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Allan Kardec
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Revista Espírita
Jornal de Estudos Psicológicos
publicada sob a direção de Allan Kardec

junho de 1866

ESTUDO MORAL

Lê-se no Salut public de Lyon, de 23 de fevereiro de 1866:

"A questão médico-legal de monomania homicida e de monomania incendiaria, diz o Moniteur judiciaire, foi e será, conforme toda a probabilidade, freqüentemente ainda agitada diante dos tribunais e cortes criminais.

"A propósito de monomania incendiaria, podemos citar uma criança de Lyon, hoje com a idade de quatro anos e meio, filho de honestos operários de seda, domiciliados na Guillotière, que parece levar nele, em último grau, o instinto do incêndio. Apenas seus olhos se abriram à luz, a visão das chamas parecia alegrá-lo. Aos dezoito meses, sentia prazer em fazer jorrar o fogo de um fósforo químico; aos dois anos, metia o fogo nos quatro cantos de uma enxerga, e aniquilava em parte o modesto mobiliário de seus pais. Hoje, com as reprimendas que lhe são feitas, não responde senão pelas ameaças de incêndio, e na semana última ainda, ele tentava, com ajuda de alguns ramos de palha e de diversos pedaços de papel, colocar fogo na alcova onde dormem seu pai e sua mãe.

"Deixamos aos especialistas o cuidado de procurarem as causas de uma tal monomania.

Se ela não desaparece com a idade, que sorte estará reservada ao infeliz que por ela é atingido?"

 

O autor do artigo diz que deixa aos especialistas o cuidado de procurarem as causas de uma tal monomania. De quais especialistas quer falar? É dos médicos em geral, dos alienistas, dos sábios, dos frenologistas, dos filósofos ou dos teólogos? Cada um deles encara a questão do ponto de vista de suas crenças materialistas, espiritualistas ou religiosas.

Os materialistas, negando todo princípio inteligente, distinto da matéria, incontestavelmente, são os menos próprios para resolvê-la de maneira completa. Fazendo do organismo a única fonte das faculdades e das inclinações, fazem do homem uma máquina movida fatalmente por uma força irresistível, sem livre arbítrio e, conseqüentemente, sem responsabilidade moral de seus atos. Com um tal sistema, todo criminoso pode se desculpar em sua constituição, que não dependeu dele fazê-la melhor. Numa sociedade onde esse princípio fosse admitido como verdade absoluta, não haveria culpados moralmente falando, e seria tão ilógico citar em juízo os homens quanto os animais.

Não falamos aqui senão das conseqüências sociais das doutrinas materialistas; quanto às suas impossibilidades em resolver todos os problemas morais, ela está suficientemente demonstrada.

Dir-se-á, com alguns, que as inclinações são hereditárias como os vícios de constituição?

Ser-lhes-iam opostos os inumeráveis fatos onde os pais mais virtuosos têm filhos instintivamente viciosos, e reciprocamente. Naquele que nos ocupa, é notório que a criança não herdou sua monomania incendiaria de nenhum membro de sua família.

Os espiritualistas reconhecerão, sem dúvida, que esse pendor prende-se a uma imperfeição da alma ou Espírito, mas nisso não serão menos detidos por dificuldades insuperáveis com os únicos elementos que se possuem até este dia; e a prova que os dados atuais da ciência, da filosofia e da teologia não fornecem nenhum princípio sólido para a solução dos problemas desta natureza, é que deles não há um único que seja bastante evidente, bastante racional para reunir a maioria, e o que se tem está reduzido a opiniões individuais, todas divergentes umas das outras.

Os teólogos que admitem como ponto de dogma a criação da alma no nascimento de cada corpo são, talvez, os mais embaraçados para conciliar essas perversidades naturais com a justiça e a bondade de Deus. Segundo sua doutrina, eis, pois, uma criança criada com um instinto incendiado, votada, desde a sua formação, ao crime e a todas suas conseqüências para a vida presente e a vida futura! Como há crianças instintivamente boas e outras más, Deus criou, pois, almas boas e outras más? É a conseqüência lógica.

Por que essa parcialidade? Com a doutrina materialista o culpado se desculpa em seu organismo; com a da Igreja, nisso pode-se prender a Deus, dizendo que não é por sua culpa se ele o criou com defeitos.

É de admirar que haja pessoas que neguem Deus quando o mostram injusto e cruel em seus atos, parcial para com suas criaturas? É a maneira pela qual a maioria das religiões o representam que faz os incrédulos e os ateus. Se disso se tivesse sempre feito um quadro em todos os pontos conciliável com a razão, não haveria incrédulos; é por falta de poder aceitá-lo tal como o fazem, com as pequenezes e as paixões humanas que lhe emprestam, que tantas pessoas procuram fora dele a explicação das coisas.

Todas as vezes que a teologia, pressionada pela inexorável lógica dos fatos, se encontra num impasse, ela se esconde atrás destas palavras: "Mistério incompreensível!"

Pois bem! Cada dia vê-se levantar-se um canto do véu do que outrora era mistério, e a questão que nos ocupa é deste número.

Esta questão está longe de ser pueril, estar-se-ia em erro em ver nisso um fato isolado, ou, querendo-se, uma anomalia, uma bizarrice da Natureza sem conseqüência. Ela toca todas as questões de educação e de moralização da Humanidade, e, por isto mesmo, aos mais graves problemas de economia social. É procurando a causa primeira dos instintos e dos pendores inatos que se descobrirão os meios mais eficazes de combater os maus e de desenvolver os bons. Quando essa causa for conhecida, a educação possuirá a mais possante alavanca moralizadora que jamais teve.

Não se pode negar a influência do meio e do exemplo sobre o desenvolvimento dos bons e dos maus instintos, porque o contágio moral é tão manifesto quanto o contágio físico. No entanto, essa influência não é exclusiva, uma vez que se vêem seres perversos nas famílias mais honradas, ao passo que outros saem puros da lama. Há, pois, incontestavelmente, disposições naturais, e, duvidando-se disto, o fato que nos ocupa disso seria uma prova irrecusável. Assim, eis uma criança, que, antes de saber falar, se compraz com a visão da destruição pelo fogo; que, aos dois anos, incendeia voluntariamente um mobiliário, e que, aos quatro anos, compreende de tal modo esse fato, que responde às reprimendas por ameaças de incêndio.

Ó vós todos, médicos e sábios, que procurais com tanta avidez os menores casos patológicos insólitos, para deles fazer o assunto de vossas meditações, que não estudais com o mesmo cuidado esses fenômenos estranhos que podem, com razão, ser qualificados de patologia moral! Que não procurais vos dar conta disso, a descobrir-lhe a fonte! A Humanidade nisto ganharia ao menos tanto quanto à descoberta de uma rede nervosa.

Infelizmente, a maioria daqueles que não desdenham se ocupar dessas questões, o fazem partindo de uma idéia preconcebida à qual querem tudo sujeitar: o materialista às leis exclusivas da matéria, o espiritualista à idéia que se faz da natureza da alma segundo suas crenças. Antes de concluir, o mais sábio é de estudar todos os sistemas, todas as teorias, com imparcialidade, e de ver aquela que resolve o melhor e mais logicamente o maior número de dificuldades.

A diversidade das aptidões intelectuais e morais inatas, independentes da educação e de toda aquisição moral na vida presente, é um fato notório: é o conhecido. Partindo desse fato para chegar ao desconhecido, diremos que se a alma é criada no nascimento do corpo, fica evidente que Deus criou almas de todas as qualidades. Ora, esta doutrina sendo irreconciliável com o princípio da soberana justiça, forçosamente, deve ser afastada.

Mas se a alma não é criada no nascimento do indivíduo, é que ela existia antes. Com efeito, é na preexistência da alma que se encontra a única solução possível e racional da questão e de todas as anomalias aparentes das faculdades humanas. As crianças que têm, instintivamente, aptidões transcendentes por uma arte ou uma ciência, que possuem certos conhecimentos sem tê-los aprendido, como os calculadores naturais, como aqueles aos quais a música parece familiar em nascendo; esses lingüistas natos, como uma senhora da qual teremos mais tarde ocasião de falar, que, aos nove anos, dava lições de grego e de latim aos seus irmãos, e aos doze anos lia e traduzia o hebraico, deveu aprender essas coisas em alguma parte; uma vez que não foi nesta existência, deve ter sido numa outra.

Sim, o homem já viveu, não uma vez, mas talvez mil vezes; em cada existência suas idéias se desenvolveram; adquiriu conhecimentos dos quais traz a intuição na existência seguinte e que o ajudam a adquiri-los novos. Ocorre o mesmo com o progresso moral. Os vícios dos quais se desfaz não reaparecem mais; aqueles que conservou se reproduzem até que deles esteja definitivamente corrigido.

Em uma palavra, o homem nasce aquilo que se fez ele mesmo. Aqueles que viveram mais, mais adquiriram e melhor aproveitaram, são mais avançados do que os outros; tal é a causa da diversidade dos instintos e das aptidões que se notam entre eles; tal é também a causa pela qual vemos sobre a Terra selvagens, bárbaros e homens civilizados. A pluralidade das existência é a chave de uma multidão de problemas morais, e foi por falta de ter conhecido esse princípio que tantas questões permaneceram insolúveis. Que se a admita somente a título de simples hipótese, querendo-se, e ver-se-ão todas as dificuldades se aplainarem.

O homem civilizado chegou a um ponto em que não se contenta mais com a fé cega; ele quer se dar conta de tudo, saber o por quê e o como de cada coisa; preferirá, pois, uma filosofia que explica àquela que não explica. De resto, a idéia da pluralidade das existências, como todas as grandes verdades, germina numa multidão de cérebros, fora do Espiritismo, e como ela satisfaz a razão, não está longe o tempo em que será colocada na classe das leis que regem a Humanidade.

Que diremos agora da criança que é o assunto deste artigo? Seus instintos atuais se explicam por seus antecedentes. Ela nasceu incendiaria, como outros nasceram poetas ou artistas, porque, sem nenhuma dúvida, foi incendiaria numa outra existência, e disto conservou o instinto.

Mas então, dir-se-á, se cada existência é um progresso, o progresso é nulo para ela nesta.

Não é uma razão. De seus instintos atuais, não é preciso concluir que o progresso seja nulo. O homem não se despoja subitamente de todas as suas imperfeições. Essa criança delas tinha outras, provavelmente, que se tornariam pior do que não o seriam hoje; ora, não tivesse avançado senão um passo, não tivesse mesmo senão o arrependimento e o desejo de se melhorar, isto seria sempre um progresso. Se esse instinto se manifesta nela de maneira tão precoce, é para chamar finalmente a atenção sobre as suas tendências, afim de que seus pais e aqueles que serão encarregados de sua educação cuidem de reprimi-las antes que elas se desenvolvam. Talvez ela mesma tenha pedido que assim fosse, e para nascer numa família honrada, pelo desejo de progredir.

É uma grande tarefa para seus pais, porque é uma alma desviada que lhe é confiada para conduzi-la ao caminho reto, e sua responsabilidade seria grande se não fizessem, para esse fim, tudo o que está em seu poder. Se seu filho fosse doente, cuidariam dele com solicitude; devem considerá-lo como atacado de uma doença moral grave que requer cuidados não menos assíduos.

Segundo todas essas considerações, cremos, sem vaidade, que os Espíritas são os melhores especialistas em semelhante circunstância, precisamente porque dedicam-se ao estudo dos fenômenos morais, e os apreciam, não segundo idéias pessoais, mas segundo as leis naturais.

Tendo esse fato sido apresentado à Sociedade de Paris, como assunto de estudo, a pergunta seguinte foi colocada aos Espíritos:

Qual é a origem do instinto incendiário precoce nesta criança, e quais seriam os meios de combatê-lo pela educação?

Quatro respostas concordantes foram dadas; não citaremos senão as duas seguintes.

* * *

 


(Sociedade de Paris, 13 de abril de 1866. - Médium, Sr. Br...)

I

Perguntais qual foi a existência dessa criança que mostra um pendor tão precoce para a destruição, e particularmente para o incêndio. Ah! seu passado é horrível e suas tendências atuais vos dizem bastante o que pôde fazer. Ela veio para expiar, e deve lutar contra seus instintos incendiários. É uma grande prova para seus pais, que estão constantemente sob o golpe de seus erros, e não sabem como reprimir esse funesto pendor.

O conhecimento do Espiritismo lhes seria um poderoso recurso, e Deus, em sua misericórdia, lhes concederá essa graça, porque é só por esse conhecimento que se pode esperar melhorar esse Espírito.

Essa criança é uma prova evidente da anterioridade da alma à encarnação presente.

Vós o vedes: esse estranho estado moral desperta a atenção e faz refletir. Deus se serve de todos os meios para vos fazer chegar ao conhecimento da verdade no que diz respeito à vossa origem, ao vosso progresso e ao vosso fim.

UM ESPÍRITO.

* * *

(Médium, senhorita Lat...)

II

O Espiritismo já desempenhou um grande papel em vosso mundo, mas o que vistes não é senão o prelúdio do que estais chamados a ver. Quando a ciência fica muda diante de certos fatos, e que a religião não pode mais resolvê-los, o Espiritismo vem lhes dar a solução. Quando a ciência falta aos vosso sábios, deixam a causa de lado, por falta de explicações suficientes. Em muitas circunstâncias, as luzes do Espiritismo lhes poderiam ser de um grande recurso, notadamente nesse caso de monomania incendiaria. Para eles, é um gênero de loucura, porque olham todas as monomanias como loucuras; está aí um grande erro. Aqui a medicina nada tem a fazer, cabe aos Espíritas agirem.

Não é admissível para vós que esse pendor à destruição pelo fogo não date senão da presente existência; é preciso remontar mais alto, e ver nas inclinações perversas dessa criança um reflexo de seus atos anteriores.

Ela é demais impelida por aqueles mesmos que foram suas vítimas, porque, para satisfazer sua ambição, não recuou nem diante do incêndio, nem diante do sacrifício daqueles que poderiam lhe fazer obstáculo. Em uma palavra, ele está sob a influência de Espíritos que ainda não o perdoaram os tormentos que lhes fez suportar. Eles esperam a vingança.

Ele tem por prova sair vitorioso da luta; mas Deus, em sua soberana justiça, colocou o remédio ao lado do mal; com efeito, esse remédio está em sua juventude e na boa influencia do meio onde está. Hoje a criança nada pode para o momento; cabe aos pais velar; mais tarde deverá vencer ela mesma, e enquanto ela não for senhora da posição, a luta se perpetuará. Seria preciso que fosse educada nos princípios do Espiritismo; ali hauriria a força, e, compreendendo a sua prova, teria mais vontade para dela triunfar.

Bons Espíritos, encarregados de esclarecer os encarnados, voltai vossos olhares para esse pobre pequeno ser cujo castigo é justo; ide a ele, ajudai-o, dirigi seus pensamentos para o Espiritismo, a fim de que triunfe mais depressa, e que a luta termine para a sua vantagem.

UM ESPÍRITO.

Revista Espírita
Jornal de Estudos Psicológicos
publicada sob a direção de Allan Kardec

junho de 1866


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