1. INTRODUÇÃO
Toda consideração sobre
a filosofia espírita leva, naturalmente, a indagações
sobre o homem. Não só sobre sua origem e fim, mas também
sobre suas relações com os demais entes do Universo,
e, principalmente, com os outros seres humanos.
O homem é um ser social. Seu
percurso terreno é essencialmente realizado em meio a uma sociedade,
da qual ele faz parte e à qual terá que prestar contas,
sobretudo por seu comportamento.
O ser humano vive em sociedade, convive
com os outros seres humanos e, portanto, cabe-lhe pensar e responder
à seguinte pergunta: Como devo agir perante os outros? Trata-se
de uma pergunta fácil de ser formulada, mas difícil
de ser respondida. Ora, esta é a questão central da
Moral e da Ética.
Assim, não é à-toa
que toda filosofia ou escola filosófica, em algum instante,
necessite tratar sobre questões éticas. Seja sob este
nome, seja falando em considerações morais, ou mesmo
evitando estes termos – embora tratando de relações
humanas. Na filosofia espírita não seria diferente.
Kardec, ao tratar deste tema, falou
em Leis Morais. Sob essa denominação colocou as regras
que tratam dos Espíritos e das relações entre
eles. E colocou-as como parte da Lei Natural, aquela que rege toda
a criação, na parte terceira de “O Livro dos Espíritos”,
e o fez à moda científica, positivista, por analogia
com as leis físicas que comandam a matéria.
Nesta análise Kardec tratou
de questões fundamentais que, de algum modo, estão presentes
em todas as filosofias: os conceitos de bem e mal, as origens da ação
moral, os temas que, em sua opinião, eram os mais importantes.
Por exemplos: progresso, sociedade, justiça. E, sem impor aos
homens um comportamento padrão, propôs elementos para
que ele pudesse pautar seus atos de acordo com os princípios
espíritas.
Kardec, fiel à sua formação
pedagógica, estruturou a terceira parte de “O Livro dos
Espíritos” descrevendo, uma por uma, as dez leis morais.
E também escreveu que esta era uma forma meramente didática
de exposição, comentando explicitamente que estas leis
não pretendiam ser exaustivas. Entretanto, o movimento espírita
brasileiro normalmente as tomam como a última palavra sobre
moral espírita, esquecendo que, por trás delas, há
conceitos fundamentais de ética espírita que lhes deram
origem.
O propósito deste trabalho
é retomar estes conceitos fundamentais, derivando-os diretamente
da teoria espírita e explicitando-os. A importância dessa
retomada é restabelecer as bases da ética espírita,
de um modo que possam servir como parâmetro à estruturação
de um comportamento pautado nos princípios do Espiritismo,
aplicável a todas as situações humanas, mas sem
a imposição de um comportamento padrão que ignore
as individualidades dos espíritos.
Para isso, o texto parte de
uma pequena história da Ética e da Moral e discute,
filosófica e etimologicamente, os conceitos a elas ligados.
Em seguida, discute uma parte básica da ética: a teoria
dos valores, propondo um conjunto dos essenciais para a doutrina.
Finalmente, apresenta os fundamentos da Ética Espírita.
2. DISCUSSÕES SOBRE MORAL E ÉTICA
Mas o que é Ética? E Moral? É
possível diferenciá-las? E como definir termos tão
essenciais, mas tão complexos como Bem e Mal?
Iniciemos tratando da Moral. Segundo a definição do
dicionário:
“Moral é aquilo que denota bons costumes,
boa conduta, segundo os preceitos socialmente estabelecidos pela
sociedade ou por determinado grupo social; conjunto das regras,
preceitos etc. característicos de determinado grupo social
que os estabelece e defende”
A definição acima enfatiza o caráter
relativo da moral: são costumes, condutas, regras e preceitos
que são característicos de uma dada sociedade ou grupo
social. E, como tais, variam enormemente, não só entre
sociedades, mas, dentro de uma mesma sociedade, entre os diversos
grupos, de diferentes tamanhos, que a compõem.
Há uma hierarquia nesta variação.
Por exemplo, uma sociedade pode ser rígida quanto à
questão da propriedade, mas liberal em termos sexuais. Também,
pode haver famílias mais severas quanto à moral sexual,
sem que deixem de fazer parte daquela mesma sociedade.
Esta relatividade moral ocorre não só
no espaço, mas também no tempo. A moral de um dado grupo
social varia com o decorrer dos anos, e costumes e regras que eram
inaceitáveis passam a ser aceitos. Como uma mulher de biquíni
tipo fio-dental seria julgada na sociedade brasileira do início
do século 20?
Assim, a moral possui uma qualidade social, isto é,
manifesta-se na sociedade, cumprindo uma determinada função,
que é a regulamentação das relações
entre os indivíduos e entre estes e a comunidade, visando a
manutenção e a garantia de uma determinada ordem social.
Já a Ética:
“(...) é a parte da filosofia responsável
pela investigação dos princípios que motivam,
distorcem, disciplinam ou orientam o comportamento humano, refletindo
especialmente a respeito da essência das normas, valores,
prescrições e exortações presentes em
qualquer realidade social; em doutrinas racionalistas e metafísicas,
estudo das finalidades últimas, ideais e, em alguns casos,
transcendentes, que orientam a ação humana para o
máximo de harmonia, universalidade, excelência ou perfectibilidade,
o que implica a superação de paixões e desejos
irrefletidos.”
Assim, a ética, diferentemente dos problemas
práticos-morais, caracteriza-se pela sua generalidade. Ela
define, de modo teórico, em que consiste o bem, o fim último
visado pelo comportamento moral. Ao deparar-se com uma experiência
histórico-social no terreno da moral — uma série
de práticas morais em vigor numa dada sociedade —, a
ética procura determinar a essência desta, sua origem,
as fontes de avaliação, a natureza e função
dos juízos morais. Pode-se dizer que:
“A ética é a teoria ou ciência
do comportamento moral dos homens em sociedade. Ou seja, é
ciência de uma forma específica de comportamento humano.”
A ética e a moral relacionam-se, então,
como uma ciência específica e seu objeto. É uma
parte da investigação filosófica, não
necessariamente especulativa. São importantes as contribuições
do pensamento filosófico, desde a Antigüidade grega até
os nossos dias. Todavia, um estudo histórico está fora
dos limites deste trabalho.
3. VALORES ESPÍRITAS
Não há como falar em ética sem
levar em consideração as bases sobre as quais seus princípios
estão sustentados. Estas bases são chamadas valores.
Tidos como uma qualificação de objetos
ou de seres, os valores não são propriedades dos objetos
em si, mas propriedade adquirida graças à sua relação
com o homem como ser social. Portanto, não há valores
em si, mas somente em relação com um sujeito.
Além disso, os valores existem a partir de
uma visão de mundo própria de cada sujeito. Nesta visão,
incluem-se não somente os pontos de vista estritamente particulares,
mas também visões sociais, religiosas, científicas,
históricas etc.
Assim sendo, os espíritas estruturam seus valores
com base em sua personalidade e crenças particulares, e, igualmente,
naqueles que permeiam a filosofia espírita. Numa primeira avaliação,
poderíamos dizer que estes valores estão relatados em
algumas das Leis Morais:
Liberdade — O Espiritismo não prescinde
de uma total liberdade de pensamento e ação, o chamado
livre-arbítrio. Os espíritas sabem que o possuem,
mas também que isto traz a total responsabilidade sobre seus
próprios atos.
Tem o homem o livre-arbítrio de seus atos?
Pois que tem a liberdade de pensar, tem igualmente a de obrar.
Sem o livre-arbítrio, o homem seria máquina.”
Justiça — Apesar da ampla liberdade
de pensamento e ação, o Espiritismo possui um acentuado
viés de justiça, definido como “respeitar os
direitos dos demais” . Em última instância, esta
definição leva, de alguma forma, à limitação
das possibilidades de liberdade de ação do espírita.
Uma outra argumentação, porém, é que
a justiça faz parte da responsabilidade inerente à
própria liberdade.
A partir destas bases axiológicas (isto é,
de valores), e fazendo uma análise dos capítulos constantes
na parte terceira de “O Livro dos Espíritos”,
podemos começar a entender as bases fundamentais da ética
espírita, seus fundamentos.
4. FUNDAMENTOS DA ÉTICA ESPÍRITA
Kardec não mencionou ética em sua obra.
Mesmo quando se referia à investigação dos princípios
que regem as ações humanas sempre citou moral:
“A moral é a regra de bem proceder,
isto é, de distinguir o bem do mal. Funda-se na observância
da lei de Deus. O homem procede bem quando tudo faz pelo bem de
todos, porque então cumpre a lei de Deus.”
E, como definição de bem:
“O bem é tudo o que é conforme
à lei de Deus; o mal, tudo o que lhe é contrário.
Assim, fazer o bem é proceder de acordo com a lei de Deus.
Fazer o mal é infringi-la.”
Assim, a moral relacionava-se com a Lei de Deus. Ora,
Kardec entendia o Universo como uma entidade criada por Deus e composta
dualmente de Espírito e Matéria. E, da mesma forma como
havia Leis Físicas que regiam a matéria, ele postulou
a existência de Leis Morais que regeriam o Espírito.
O conjunto de ambas essas Leis formava a Lei Divina, ou Lei Natural:
Deus
Espírito
Matéria
Leis Morais
Leis Físicas
Lei Divina ou Natural
E, para explicar quais seriam essas Leis Morais, Kardec
didaticamente dividiu-as em dez, cada uma compondo um capítulo
da parte terceira do Livro dos Espíritos: Adoração;
Trabalho; Reprodução; Conservação; Destruição;
Sociedade; Progresso; Igualdade; Liberdade; Justiça, Amor e
Caridade.
Entretanto, esta divisão não é
mais que uma exposição simplificada, com a finalidade
de exemplificar, mais que explicar, os princípios morais do
Espiritismo. Mas isto deve ser aprofundado para um entendimento maior
das bases que levaram a eles. E é aqui que começa a
tomar forma a Ética Espírita.
Uma análise ética do conjunto teórico
das Leis Morais leva à estruturação dos fundamentos
da Ética Espírita, a saber: a crítica espírita
do juízo, o equilíbrio, a alteridade e a felicidade.
Por crítica do juízo entende-se o modo
pelo qual se podem avaliar os atos humanos em função
dos conceitos éticos, sendo absolutamente necessário
uma vez que a moral só se completa na ação humana
frente aos problemas da existência. Principalmente daqueles
originados das relações entre os espíritos, encarnados
ou não.
O Espiritismo estabelece um duplo critério
para esta análise. O primeiro é o da intenção,
expresso nas perguntas: Qual o objetivo do ato? A que ele visa? Qual
seu fim último? Em suma, que intenção teve o
agente com aquela ação?
Mas, como bem afirma a sabedoria popular, não
bastam boas intenções para que um ato seja considerado
moralmente adequado. Isto porque, apesar de bem intencionada, uma
ação pode promover um resultado diverso daquele que
pretendia. A doutrina espírita propõe então um
segundo critério: o da utilidade. Ou seja: Qual o resultado
do ato? A quem ele ajuda ou prejudica?
A combinação desses dois critérios
forma a crítica espírita do juízo, e está
integralmente presente, ainda que não com este nome, nos dois
primeiros capítulos das Leis Morais:
“Para agradar a Deus e assegurar a sua
posição futura, bastará que o homem não
pratique o mal?”
- “Não; cumpre-lhe fazer o bem no limite de suas forças,
porquanto responderá por todo mal que haja resultado de não
haver praticado o bem.”
E também:
“Têm, perante Deus, algum mérito
os que se consagram à vida contemplativa, uma vez que nenhum
mal fazem e só em Deus pensam?”
“- Não, porquanto, se é certo que não
fazem o mal, também o é que não fazem o bem
e são inúteis. Demais, não fazer o bem já
é um mal. Deus quer que o homem pense Nele, mas não
quer que só Nele pense, pois que lhe impôs deveres
a cumprir na Terra. Quem passa todo o tempo na meditação
e na contemplação nada faz de meritório aos
olhos de Deus, porque vive uma vida toda pessoal e inútil
à Humanidade e Deus lhe pedirá contas do bem que não
houver feito.”
Um segundo fundamento é o equilíbrio,
entendido classicamente, como a eqüidistância dos extremos.
O excesso, seja pela ausência ou pela abundância, em qualquer
aspecto da vida moral, leva necessariamente ao desvio ético:
“A lei natural traça para o homem o
limite das suas necessidades. Se ele ultrapassa esse limite, é
punido pelo sofrimento. Se atendesse sempre à voz que lhe
diz - basta, evitaria a maior parte dos males, cuja culpa lança
à Natureza.”
A ideia de que é preciso fugir dos extremos
não é nova na filosofia. Aristóteles já
a propunha, em seu “Ética a Nicômaco”, quando
dizia que a tendência dos seres humanos é gradualmente
atingir o equilíbrio após ser levado para distante dele,
tal como uma vara de bambu, depois de vergada ao máximo e solta,
oscila ao redor do ponto médio até nele permanecer.
Outro pensador a exaltar o equilíbrio
foi Buda, que tinha o “caminho do meio” como uma de suas
verdades nobres. Esta figura explica bastante bem o princípio
da eqüidistância dos extremos.
E o melhor meio para cumprir este fundamento é
agir sobriamente, com bom senso. E, principalmente, com muita reflexão,
pensando e planejando bastante antes da ação. Como dizia
Platão na República, “A vida irrefletida não
vale a pena ser vivida”.
O terceiro elemento básico da ética
espírita é o princípio da alteridade. Podemos
conceituá-la, de modo simples, como a compreensão do
direito dos demais homens à existência e a um modo de
ser próprio. Significa, em última instância, a
aceitação plena do outro.
Há uma diferença fundamental
entre este conceito e o de tolerância, tantas vezes falado e
exaltado nos meios espírita e cristão. Tolerar significa
suportar as diferenças, ainda que delas discordando completamente.
Entretanto, o posicionamento mental da tolerância não
leva ao respeito à divergência e, assim, pode terminar
com a explosão da negação e mesmo do ódio.
Quando se consegue substituir verdadeiramente
a tolerância pela alteridade, respeitando e entendendo o direito
do outro pensar e agir de modo diverso do nosso, as relações
facilitam-se enormemente. Este é a verdadeira caridade, aquilo
que os antigos gregos chamavam de ágape, o
amor pelo outro.
Finalmente, o último fundamento
da ética espírita é a felicidade. Ou seja, o
entendimento de que o aprendizado só se dá na medida
em que ele é acompanhado pela alegria. E que o conjunto de
felicidade e de aprendizado é o único que leva à
evolução.
Isso contrasta significativamente com a idéia vigente no movimento
espírita de que só se evolui com sofrimento. E isto
porque, normalmente, confunde-se isto com dor – conceitos que
são bem diferentes.
A dor é inerente à existência – é
inevitável. Seja ela física, como conseqüência
dos problemas do corpo (doenças, envelhecimento etc.), seja
moral, resultado dos erros que são cometidos ao longo da existência
como espírito.
Já sofrimento é a falta
da elaboração proveitosa da dor, que é o uso
dos fatos dolorosos como elementos de aprendizado, a fim de entender
as causas das falhas e evitar sua repetição. Quando
as pessoas não fazem isso, sofrem, e as conseqüências
são a culpa, a imobilidade e o desperdício das oportunidades.
Uma ética de felicidade, como
a espírita, propõe que os fatos da vida devem ser elaborados
internamente, visando introjetar e crescer. Ao aprender a fazer isso,
o homem adquire a competência fundamental para a evolução:
ser feliz. É por isso que a ética espírita é
a ética da felicidade.
5. CONCLUSÃO
A definição dos fundamentos da ética
espírita, da forma como foi feita acima, é obtida diretamente
dos elementos kardequianos. Para ser feita, entretanto, é necessário
encarar o Espiritismo como uma filosofia que, tendo por base a imortalidade
do ser pensante e a evolução infinita, privilegia o
crescimento individual a partir da convivência entre os espíritos.
É preciso também aceitar que a finalidade última
da encarnação é o aprendizado, e não o
resgate de dívidas de vidas anteriores.
Esse entendimento da doutrina espírita enfatiza
a busca da felicidade como método ético para a existência
dos espíritos. Mas é preciso frisar que a felicidade,
no sentido que está sendo utilizada, é completamente
diferente do hedonismo, ou seja, da busca do prazer a qualquer custo.
Isto porque tal felicidade reforça ainda mais
um conceito básico da filosofia espírita, o do livre-arbítrio.
Somos livres para ajuizar sobre os atos da forma como queremos, para
nos afastarmos dos excessos, para encararmos o próximo com
alteridade, para elaborarmos produtivamente a dor. Ou não.
E esta possibilidade de escolha aumenta a nossa responsabilidade
pessoal como espíritos que têm o controle da própria
capacidade evolutiva. A partir do momento em que somos capazes de
entender os fundamentos éticos do Espiritismo, só depende
de nós mesmos que consigamos aplicá-los em nosso cotidiano.
E assim não só trabalharmos para nossa própria
evolução, mas também servirmos como exemplo para
a evolução dos nossos semelhantes.
KARDEC, Allan. “O Livro dos Espíritos”,
FEB.
VÁZQUEZ, Allan. Sanchez. “Ética”, Civilização
Brasileira.
COMPARATO, Fábio Konder. “Ética – Direito,
Moral e Religião no Mundo Moderno”, Companhia das Letras.
HOUAISS, Antonio. “Dicionário Eletrônico Houaiss
da Língua Portuguesa”.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação
Fundamental. “Parâmetros Curriculares Nacionais: Apresentação
dos Temas Transversais e Ética”.