Eduardo
André R. de Lima
> O Gato de Ceshire
Epistemologia
é um ramo da filosofia que estuda a origem, estrutura, os
métodos e a validade do conhecimento científico, enfocando
mais os critérios de cientificidade e normatividade conjuntural
elaboradas neste âmbito.
Sobre paradigma pensamos que, definir este conceito
basicamente, seja dizer que ele representa os conteúdos de
uma visão de mundo. Isso significa que as pessoas que agem
de acordo com os axiomas de um paradigma estão unidas, identificadas
ou simplesmente em consenso sobre uma maneira de entender e de agir
a respeito de todo o mundo do conhecimento (na totalidade de seus
aspectos).
Como crise dos racionalismos o leitor deverá entender: uma
crise epistemológica, em que se anuncia a morte da ciência,
da história e da filosofia; em que se desconstrói
o sujeito, estabelece-se um vazio ético, e reduz-se toda
verdade a mero discurso; quando a sombra do nada, a sombra nietzschena,
a angústia e a sensação de impotência
se estendem no mundo.
Introdução
Neste artigo, escolhemos tratar de duas questões:
A atualidade das teorias
espíritas em um âmbito epistemológico e dos
esforços necessários à aceitação
destas teorias pela comunidade acadêmica.
Isto posto, percebemos que,
questionar se as teorias kardecistas são epistemologicamente
atuais, é o mesmo que perguntar até que ponto “qualquer”
produção cientifica do século XIX é
atual, assim como, antes disso, – e, ou entrelaçado
a isso –, é preciso saber das reais possibilidades
de se considerar o kardecismo como uma produção cientifica,
assim como os caminhos necessários a esta mudança.
I. Gostaríamos
de partir do principio, e consideramos isto inquestionável,
que a obra de A. Kardec seguiu os rigores metodológicos de
sua época. Ele, um cientista social erudito e rigoroso, dotado
de grande capacidade, em sua obra doutrinária seguiu os mesmos
princípios teórico-metodológicos das obras
acadêmicas assinadas com seu nome de batismo. Redundante,
mas sempre necessário lembrar que estes trabalhos de juventude,
diga-se, alcançaram um imediato e grande reconhecimento entre
seus pares.
Assim, se aceitarmos que o Espiritismo foi codificado, repetimos,
dentro do padrão cientifico de sua época, já
podemos dar um passo além e tentar analisar se ele envelheceu.
E, se sim, em quais aspectos isso ocorreu? Antes de respondermos
temos que deixar claro algumas coisas: Esta palavra: envelheceu,
do modo como foi utilizada aqui, com certeza não é
a mais correta, eu a repeti para fins didáticos. O que aconteceu
foi que, de modo geral, ocorreu uma crescente transformação
teórico-metodológico que, por critérios extremamente
difíceis de se definir, podem de forma grosseira, neste artigo,
serem chamados de novos (e os que foram substituídos de velhos).
Para o leitor menos familiarizado com as teorias do conhecimento,
pode-se colocar o mesmo raciocínio de outra forma: se formos
absolutamente ortodoxos e, por assim dizer, fechados aos paradigmas
já emergentes, e forçoso dizer que, sob os aspectos
operacionais (metodológicos) – e, naturalmente, estritamente
acadêmicos –, o Espiritismo, como tudo que foi produzido
em sua época, sofreu com as novas teorias. Assim, é
somente neste sentido bem especifico que entendemos estas noções.
Por outro lado, se formos “mais abertos” as mudanças,
podemos com certeza, já afirmar que: o Espiritismo em seu
bojo teórico, como alguns pensadores defendem brilhantemente
(e nos encontramos entre estes), apresenta uma atualidade, impressionante.
Voltaremos a isso mais adiante.
Aqui fazemos uma pequena lembrança à imensa “abnegação”
intelectual do mestre de Lion ao deixar uma reconhecida carreira
exclusivamente acadêmica para dar sua grande contribuição
para a humanidade. Ficamos questionando... Quantos de nós
faríamos o mesmo?
À época de Kardec (bem antes da crise dos racionalismos),
o positivismo era o paradigma dominante, embora se deva dizer que,
este positivismo não era praticado de forma uniforme. Acreditava-se
no progresso humano, na evolução por assim dizer (mesmo
antes de K. Marx), na cognição humana, pensava-se
que a ciência iria solucionar todos os problemas do homem,
por “fim” acreditava-se na razão. Aqui já
cabe pontuar que o empirismo, aliado do positivismo da época
de Kardec, é, e tem sido ou foi, repensado (não disse
aceito), nos moldes atuais, com seriedade, por homens da estatura
de Karl Popper, Ernest Gellner, William James e John Dewey, tomando
a forma de neopositivismo para alguns filósofos. Desta forma,
e voltando ao raciocínio do início do primeiro parágrafo,
consideramos que seria ignorar os fatos e a brilhante biografia
intelectual de Kardec não aceitar que, em sua codificação,
ele aplicou os conceitos científicos da época, que,
como já introduzido, estão sendo revisitados atualmente.
Devemos ainda trabalhar com o fato de que a obra kardecista, infelizmente
em nossa opinião, com o passar das décadas, assumiu
mais e mais um caráter de não ciência no âmbito
que, nesse sentido, realmente importa: o acadêmico. Sabemos
que muitos não gostam de serem lembrados disto.
Hoje, desconfiamos que o Espiritismo como ciência, tenha sido
levado mais a sério à época de sua elaboração
do que atualmente, apesar dos brilhantes esforços feitos
em todo o mundo por uma gama de cientistas que ja trabalham com
a possibilidade da existência ou, até mesmo, com os
“mesmos” critérios teóricos de Kardec
em sua base espistemológica.
Hoje, sabe-se que todas as áreas do conhecimento humano do
século XIX “envelheceram” mais ou menos, e sobrevivem
em termos teóricos pior ou melhor. Aliás, algumas
áreas que detinham o estatus de ciência, hoje, encontram-se
ameaçadas de perdê-lo. – Estamos pensando na
Psicologia, por exemplo, e em seus “embates” com a Psiquiatria.
Sendo ainda mais abrangente, hoje, todas as disciplinas, em última
instância teórica, estão frágeis e, essa
crise de racionalidade, pode ser vista por vários lados.
Assim, se, a obra de Kardec “já estando” reconhecida
como ciência aos moldes da época de D. Pedro II, “envelheceu”;
isso ocorreu porque tudo “envelheceu”.
Guardando as diferenças transparadigmáticas; como
os marxistas, os kardecistas devem ter a mesma visão, ter
Kardec como base, e não como fim em si mesmo, o que aliás,
o magnífico codificador, deixou bem claro.
Diante de tudo o que foi dito fica outra questão fundamental
até aqui apenas introduzida, que agora será observada
com maior acuidade: até que ponto a obra de Kardec estava
além de seu tempo?
Seria fácil afirmar, – e verdadeiro –, que devido
a já supracitada crise dos racionalismos que vivemos, tudo
hoje em dia pode ser estudado cientificamente, desde que haja um
método academicamente aceito. No entanto, sem recorrer a
essa avenida teórica, acreditamos ser possível enquadrar
o Espiritismo, perfeitamente, em um modelo teórico atual.
A “questão correta” a ser debatida e ampliada
é essa, indo muito além da simplória afirmação
de alguns antagonistas que não estudam muito: espiritismo
não é ciência e sim religião. Já
existem trabalhos que buscam esse enquadramento. A obra, ainda em
construção de S. Chibeni, por exemplo, lança
grandes luzes nesse sentido.
Esse autor, tomando como uma de sua bases, o brilhante filósofo
Imre Lakatos, defende que o Espiritismo já foi codificado
por Kardec com todas as características metodológicas
de um atual programa de pesquisa completamente exeqüível
e academicamente aceito. Em seu bojo hipotético o Espiritismo,
teria linhas mestras bem delimitadas e claras, assim como Kardec,
já sabia, no seu século, da necessidade de um conhecimento
ser heuristicamente progressivo.
Assim, se S. Chibeni estiver correto, como nós defendemos
que está, todo o corpo paradogmático espírita
guarda uma certa atualidade impressionante.
II.
Um pensador e poeta, disse que, nesta era de crise das racionalidades
os pensadores do saber quando refletem sobre o conhecimento se assemelham
a Alice (da obra: Alice no País das Maravilhas) quando se
vê de frente com o gato de Cheshire e trava o seguinte diálogo:
– Podia me dizer, por favor, qual o caminho para sair daqui?
– Isso depende muito, do lugar
para onde você quer ir – disse Gato.
– Não me importa muito
onde... – disse Alice.
– Nesse caso não importa
para onde você vá – disse o Gato.
– Contanto que eu chegue a
algum lugar – acrescentou Alice como explicação.
– É claro que
isso acontecerá – disse o Gato – desde que você
ande durante algum tempo.
Nesta estória, nos parece que se os estudiosos espíritas
se recusarem a dialogar com o mundo acadêmico, infelizmente,
estarão (como os pensadores do saber) no papel de Alice.
Alguns defendem que o movimento não esteja se dedicando tanto
a sua parte cientifica como orientou Kardec (aqui deixo ao leitor
esta questão).
Quais seriam os caminhos necessários a solução
deste possível impasse?
Nós, que somos espíritas, e compreendemos seus postulados,
sabemos do universo interdisciplinar e transdiciplinar que emerge
solidamente de sua singular base tripartite. Sabemos da imensa necessidade
de elevação moral de nossa humanidade, mas... Como
traduzir isso em termos academicamente aceitos de modo que, seja
possível, uma aproximação mais rápida
entre um conhecimento (que luta para seu próprio reconhecimento
como tal) e as outras áreas já acadêmicas?
Segundo ainda o mesmo pensador supracitado, a humanidade uma ou
duas vezes se transformou. Thomas Kuhn também discorre sobre
isso de um ponto de vista epistemológico em sua obra: A Estrutura
das Revoluções Científicas.
Nós, espíritas, acreditamos que uma revolução
moral está vindo e estamos convictos de que será acompanha
por uma cientifica sendo estas, sobretudo, complementares.
Nos parece que as dificuldades inerentes a realização
deste processo foram vistas com extrema clareza por Thomas Kunh
quando ele afirmou que:
(...) Cientistas muitas vezes agem como se estivessem mais interessados
em impedir o progresso científico do que em promovê-lo
(...).
Ele se torna mais claro ainda quando escreveu que:
(...) Essa substituição não ocorre de um modo
rápido; o período de crise, caracterizado pela transição
de um paradigma a outro, pode ser bastante longo. É compreensível
que assim seja, já que cada um dos paradigmas estabelece
as condições de cientificidade do conhecimento produzido
no seu âmbito, e essas condições podem ser consideradas
ridículas, triviais ou insuficientes, pelos defensores do
velho paradigma, ou seja, os cientistas claramente comprometidos
e educados à luz do paradigma anterior, que tudo fazem para
impedir a substituição (...)
Nesse sentido, encontramos com precisão cirúrgica,
se assumirmos que este grande pensador está correto, um dos
grandes desafios do Movimento Espírita: lutar para acelerar
este processo de mudança, fazendo com que o mundo científico
aceite a existência do plano espiritual.
Cremos que fazer com que o Espiritismo consiga dialogar novamente
com as academias seja um dos primeiros passos.
Somente é possível vislumbrar as magníficas
altitudes que alcançaremos quando os estudos espíritas
forem plenamente aceitos como acadêmicos. Kardec, com certeza,
sabia do tamanho do impacto desta revolução, da imensa
necessidade de sua realização e construiu, com extrema
perfeição, a base que permitirá essas mudanças.
Em nossa opinião e, como já observado (e teorizado)
por S. Chibeni, essa base jamais estará superada –
temos outros motivos em paralelo com os deste pensador que aqui
não discorremos.
Até que ponto nós estamos lutando para que o Espiritismo
seja aceito como um estudo acadêmico, e se, este processo
de aceitação do Espiritismo como “saber cientificamente
aceito”, está perto de seu término, é
possível que os de fora do movimento que, por sua vez, se
encontram dentro das academias saibam responder melhor do que nós.
São eles que irão ampliar no final suas convicções.
No entanto, nos parece que ninguém está em condições
de negar que, cada vez mais, a nossa pacífica luta também
se encontra sendo travada dentro das academias, no território
deles... E isso senhores, já diz muita coisa.
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Fonte: O Mensageiro
http://www.omensageiro.com.br/artigos/artigo-180.htm
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