PROBLEMAS MORAIS
Revista Espírita
Jornal de Estudos Psicológicos
publicada sob a direção de Allan Kardec
setembro de 1858
Há sete ou oito meses, o chamado Louis G..., operário
sapateiro, fazia a corte a uma senhorita Victorine R..., pespontadora
de botinas, com a qual se deveria casar muito brevemente, uma vez que
os proclamas estavam em curso de publicação. Estando as
coisas nesse ponto, os jovens se consideravam quase que como definitivamente
unidos, e, por medida de economia, o sapateiro vinha, cada dia, para
tomar suas refeições, na casa de sua noiva.
Quarta-feira última, tendo vindo Louis, como de costume, jantar
na casa da pespontadora de botinas, sobreveio uma contestação,
a propósito de uma futilidade; obstinaram-se de parte a parte,
e as coisas chegaram ao ponto de Louis deixar a mesa, e jurando partir
para jamais voltar.
No dia seguinte, todavia, o sapateiro, embaraçado, veio ceder
enfim e pedir perdão: sabe-se que a noite é boa conselheira;
mas a operária, talvez prejulgando, segundo a cena da véspera,
o que poderia sobrevir quando não tivesse mais tempo de se desdizer,
recusou se reconciliar, e, protestos, lágrimas, desespero, nada
fê-la dobrar-se. Anteontem à tarde, entretanto, como vários
dias decorreram desde aquele da desunião, Louis, esperando que
sua bem-amada estivesse mais tratável, quis tentar um último
entendimento: chegou, pois, e bateu à porta de modo a se fazer
conhecer, mas ela recusou abrir; então, novas súplicas
da parte do pobre intrigado, novos protestos através da porta,
mas nada pôde tocar a implacável pretendida. "Adeus,
pois, malvada! gritou enfim o pobre rapaz, adeus para sempre! Tratai
de encontrar um marido que vos ame tanto quanto eu! Ao mesmo tempo a
jovem ouviu uma espécie de gemido abafado, depois como o barulho
de um copo que cai escorregando ao longo de sua porta, e tudo voltou
ao silêncio; então ela se imaginou que Louis se instalou
na soleira da porta para esperar sua primeira saída, mas ela
se prometeu não pôr o pé para fora, enquanto ele
ali estivesse.
Fora apenas há um quarto de hora que isso ocorrera, quando um
locatário que passava sobre o patamar com uma luz, soltou uma
exclamação e pediu socorro. Logo os vizinhos chegaram,
e a senhorita Victorine, tendo igualmente aberto sua porta, lançou
um grito de horror, percebendo estendido sobre o ladrilho, seu pretendido
pálido e inanimado. Cada um se apressa em lhe dar socorro, informou-se
de um médico, mas logo se percebeu que tudo seria inútil,
e que ele deixou de existir. O infeliz jovem havia mergulhado seu trinchete
na região do coração, e o ferro ficara na ferida.
Esse fato, que encontramos no Siècle do dia 7 de abril último,
sugeriu o pensamento de dirigir-se, a algum Espírito superior,
algumas perguntas sobre suas conseqüências morais. Hei-las
aqui, assim como as respostas que nos foram dadas pelo Espírito
de São Luís, na sessão da Sociedade do
dia 10 de agosto de 1858.
1. A jovem, causa involuntária da morte de seu amante,
tem responsabilidade?
- R. Sim, porque ela não o amava.
2. Para prevenir essa infelicidade, deveria desposá-lo
apesar da sua repugnância?
- R. Ela procuraria uma ocasião para se separar dele; ela fez
no começo de sua ligação o que deveria fazer mais
tarde.
3. Assim sua culpa consiste em ter mantido nele os sentimentos
que ela não partilhava, sentimentos que causaram a morte do jovem?
- R. Sim, é isso.
4. Sua responsabilidade, nesse caso, deve ser proporcional à
sua falta; não deve ser tão grande como se ela tivesse
provocado voluntariamente a morte?
- R. Isso salta aos olhos.
5. O suicídio de Louis, encontra uma desculpa no descaminho
em que o mergulhou a obstinação de Victorine?
- R. Sim, porque seu suicídio, que provém do amor, é
menos criminoso aos olhos de Deus do que o suicídio do homem
que quer se libertar da vida por um motivo de covardia.
Nota. - Dizendo que esse suicídio é menos
criminoso aos olhos de Deus, isso significa, evidentemente, que há
criminalidade, embora menor. A falta consiste na fraqueza que não
soube vencer. Sem dúvida, era uma prova sob a qual ele sucumbiu;
ora, os Espíritos nos ensinam que o mérito consiste em
lutar, vitoriosamente, contra as provas de todas as espécies,
que são a própria essência de nossa vida terrestre.
O Espírito de Louis C... tendo sido evocado
uma outra vez, se lhe dirigem as perguntas seguintes:
1. Que pensais da ação que cometestes?
- R. Victorine é uma ingrata; eu errei em matar-me por ela, porque
ela não o merecia.
2. Ela, pois, não vos amava?
- R. Não; ela acreditou no início; iludiu-se; a cena que
lhe fiz abriu-lhe os olhos; então, ela ficou contente com esse
pretexto para se desembaraçar de mim.
3. E vós, a amavas sinceramente?
- R. Tinha paixão por ela: eis tudo, eu acreditava; se amasse
com amor puro, não teria querido causar-lhe pesar.
4. Se ela soubesse que queríeis realmente vos matar,
teria persistido em sua recusa?
- R. Não sei; não creio, porque ela não é
má; mas ela seria infeliz; foi melhor para ela que isso se passou
assim.
5. Chegando à sua porta, tínheis a intenção
de vos matar em caso de recusa?
- R. Não; não pensava nisso; não acreditava que
ela seria tão obstinada; não foi senão quando vi
sua obstinação, quando então a vertigem me tomou.
6. Pareceis não lamentar o vosso suicídio senão
porque Victorine não a merecia; é o único sentimento
que experimentais?
- R. Neste momento, sim; estou ainda todo perturbado; parece-me estar
à sua porta; mas sinto outra coisa que não posso definir.
7. Compreendê-la-eis mais tarde?
- R. Sim, quando estiver esclarecido... Fiz mal; devia deixá-la
tranqüila... Fui fraco e disso carrego a pena... Vede bem, a paixão
cega o homem e leva-o a fazer tolices. Só o compreende quando
não há mais tempo.
8. Dissestes que disso carregavas a pena; que pena sofreis?
- R. Errei em abreviar minha vida; não o devia; devia suportar
tudo antes que pôr-lhe fim antes do tempo; aliás, sou infeliz;
sofro; é sempre ela quem me faz sofrer; ela me parece ainda ali,
à sua porta; a ingrata! Não me faleis dela mais; não
quero nela mais pensar, isso me faz muito mal. Adeus.
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