Os estudos que Allan Kardec realizou sobre a natureza de Deus colocam,
inevitavelmente, o Espiritismo no campo da investigação
teológica. Apesar de não ter aprofundado o tema, a ideia
de uma Teologia Espírita não é algo assim tão
delirante.
O Espiritismo possui um caráter teológico porque se
enquadra no âmbito da Teologia, no sentido literal de estudo
sobre Deus, sobre deuses. Inicialmente um ramo da filosofia, a Teologia
tornou-se braço direito da religião. Com o tempo, o
estudo sobre Deus foi associado à religião, já
que a ciência não se propõe a estudar esse tema
devido à impossibilidade de experimentação e
comprovação. Na Idade Média, a filosofia era
escrava da Teologia. Esse quadro mudou somente com o advento da modernidade
e o progresso da ciência. Pensadores como Espinosa, Hegel e
Nietzsche se debruçaram sobre o tema sem que houvesse estreita
ligação de seus estudos com a religião, a Teologia.
Eles eram filósofos e humanistas, não eram teólogos.
TEODICEIA
Pode-se
sustentar também que o Espiritismo é uma Teodiceia,
por ser deísta sem negar a existência do Mal, cujo surgimento
se dá quando ocorre a derrogação das leis naturais
no campo da moralidade. Para a filosofia espírita, “o
bem é tudo o que está de acordo com a lei de Deus e
o mal é tudo o que dela se afasta. Assim, fazer o bem é
se conformar à lei de Deus; fazer o mal é infringir
essa lei.” (O Livro dos Espíritos, q. 630).
A personificação do Mal, na figura de um deus maligno,
do demônio, Satanás, eterno opositor de Deus, não
é aceito pela Doutrina Espírita. O Mal não vem
de Deus, mas do exercício do livre-arbítrio. Amiúde,
o que consideramos um mal, mostra-se como um bem, em longo prazo.
Para o Espiritismo, em determinadas situações, e para
nossa “desgraça”, o mal é um bem.
Essa plena convivência do Mal com a Divindade é que faz
do Espiritismo uma Teodiceia, ou seja, ele se vincula a essa concepção
teológica, parte da filosofia que considera a coexistência
de Deus com o Mal e o livre-arbítrio. O filósofo Leibniz
realizou estudos sobre a Teodiceia ao tentar compreender a natureza
de Deus, seus atributos, em uma de suas obras mais interessantes:
“Ensaio de Teodiceia Sobre a Bondade de Deus, a Liberdade do
Homem e a Origem do Mal”, que Kardec deve ter lido, assim como
certamente estudou a “Ética”, de Espinosa. Não
poderíamos deixar de lado os estudos teológicos sobre
Deus e seus atributos por Fénelon que, aliás, foi um
dos grandes colaboradores da equipe d’O Espírito de Verdade.
Em nosso entender, além desses autores citados, a filosofia
grega, Descartes e a Teologia cristã desempenharam grande influência
na abordagem que Allan Kardec faz sobre Deus, notadamente devido à
sua formação humanista e cristã.
O fato de o Espiritismo possuir uma Teologia e uma Teodiceia, não
significa que sua visão de mundo seja teológica, dogmática,
calcada em preceitos religiosos ou em algum artigo de fé. O
Cristianismo, por exemplo, nos conduz a uma Teologia enquanto que
o Espiritismo, de modo diferenciado, nos leva a conceber uma Filosofia
da História, melhor dizendo, a uma Filosofia Espírita
da História.
Para o Cristianismo, a figura histórica de Jesus Cristo é
o próprio Deus, o Verbo que se fez Carne, que se manifestou
historicamente a fim de salvar o homem do pecado. O Cristianismo tem
como objetivo primordial a salvação do homem. Isto é
incontestável. Enquanto que o Espiritismo, em que pese a influência
cristã, não é salvacionista porque sua finalidade
é a evolução do homem, a evolução
intelecto-moral, contínua e permanente. Por conseguinte, é
um equívoco imaginar que a filosofia espírita tenha
da história uma visão teológica, calcada no cristianismo,
como se fosse um neocristianismo, o Cristianismo Redivivo, ressuscitado
ou mesmo reencarnado.
No sentido estrito do termo, repetimos, o Espiritismo é sim
uma modalidade de Teologia por se propor a estudar, a analisar e tentar
conceituar Deus como causa primordial, enquanto Inteligência
Suprema, com supostos atributos. Porém, isto não quer
dizer que sua visão do processo histórico seja fundamentada
em uma visão teológica. Trocando em miúdos, a
concepção que o Espiritismo tem do processo histórico
é teleológica, jamais teológica.
Ao descartarmos o teologismo cristão na análise dos
fatos históricos, surgem outras questões. Seria essa
concepção espírita da história —
dedutível dos princípios nucleares do Espiritismo —,
dialética? Seria ela libertária, holística, monista
ou positivista? Essa dialética na análise histórica
é platônica ou aristotélica, hegeliana ou marxista?
É necessário avançar nessa discussão.
Ficar de rabo preso com o Cristianismo pode satisfazer aos anseios
religiosos de muitos confrades e se torna um prato cheio para o estudo
de antropólogos e sociólogos não-espíritas.
No entanto, essa vinculação cristã funciona mais
como um estorvo do que como alavanca ou um novo instrumental de análise.
ESPÍRITO
UNIVERSAL
Para Hegel,
a história é a manifestação do Espírito
Universal. Ele troca a Teologia pela metafísica. Ao invés
da ação de Deus no processo histórico, o que
temos é a manifestação desse Espírito
Universal, como ação inteligente e determinante. Marx
inverte essa equação e sustenta que o motor da história
não é esse suposto Espírito hegeliano, mas a
luta de classes, aplicando o método dialético de Hegel
adaptado ao estudo da economia política. Se existisse um Espírito
Universal, ele seria efeito e não causa.
Contudo, sem descartar os Modos de Produção, determinantes
e decisivos na construção do processo social, a filosofia
espírita acrescenta outro dado: a ação dos seres
desencarnados através da encarnação e da medianimidade,
a (re)encarnação e o processo evolutivo, no que o filósofo
espírita argentino Humberto Mariotti denominou de Modos de
Evolução. Daí ser risível, tanto quanto
ridícula a ideia de que possa existir um Espiritismo Marxista.
O mesmo se dá em relação a um suposto Espiritismo
Hegeliano, mais ainda quanto à existência de um Espiritismo
Teológico Cristão, deduzível do pensamento kardecista.
A grande diferença entre a Teologia Cristã e uma suposta
Teologia Espírita reside no uso exclusivo da razão,
da lógica e do bom senso como ferramentas de análise
e reflexão. Ou seja, no Kardecismo o exercício teológico
se dá no campo da cogitação filosófica,
sem a presença detestável do dogmatismo religioso e
sem o indesejável uso da fé como fator de apreensão
da realidade. A Teologia Espírita também poderia ser
considerada uma modalidade experimental do pensamento teológico,
pois se fundamenta na empiria e na reflexão filosófica,
sem espaço hegemônico para a revelação
religiosa e a fé. A não ser que essa fé seja
racional, o que seria um baita de um paradoxo. Todavia, isto é
tema para outra oportunidade...
Eugenio Lara, arquiteto e
jornalista, é membro-fundador do Centro de Pesquisa
e Documentação Espírita (CPDoc), do Instituto
Cultural Kardecista de Santos (ICKS) e um dos coordenadores
do site Pense - Pensamento Social Espírita e autor
dos livros em edição digital: Racismo e Espiritismo;
Milenarismo e Espiritismo; Amélie Boudet, uma Mulher
de Verdade - Ensaio Biográfico; Conceito Espírita
de Evolução e Os Quatro Espíritos de
Kardec.