mediúnicas,
como Espiritismo e Umbanda) obteve média significativamente
maior em dissociação somatoforme (sintomas conversivos
e psicossomáticos), crença paranormal e transliminaridade
comparativamente aos demais grupos. Não houve diferença
entre os grupos para os relatos de experiência traumática
na infância. Quanto maior era o nível de crença
paranormal, dissociação e transliminaridade dos participantes,
maior era seu nível relatado de sincretismo religioso e de
religiosidade individual. A escala de experiências dissociativas
correlacionou positiva e significativamente, embora em diferentes
graus de magnitude, com a crença paranormal, a transliminaridade,
a medida composta de sintomas psicossomáticos, a escala de
sintomas conversivos e várias formas de experiência traumática
na infância. Todavia, quando controlados estatisticamente os
efeitos da transliminaridade, a correlação entre dissociação
e crença se desfez, apontando para um possível paper
mediador da transliminaridade na relação entre as duas
variáveis. A dissociação (somatoforme e cognitiva)
não se mostrou elevada nos líderes dos grupos visitados,
como supunham alguns dos autores revisados. Uma significativa parcela
dos indivíduos com escores elevados na escala de experiências
dissociativas denotou personalidade regredida e impulsiva, além
de relatar mais experiências anômalas espontâneas.
Discussão.
Comparando-se os dados quantitativos e qualitativos, sugeriu-se uma
distinção entre dois tipos de dissociação:
uma tendencial, geralmente vivenciada desde a infância por indivíduos
predispostos, e outra contextual, limitada à estimulação
de certas práticas religiosas ou espirituais. Sugeriu-se, ainda,
a existência de uma série de mecanismos psicossociais
de mimetismo e desempenho de papéis durante os rituais, os
quais podem ser confundidos com fenômenos dissociativos. Defendeu-se
a hipótese de que as práticas dissociativas desempenham
um papel de legitimação das crenças religiosas
e espirituais, sobretudo, em contextos influenciados pelo sincretismo
new age, como grupos espíritas e esotéricos,
ao facilitar a alteração de consciência e a transição
do quadro de referência cotidiano ao religioso. Há dúvidas,
porém, quanto ao caráter alegadamente terapêutico
dessas práticas. Religiosos tradicionais (como católicos
e evangélicos) se assemelharam aos ateus e agnósticos
em várias medidas, talvez sugerindo que o movimento ateísta
é tão pouco místico e dissociativo quanto a religiosidade
mais tradicional e conservadora. Relaciona-se o fenômeno da
crença paranormal, do sincretismo religioso e da dissociação
a variáveis sócio-históricas mais amplas, como
a procura por sensação nas sociedades contemporâneas,
a transposição das relações de consumo
para o campo religioso e a uma compensação frente a
padrões de apego familiares desorganizados. Relaciona-se a
personalidade regredida e impulsiva dos high scorers a formas de defesa
narcísicas e a uma manutenção da infância
e da fantasia na vida adulta. Associa-se o aumento das crenças
paranormais e religiosas com a idade à saliência da morte
(teoria da gestão do terror), e certos aspectos da psicodinâmica
adolescente ao ateísmo, que se mostrou mais frequente em adultos
jovens e adolescentes em conflito com suas famílias. Trata-se
do primeiro estudo a avaliar experiências dissociativas em uma
amostra grande de respondentes brasileiros, e um dos poucos no Brasil
a pesquisar de modo qualiquantitativo uma série de hipóteses
sobre o transe e a dissociação, incluindo em sua amostra
tanto respondentes religiosos quanto não religiosos.