Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que significa
ubuntu? Quais são as noções centrais para essa
filosofia e estilo de vida?
Dirk Louw
– O sentido de ubuntu está resumido no tradicional aforismo
africano “umuntu ngumuntu ngabantu” (na versão
zulu desse aforismo), que significa: “Uma pessoa é uma
pessoa por meio de outras pessoas”, ou “eu sou porque
nós somos”. Ser humano significa ser por meio de outros.
Qualquer outra forma de ser seria “des-umana” no duplo
sentido da palavra, isto é, “não humano”
e “desrespeitoso ou até cruel para com os outros”.
Essa é, grosso modo, a forma como a ética ubuntu africana
descreve e também prescreve o ser humano.
Em um sentido estritamente tradicional ou, se se preferir, religioso,
ubuntu significa que só nos tornamos uma pessoa ao ser introduzidos
ou iniciados em uma tribo ou em um clã específicos.
Nesse sentido, “tornar-se uma pessoa por meio de outras pessoas”
implica em passar por vários estágios, cerimônias
e rituais de iniciação prescritos pela comunidade.
Entretanto, em um sentido comum ou, se se preferir, secular, ubuntu
significa simplesmente compaixão, calor humano, compreensão,
respeito, cuidado, partilha, humanitarismo ou, em uma só palavra,
amor.
IHU On-Line – Como o ubuntu
se relaciona com a história e a cultura africanas? Quais são
as suas fontes?
Dirk Louw
– As questões referentes às fontes do ubuntu e
à sua relação com a história e a cultura
africanas são controversas. Alguns pesquisadores sustentam
que o ubuntu tem sido comunicado por meio de histórias de geração
a geração desde tempos imemoriais, e que as articulações
africanas dos valores do cuidado e da partilha são muito mais
antigas do que suas articulações ocidentais –
ou até que as articulações ocidentais têm
suas raízes nas articulações africanas. Outros
pesquisadores parecem sugerir que o ubuntu não passa de uma
cortina de fumaça autofabricada para as atrocidades cometidas
por africanos no passado e no presente.
Então, o ubuntu existe? Os africanos de fato seguem o ubuntu?
Essa pergunta merece mais atenção do que é possível
aqui. Entretanto, ao menos quatro observações parecem
apropriadas. Em primeiro lugar, afirmar que o ubuntu existe não
significa necessariamente sustentar que a compaixão que ele
expressa prevalece ou prevaleceu sempre e em toda parte nas sociedades
africanas. É claro que não prevaleceu nem prevalece.
Contudo, depois que se conseguir olhar para além das manchetes
populares, podem-se detectar os mais anônimos atos de compaixão
entre os africanos. Para citar apenas um exemplo: a transição
relativamente não violenta da sociedade sul-africana, que passou
de um Estado totalitário para uma democracia multipartidária,
não foi meramente o resultado das negociações
transigentes de políticos. Ela foi também – e
talvez primordialmente – o resultado do surgimento de um ethos
de solidariedade, um compromisso com a coexistência pacífica
entre sul-africanos comuns a despeito de suas diferenças.
Em segundo lugar, embora talvez se duvide da existência do ubuntu
como uma realidade plenamente vivida, dificilmente se pode negar a
sua existência como um conceito, narrativa ou mito proeminente
na África e certamente no sul da África. Chamar a ética
ubuntu de “mito” não significa negar sua “verdade
factual” – embora o termo seja muitas vezes usado neste
sentido. A palavra “mito”, da forma como é usada
aqui, descreve a ética ubuntu como uma história duradoura
que – independentemente de sua “verdade factual”
– inspira moralmente e revela o sentido (isto é, a relevância
ou importância) da vida para as pessoas que participam dela,
ou seja, que contribuem para contá-la e recontá-la.
Em terceiro lugar (ou formulando as
duas primeiras observações de forma diferente), antes
de começar a negar ou afirmar a existência de algo, seria
de bom alvitre se envolver em análises conceituais relevantes.
O que exatamente está sendo negado ou reafirmado? Neste caso:
o que exatamente se quer dizer com “ubuntu” ou “existe”?
Finalmente, mesmo afirmando a existência do ubuntu, deve-se
cuidar para não exagerar a influência normativa da ética
africana tradicional nas comunidades africanas.
IHU On-Line – Qual a relação
entre o ubuntu e a religião? Como a ética ubuntu pode
ajudar a melhor desenvolver um verdadeiro diálogo inter-religioso?
Dirk Louw – O ubuntu
é resilientemente religioso. Para um ocidental, a máxima
“Uma pessoa é uma pessoa por meio de outras pessoas”
não tem conotações religiosas óbvias.
Ele provavelmente a interpretará apenas como um apelo geral
para tratar as outras pessoas com respeito e decência.
Na tradição africana,
entretanto, essa máxima tem um sentido profundamente religioso.
A pessoa que devemos nos tornar “por meio de outras pessoas”
é, em última análise, um ancestral. E, da mesma
forma, essas “outras pessoas” incluem os ancestrais.
Os ancestrais são a família extensa. Morrer é
um último voltar para casa. Por conseguinte, não só
os vivos devem compartilhar e cuidar uns dos outros, mas os vivos
e os mortos dependem uns dos outros.
A ética ubuntu ajuda a melhor desenvolver um
diálogo inter-religioso verdadeiro condensando precondições
vitais para esse diálogo. Essas precondições
incluem um respeito pela religiosidade, individualidade, particularidade
e historicidade ou natureza processual dos outros, assim como a valorização
do consenso ou do acordo.
IHU On-Line – O que o ethos
do ubuntu tem a ensinar às outras tradições,
culturas e religiões não africanas? Que aspectos o ubuntu
pode ajudar a aprimorar na ética ocidental?
Dirk Louw
– Permita-me reformular ligeiramente essas perguntas: o ethos
do ubuntu é unicamente africano? O ubuntu só faz parte
da herança cultural africana? Seria etnocêntrico e absurdo
sugerir que a ética ubuntu de cuidado e partilha é unicamente
africana. Afinal de contas, os valores que o ubuntu procura promover
também podem ser identificados em várias filosofias
da Eurásia. Isso não significa negar a intensidade com
que esses valores são expressos pelos africanos. Mas o mero
fato de serem expressos intensamente por africanos não torna,
por si só, esses valores exclusivamente africanos.
Entretanto, embora a compaixão,
o calor humano, a compreensão, o cuidado, a partilha, o humanitarismo
etc. sejam sublinhados por todas as principais cosmovisões,
ideologias e religiões do mundo, eu gostaria, no entanto, de
sugerir que o ubuntu atua como uma justificação distintivamente
africana dessas formas de se relacionar com os outros. O conceito
de ubuntu dá um sentido distintivamente africano e uma razão
ou motivação distintivamente africanas para uma atitude
amorosa para com o outro.
O que, então, o ethos do ubuntu
tem a “ensinar” às tradições, culturas
e religiões não africanas (incluindo as ocidentais)?
Ele pode servir como um importante incentivo para reavaliar o “ser
por meio de outros” em tradições, culturas e religiões
não africanas, para reenfatizar os imperativos do cuidado e
da partilha com os outros.
IHU On-Line – Qual a importância
da comunidade e da família para a ética ubuntu?
Dirk Louw – É
lógico que a comunidade/família é muito importante
para a ética ubuntu. Afinal, o ubuntu significa “ser
por meio de outros”. Mas o que exatamente “a comunidade/família”
significa nesse contexto? Espera-se que uma ética da compaixão
seja inclusiva, e não exclusiva, isto é, que ela inclua,
e não exclua; que abra espaço, e não aliene.
Mas quão inclusiva é a comunidade que o ubuntu descreve
e prescreve? Às vezes, é difícil evitar a impressão
de que o ubuntu não pretende ser exatamente uma “lei
universal do amor”. Por exemplo: o sentido dos ritos de iniciação
em sociedades africanas tradicionais parece implicar que o ubuntu
funcionava (e ainda funciona) como uma ética vinculativa exclusivamente
dentro dos limites de um clã específico. Essa compreensão
exclusiva da comunidade que é o ubuntu combina com o óbvio
potencial do ubuntu de desencadear conflitos étnicos. Ela (ou
uma versão dela) também parece constituir a base da
forma pela qual alguns negros sul-africanos tendem a ver o ubuntu
como “a” diferença definitiva entre eles próprios
como africanos e os não africanos (incluindo as chamadas “pessoas
de cor”, asiáticos e brancos).
Ser membro da comunidade que é o ubuntu não
parece, portanto, ser fácil para os não africanos ou,
ao menos, para os africanos não negros. Os defensores do ubuntu
parecem estar divididos no tocante a isso. Em termos gerais, todos
eles enfatizam sua inclusividade. Entretanto, alguns proponentes do
ubuntu dão a impressão de que, embora a comunidade que
é o ubuntu transcenda os limites de um clã específico,
ela só inclui aqueles cujas origens estão na África.
Outros salientam que a comunidade que é o ubuntu também
inclui “estranhos”, isto é, pessoas que não
estão relacionadas por sangue, parentesco ou casamento. Por
fim, para alguns autores, o conceito africano de comunidade, em seu
mais pleno sentido, inclui toda a humanidade. Todos nós (isto
é, os vivos e os mortos-vivos ou ancestrais) somos família
– ninguém está excluído.
IHU On-Line – O senhor afirma
que “a ênfase do ubuntu sobre o respeito pela particularidade
é vital para a sobrevivência da África do Sul
pós-apartheid”. Nesse sentido, que aspectos o ubuntu
ajudou a forjar na sociedade e política sul-africanas? O que
poderia ser ainda aprimorado?
Dirk Louw – O desafio
da sociedade e da política da África do Sul é
o desafio de afirmar a unidade ao mesmo tempo em que valoriza a diversidade,
isto é, de forjar a unidade na diversidade e, igualmente, a
diversidade na unidade. O ubuntu ajudou a forjar a unidade na diversidade
por meio de sua ênfase na comunidade, expressada por palavras
como simunye (“nós somos um”, isto é, “unidade
é força”) e slogans como “um dano causado
a um é um dano causado a todos”.
Ele também forjou a diversidade na unidade através de
reavaliações criativas desse conceito, que acentuam
a importância da alteridade no ethos do ubuntu. Essas reavaliações
operam com conceitos de consenso ou de solidariedade que condizem
com um regime democrático em comunidades políticas africanas.
Talvez seja necessário trabalhar mais nesse sentido. Uma compreensão
emancipatória da democracia ubuntu (democracia comunitária)
poderá, por exemplo, exigir que os indivíduos recebam
tanta oportunidade quanto possível para fazer mudanças
e decidir por si mesmos como são governados.
IHU On-Line – O ubuntu também está
relacionado ao respeito pela particularidade do outro e ao respeito
pela individualidade. Assim, como o ubuntu vê a noção
de “outro”? Em um mundo globalizado, o que o ubuntu pode
oferecer para que se ultrapassem as diferenças culturais, políticas,
econômicas e religiosas entre os povos?
Dirk Louw
– É importante que ninguém seja um estranho em
termos do suposto alcance da comunidade que é o ubuntu, dado
o potencial do ubuntu para degenerar em um comunitarismo totalitário
– isto é, dada a sua tendência de excluir, e não
de incluir, como se esperaria de uma ética do cuidado e da
partilha. Como uma ética excludente, um ubuntu desvirtuado
representa a fortificação e a preservação
de uma identidade dada por meio da limitação e da segregação.
Nos termos dessa ética, o slogan simunye (“nós
somos um”) sinaliza, ironicamente, a pureza de classe, cultura
ou etnia; racismo e xenofobia – um fenômeno com o qual
os (sul) africanos estão por demais familiarizados.
O verdadeiro ubuntu se opõe a tendências totalitárias
levando a pluralidade a sério. Ao mesmo tempo em que constitui
o “ser pessoa” por meio de outras pessoas, ele valoriza
o fato de que “outras pessoas” sejam assim chamadas, justamente
porque, em última análise, nunca podemos “ficar
inteiramente na pele delas” ou “enxergar completamente
o mundo através de seus olhos”. Portanto, quando o “ubuntuísta”
lê “solidariedade” e “consenso”, ele
também lê “alteridade”, “autonomia”
e “cooperação” (observe: não “cooptação”).
IHU On-Line – Como o ethos
do ubuntu compreende a nossa relação com a natureza
e a proteção das vidas não humanas?
Dirk Louw – O pensamento
africano é holístico. Como tal, ele reconhece a íntima
interconectividade e, mais precisamente, a interdependência
de tudo. De acordo com o ethos do ubuntu, uma pessoa não só
é uma pessoa por meio de outras pessoas (isto é, da
comunidade em sentido abrangente: os demais seres humanos assim como
os ancestrais), mas uma pessoa é uma pessoa por meio de todos
os seres do universo, incluindo a natureza e os seres não humanos.
Cuidar “do outro” (e, com isso, de si mesmo), portanto,
também implica o cuidado para com a natureza (o meio ambiente)
e os seres não humanos.