Entrevista concedida a Graziela Wolfart
Revista do Instituto Humanitas Unisinos
IHU On-Line – Em uma entrevista recente, o
senhor afirmou que “perdoar não é esquecer. Perdoar
é lembrar”. O senhor pode esclarecer essa afirmação,
a partir da concepção cristã de perdão?
Julio Lancellotti – Muitas pessoas chegam
para mim afirmando que precisam se confessar, porque aconteceu uma
coisa que elas não esquecem. E como não esquecem, não
perdoam. A partir da colocação de muitas pessoas, eu
respondo que “você não esquece porque não
está com amnésia, porque lembra os fatos da sua vida,
principalmente os que marcaram muito”. O perdão não
é não lembrar, ou a pessoa ter dificuldade em perdoar
pelo fato de que lembra; mas é justamente lembrar e ter consciência
do que aconteceu para não repetir, não fazer o mesmo.
Como, por exemplo, olhando historicamente, não podemos esquecer
o massacre que aconteceu com o povo judeu, não podemos esquecer
o Holocausto. Precisamos lembrá-lo para que não se repita,
para que nunca mais aconteça. Uma pessoa que é violentada,
maltratada, torturada não vai esquecer. O perdão significa
lembrar e não fazer igual, não repetir a maldade que
foi feita, para não torná-la novamente presente na história.
IHU On-Line – Como define a concepção
cristã de perdão a partir do legado e da postura de
Jesus Cristo?
Julio Lancellotti – O perdão cristão
é aquele que supera a vingança, que supera a raiz da
maldade. Ele não é simplesmente irresponsabilidade,
mas a responsabilidade. Por exemplo, se alguém vier confessar
e me disser “padre, eu matei uma pessoa e um inocente foi preso
no meu lugar”. Eu não posso dar a absovição
para essa pessoa. Eu preciso dizer a ela: “você quer o
perdão sacramental? Vá e se apresente no lugar dela
como culpado”. O perdão supõe superar o mal que
foi feito e, na medida do possível, reparar. Se uma pessoa
vem e me diz: “padre, eu dei um desfalque na empresa, peguei
dinheiro público, e antes de sair do país eu vim me
confessar porque está me pesando na consciência”.
Novamente, eu não posso dar a absolvição para
essa pessoa. Ela tem que devolver o dinheiro. O perdão que
Jesus Cristo sempre concedeu, sendo que muitas vezes diziam para ele
“você não pode perdoar, quem perdoa é Deus”
– e ele foi muito criticado pelas autoridades do seu tempo –,
era um perdão que trazia a pessoa de volta à comunhão.
Era um perdão que superava o aspecto social. Lembro aqui o
exemplo do paralítico (Marcos 2, 1-12). Ele pergunta: “o
que é mais fácil, dizer ‘os teus pecados estão
perdoados’ ou ‘pegue a tua cama, levante e anda’?
Então, para que saibais que o Filho do Homem tem o poder de
perdoar os pecados, eu te digo ‘pega a tua cama, levante e anda’”.
As autoridades não eram capazes de fazer nenhuma das duas coisas,
porque acreditavam que era o pecado dele que o fazia excluído
da religião, da comunhão, da comunidade humana. O perdão
que Jesus traz é um perdão que cura, que liberta, que
tira a exclusão, que faz a pessoa de novo “ser gente”.
IHU On-Line – Como interpreta a postura de
Jesus, o seu silêncio, diante de Herodes Antipas, um pouco antes
da crucificação?
Julio Lancellotti – Jesus não compactuou
com nenhuma injustiça, nem com aqueles que o tratavam como
louco. Herodes tratou Jesus como um louco. Ele queria que Jesus fizesse
alguma coisa extraordinária, o que ele não fez. O perdão
cristão não é uma inconsequência. Não
significa dizer: “não faz mal que você fez isso,
está tudo bem”. Não é verdade. O perdão
cristão responsabiliza, corresponsabiliza, não é
um perdão que passa a mão na cabeça e diz: “continue
fazendo o que estava” ou “não faz mal roubar o
dinheiro público, ou matar as crianças porque não
tem dinheiro para comprar remédio”, como esses que aparecem
na mídia e superfaturam e roubam o dinheiro da saúde.
O perdão não é dizer para eles: “está
bom, então, você pediu perdão, está perdoado,
volte para sua casa e fique feliz”. O perdão supõe
a reparação, a conversão. Inclusive o perdão
sacramental supõe o propósito de não mais pecar.
Sabemos que nossa natureza humana não permite fazer um propósito
desses de forma definitiva. Mesmo assim, precisamos fazê-lo.
O arrependimento tem que ter uma consequência. A memória
do pecado e do erro não é uma memória da culpa,
mas a memória da graça, que liberta. O importante é
não lembrar de maneira mórbida, mas de uma maneira que
construa uma forma nova de viver que não repita o que foi feito.
IHU On-Line – Em que sentido o perdão
pode ser encarado como uma forma de justiça espiritual?
Julio Lancellotti – A questão da justiça
espiritual não significa “fora da vida”, porque
às vezes nós utilizamos esse conceito de tal forma.
O espiritual é pelo espírito; pelo Espírito Santo
e pelo discernimento. Então, não é uma justiça
que está fora da história da vida humana. Há
situações em que a Igreja, mesmo que conceda o perdão
sacramental, não pode interferir na justiça. Quem errou
terá que responder perante o tribunal. Mesmo que eu perdoe
os que me fizeram mal, no sentido de que eu não faça
para eles o mesmo que fizeram para mim, não supõe que
eles não respondam na justiça. O perdão para
fazer uma justiça espiritual significa a ação
pelo espírito, pelo discernimento e pela capacidade de renovar
e refazer a vida.
IHU On-Line – Em que medida, por meio do perdão,
a bondade substitui a vingança?
Julio Lancellotti – Não podemos afirmar
isso. A vingança tem que estar sempre fora. Nada a substitui.
A vingança é o elemento fundamental no perdão,
no sentido de não fazer o mesmo. Deus não se vinga,
ninguém tem que se vingar. Mas não podemos fugir das
consequências. A bondade é estar com a pessoa que erra,
que manifesta o seu pecado, para que ela possa ter força e
coragem, pois diante de Deus ela se refaz, se renova, e continua sendo
um ser humano e filho de Deus. Não posso fazer nada contra
quem me feriu achando que o seu sofrimento trará satisfação
e corrigirá o erro. A vingança nunca é um caminho.
Justamente o perdão supõe a não vingança.
IHU On-Line – O que é preciso para que
o perdão seja visto como a possibilidade de um novo recomeço,
de um novo caminho a ser traçado para além do erro/falha
cometido?
Julio Lancellotti – Que nunca o perdão
seja humilhação, mas que seja dignificação.
Que a pessoa se sinta tão digna diante de Deus, pois o amor
de Deus é maior do que seu erro. Por pior que eu tenha feito,
Deus ainda me ama, porque eu sou filho Dele. E isso não se
destrói. Então, é preciso acolher com toda a
bondade, delicadeza, mas com firmeza. A bondade não significa
nunca frouxidão, mas a firmeza da dignidade humana. Ninguém
perde a dignidade por um erro que cometeu. A pessoa deve continuar
a ser tratada com dignidade. Muitas vezes na nossa sociedade os que
erram, ou os que são considerados bodes expiatórios,
os “errados” no convívio social, são tratados
com toda a crueldade, justificando a tortura, a “justiça
com as próprias mãos”, a pena de morte. Nós
vivemos em uma sociedade tão desigual que um senador que comete
algum crime tem foro privilegiado. E um morador de rua que quebrar,
danificar, ou roubar alguma coisa para comer é considerado
um criminoso e todos acham que podem queimá-lo, matá-lo,
destrui-lo. É preciso manter a dignidade humana, pois a pessoa
precisa acreditar que é capaz de superar o erro, porque Deus
nos ama. Seu amor sempre é maior.
IHU On-Line – O que o trabalho e o contato
com os moradores de rua mais lhe ensinam? O que o senhor tem aprendido
com eles sobre o perdão?
Julio Lancellotti – Aprendo muito com eles.
Aprendo que são capazes de perdoar e têm uma capacidade
incrível de serem condescendentes. Eles serão aqueles
que terão que conceder o perdão à sociedade que
os marginaliza, os exclui e os destrói, na hora em que ela
for capaz de partilhar com eles o pão, a mesa, a casa. Eles
são o sinal de que somos uma sociedade que ainda não
foi capaz de se reconciliar com os mais sofridos.
IHU On-Line – Como raiva e perdão se
contrapõem e se relacionam?
Julio Lancellotti – O perdão tem que
nos ajudar a perceber que raiva todos nós sentimos. O problema
é o que fazemos com nossa raiva. Raiva todo mundo sente porque
é humano, ninguém pode dizer que nunca sentiu raiva.
O que não posso é despejar a minha raiva em cima de
outros, principalmente em cima dos mais fracos, dos indefesos. Normalmente
acontece muito isso. Sentimos raiva de alguém que é
mais poderoso, mas descontamos essa raiva, despejando-a em cima de
quem é mais fraco.
IHU On-Line – É possível perdoar
alguém mesmo sentindo raiva por essa pessoa?
Julio Lancellotti – Se eu opto por, mesmo
tendo raiva daquela pessoa, não fazer com ela o mesmo que ela
fez para mim, isso é uma forma de perdão muito grande.
Eu posso sentir raiva e não fazer igual. Essa é uma
capacidade humana de ter a convicção clara, plena, de
não usar a arma que me mata, a palavra que me destrói,
as artimanhas que usam contra mim, nem da força religiosa,
política ou simbólica.
IHU On-Line – Perdoar é uma forma de
sublimação da raiva?
Julio Lancellotti – Não. Perdoar é
uma capacidade de superação, de lidar com o erro de
forma muito humana, a partir de convicções muito claras.
Mesmo que a arma de quem me ofendeu esteja agora na minha mão,
eu não vou usá-la.
IHU On-Line – Em que casos o perdão
pode ser incondicional ou condicionado?
Julio Lancellotti – Em termos do sacramento
da reconciliação, da Igreja, o perdão é
condicionado ao arrependimento e ao propósito. Isso sempre
acontece. O perdão também se torna condicionado quando
a vítima da ofensa não tem capacidade, não consegue
perdoar, pois o dano é tão grande que não há
como fazê-lo. Como uma criança violentada pode perdoar
seu violentador? Está além da capacidade da pessoa.
Não se pode pedir a uma velhinha que foi torturada que perdoe.
É impossível. Por isso, nesses casos deve-se pedir perdão
à comunidade, à sociedade. Nosso perdão sempre
é imperfeito. Só o perdão de Deus tem perfeição,
é incondicional.
IHU On-Line – O que guarda do convívio
com D. Luciano Mendes de Almeida? Que imagem, que lembrança
o senhor guarda dele e do trabalho que fazia com moradores de rua
também?
Julio Lancellotti – Dom Luciano é a
bondade exigente, a ternura que transforma, o sorriso que acolhe,
a mão que sempre partilha. É aquele que nunca reteve
nada para si, que abriu mão do poder, de prerrogativas, e que
se identificou com os fracos. É uma ternura e uma bondade que
nunca quis se valer de ser um Mendes de Almeida, de ser um bispo,
um arcebispo, de ser o presidente da CNBB ou seu secretário-geral,
de ser uma autoridade. Ele sempre quis ser um irmão servidor.
Refleti muito quando D. Luciano estava doente, sobre a parábola
do bom samaritano (Lucas 10, 25-37). Ele é o samaritano que
vai procurar o que está ferido, mas depois ele vai procurar
o que feriu, para que este não fizesse mais aquilo.
IHU On-Line – O senhor gostaria de acrescentar
mais algum comentário?
Julio Lancellotti – O que precisamos é
refletir sobre como os injustiçados desse mundo vão
nos perdoar. E, caso eles tenham a capacidade de nos perdoar, como
poderemos viver a reconciliação, fazendo com que todos,
principalmente os mais pobres, tenham condição de vida
e se sintam nossos irmãos. Essa é a nossa missão
e nosso desafio para viver a Páscoa.
Fonte: http://www.ihuonline.unisinos.br