Uma sociedade sustentada pelos pilares
do respeito e da solidariedade faz parte da essência de ubuntu,
filosofia africana que trata da importância das alianças
e do relacionamento das pessoas, umas com as outras. Na tentativa da
tradução para o português, ubuntu seria "humanidade
para com os outros". Uma pessoa com ubuntu tem consciência
de que é afetada quando seus semelhantes são diminuídos,
oprimidos.

Burundi - Foto: Virginia Maria Yunes
- De ubuntu, as pessoas devem saber
que o mundo não é uma ilha: "Eu sou porque nós
somos". Eu sou humano, e a natureza humana implica compaixão,
partilha, respeito, empatia – detalhou em entrevista exclusiva
ao Por dentro da África, Dirk Louw, doutor
em Filosofia Africana pela Universidade de Stellenbosch (África
do Sul).
Dirk conta que não há
uma origem exata da palavra. Estudiosos costumam se referir a ubuntu
como uma ética "antiga" que vem sendo usada "desde
tempos imemoriais". Alguns pesquisadores especulam sobre o Egito
Antigo (parte de um complexo de civilizações, do qual
também faziam parte as regiões ao sul do Egito, atualmente
no Sudão, Eritreia, Etiópia e Somália) como o local
de origem do ubuntu como uma ética, mas o próprio fundamento
do ubuntu é geralmente associado à África Subsaariana
e às línguas bantos (grupo etnolinguísticolocalizado
principalmente na África Subsaariana).
- No fundo, este fundamento tradicional
africano articula um respeito básico pelos outros. Ele pode ser interpretado
tanto como uma regra de conduta ou ética social. Ele descreve tanto
o ser humano como “ser-com-os-outros” e prescreve que
“ser-com-os-outros” deve ser tudo. Como tal, o ubuntu
adiciona um sabor e momento distintamente africanos a uma avaliação
descolonizada – contou o especialista e membro-fundador da South
African Philosopher Consultants Association.

Burundi - Foto: Virginia Maria Yunes
Na esfera política, o conceito é utilizado para enfatizar a necessidade
da união e do consenso nas tomadas de decisão, bem como na ética humanitária.
Dirk lembra que também existe o aspecto religioso, assentado na máxima
zulu (uma das 11 línguas oficiais da África do Sul) umuntu ngumuntu
ngabantu (uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas) que,
aparentemente, parece não ter conotação religiosa na sociedade ocidental,
mas está ligada à ancestralidade. A ideia de ubuntu inclui respeito
pela religiosidade, individualidade e particularidade dos outros.

Dirk (à esquerda) com professores da Universidade
de Stellenbosch
Ubuntu ressalta a importância do acordo ou consenso.
A cultura tradicional africana, ao que parece, tem uma capacidade quase
infinita para a busca do consenso e da reconciliação (Teffo,
1994a: 4 – Towards a conceptualization of Ubuntu).
Embora possa haver uma hierarquia de importância entre os oradores,
cada pessoa recebe uma chance igual de falar até que algum tipo de acordo,
consenso ou coesão do grupo seja atingido. Este objetivo importante
é expresso por palavras como Simunye (“nós somos um”, ou
seja, “a união faz a força”) e slogans como “uma lesão
é uma lesão para todos” (Broodryk, 1997a:
5, 7, 9 – Ubuntu Management and Motivation, de Johann
Broodryk).
Uso da palavra com a democracia na África
do Sul
Após quase cinco décadas de segregação racial apoiada
pela legislação, o processo de construção da África do Sul no pós-apartheid
exigia igualdade universal, respeito pelos direitos humanos, valores
e diferenças. Desta forma, a ideia de ubuntu estava diretamente ligada
à história da luta contra o regime que excluía a cidadania e os direitos
dos negros.
Dirk conta que ubuntu é muito usado em contextos sobre
repressão e colonialismo. Na verdade, o filósofo político Leonhard Praeg
destacou que, por meio da pergunta “O que é Ubuntu”?,
o tema africano procura autenticidade cultural e, portanto, a liberdade
de um passado (e presente), representada pela opressão ocidental e pelo
neocolonialismo.
- O advento da democracia na África do Sul, em 1994,
pode ter servido como um catalisador nesse sentido. Na mesma linha,
Mogobe Ramose comparou ubuntu à “verdadeira justiça para os
povos indígenas conquistados nas guerras injustas do colonialismo”
– disse Dirk.

Ubuntu "The first Ubuntu Walk 2013"
O filósofo acredita que é preciso reconhecer a diversidade de línguas,
histórias, valores e costumes, os quais constituem a sociedade sul-africana.
Como exemplo, ele cita que os sul-africanos brancos tendem a chamar
todas as práticas da medicina tradicional africana de “bruxaria”
e rotular todos esses praticantes como “curandeiros”. No
entanto, de acordo com a obra Ubuntu Management and Motivation,
de Johann Broodryk, há, pelo menos, cinco tipos de médicos
nas sociedades tradicionais africanas, e os curandeiros estão sendo
apontados como algo ruim pelos próprios africanos. Por outro lado, a
cooperação dos outros curandeiros tradicionais é vital em iniciativas
de cuidados de saúde primários, como planejamento familiar e programas
de imunização (Broodryk, 1997a: 15; 1997b: 63f).
Individualismo e Ubuntu

Angola - Foto: Isabel Maria Vale
O professor de filosofia conta que o
individualismo ressalta aspectos aparentemente solitários da existência
humana, em detrimento dos aspectos comuns. Para o coletivista, a sociedade
nada mais é que um grupo ou uma coleção de solitários indivíduos. No
Ocidente, o individualismo, muitas vezes, se traduz em uma competitividade
impetuosa. Isso está em contraste com a preferência africana para a
cooperação, o trabalho em grupo ou Shosholoza (trabalho
em equipe).
- Existem aproximadamente 800.000
“stokvels” na África do Sul, que são empresas comuns ou
empreendimentos coletivos, tais como clubes de poupança e sociedades
funerárias. A economia stokvel poderia ser descrita como o capitalismo
com Siza (humanidade) ou uma forma socialista do capitalismo. Fazer
lucro é importante, mas nunca se envolve a exploração de outros. Como
tal, os stokvels são baseados no “sistema de família alargada”
– exemplificou Dirk.
Desde 1990, a palavra vem sendo usada
por muitas personalidades sul-africanas como Nelson Mandela, Desmond
Tutu, Walter Sisulu (ativista sul-africano contra o apartheid) e Credo
Mutwa (sangoma, representante da medicina tradicional africana). O conceito
de ubuntu inspira além das fronteiras africanas e indica uma forma de
tratar o semelhante como o melhor caminho para a humanidade.
Nelson Mandela (Prêmio Nobel da Paz de 1993)
“Um viajante em visita à África do Sul poderia
parar em uma aldeia sem ter que pedir comida ou água. Uma vez que
ele para, as pessoas dão-lhe comida. Esse é um aspecto do ubuntu,
mas o ubuntu tem vários aspectos. O ubuntu não significa que as
pessoas não devem enriquecer. A questão, portanto, é: Você vai fazer
isso e permitir que a comunidade ao seu redor possa melhorar?”

Nelson Mandela - Arquivo - divulgação
Desmond Tutu (Prêmio Nobel da Paz de 1984)
“É a essência do ser humano.
Ele fala do fato de que minha humanidade está presa e está indissoluvelmente
ligada à sua. Eu sou humano, porque eu pertenço. Ele fala sobre
a totalidade, sobre a compaixão. Uma pessoa com ubuntu é acolhedora,
hospitaleira, generosa, disposta a compartilhar. A qualidade do
ubuntu dá às pessoas a resiliência, permitindo-as sobreviver e emergir
humanas, apesar de todos os esforços para desumanizá-las.”

Desmond Tutu - Foto: ONU
A proposta de família alargada, que abraça toda a comunidade
fortalecida a partir da ajuda mútua, sanando o sofrimento alheio, traz
consigo a ideia da superação de diferentes tipos de discriminação, relacionados,
por exemplo, à cor da pele, gênero, orientação sexual e religião.
- Deve ficar claro que ubuntu se opõe à discriminação
negativa, seja contra homossexuais, mulheres ou por motivos de raça.
No entanto, pode-se argumentar que a compreensão de Thaddeus Metz
(filósofo americano) se resume a uma interpretação liberal, emancipatória
do ubuntu. Nem todas as versões ou interpretações de ubuntu são iguais
– completou Dirk.
Fonte:
http://www.pordentrodaafrica.com/cultura/ubuntu-filosofia-africana-que-nutre-o-conceito-de-humanidade-em-sua-essencia
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