Revista Espírita
Jornal de Estudos Psicológicos
ANO IX AGOSTO DE 1866 Nº 8
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Algumas vezes, sobre os homens e as
coisas, há opiniões que se acreditam e passam ao estado
de coisas aceitas, por mais errôneas que sejam, porque se acha
mais fácil as aceitar completamente acabadas. Assim acontece
com Maomé e sua religião, da qual quase que só
se conhece o lado legendário. Além disso, o antagonismo
das crenças, quer por espírito de partido, quer por ignorância,
empenhou-se em fazer ressaltar os pontos mais acessíveis à
crítica, muitas vezes deixando intencionalmente na sombra as
partes mais favoráveis. Quanto ao público imparcial e
desinteressado, é preciso dizer em sua defesa que faltaram elementos
indispensáveis para julgar por si mesmo. As obras que o poderiam
ter esclarecido, escritas numa linguagem apenas conhecida de alguns
cientistas, eram-lhe inacessíveis; e como, em última análise,
não havia para ele nenhum interesse direto, acreditou sob palavra
naquilo que lhe diziam, sem perguntar mais. Disto resultou que sobre
o fundador do islamismo se fizeram idéias muitas vezes falsas
ou ridículas, baseadas em preconceitos, que não encontravam
nenhum corretivo na discussão.
Os trabalhos perseverantes e conscienciosos de alguns sábios
orientalistas modernos, tais como Caussin de Perceval, na França,
o doutor W. Muir, na Inglaterra, G. Weil e Sprenger, na Alemanha, hoje
permitem encarar a questão sob sua verdadeira luz (15).
Graças a eles, Maomé nos aparece completamente diverso
dos contos populares. O lugar considerável que sua religião
ocupa na Humanidade e sua influência política hoje fazem
deste estudo uma necessidade. Durante muito tempo a diversidade das
religiões foi uma das principais causas de antagonismo entre
os povos. No momento em que elas têm uma tendência manifesta
para se aproximarem, fazendo desaparecerem as barreiras que as separam,
é útil conhecer, em suas crenças, o que pode favorecer
ou retardar a aplicação do grande princípio de
fraternidade universal. De todas as religiões, o islamismo é
a que, à primeira vista, parece encerrar os maiores obstáculos
a essa aproximação. Desse ponto de vista, como se vê,
o assunto não poderia ser indiferente aos espíritas, razão
pela qual julgamos dever tratá-lo aqui.
(15) O Sr. Barthélemy
Saint-Hilaire, do Instituto, resumiu esses trabalhos numa interessante
obra, intitulada: Maomé e o Alcorão. 1 vol. In-12. –
Preço: 3 fr. 50 c. Livraria Didier. - (Nota de Kardec, do texto
original)
Sempre se julga
mal uma religião quando se toma como ponto de partida exclusivo
suas crenças pessoais, porque então é difícil
justificar-se um sentimento de parcialidade na apreciação
dos princípios. Para lhe compreender o forte e o fraco é
preciso vê-la de um ponto de vista mais elevado, abarcar o conjunto
de suas causas e de seus efeitos. Se nos reportarmos ao meio onde ela
surgiu, aí encontraremos quase sempre, se não uma justificativa
completa, ao menos uma razão de ser. É necessário,
sobretudo, penetrar-se do pensamento inicial do fundador e dos motivos
que o guiaram. Longe de nós a intenção de absolver
Maomé de todas as suas faltas, nem sua religião de todos
os erros que chocam o mais vulgar bom-senso. Mas a bem da verdade devemos
dizer que também seria pouco lógico julgar essa religião
conforme o que dela fez o fanatismo, como o seria julgar o Cristianismo
segundo a maneira por que alguns cristãos o praticam. É
bem certo que, se os muçulmanos seguissem em espírito
o Alcorão, que o Profeta lhes deu por guia, seriam, sob muitos
aspectos, completamente diferentes do que são. Entretanto esse
livro, apesar de tão sagrado para eles, que só o tocam
com respeito, que o lêem e relêem sem cessar, que até
o sabem de cor os mais fervorosos, quantos o compreendem? Comentam-no,
mas do ponto de vista das idéias preconcebidas, de cujo afastamento
fariam um caso de consciência, aí não vendo, portanto,
senão o que querem ver. Aliás, a linguagem figurada permite
aí encontrar tudo o que se quer, e os sacerdotes, que lá
como alhures, governam pela fé cega, não buscam descobrir
o que lhes pudesse embaraçar. Não é, pois, junto
aos doutores da lei que se deve inquirir do espírito da lei de
Maomé. Os cristãos também têm o Evangelho,
muito mais explícito que o Alcorão, como código
de moral, o que não impede que em nome desse mesmo Evangelho,
que manda amar até os inimigos, tenham torturado e queimado milhares
de vítimas, e que de uma lei toda de caridade tenham feito uma
arma de intolerância e de perseguição. Pode-se exigir
que povos ainda semibárbaros façam uma interpretação
mais justa de suas escrituras sagradas do que o fazem os cristãos
civilizados?
Para apreciar a obra de Maomé é preciso remontar à
sua fonte, conhecer o homem e o povo ao qual ele dera a missão
de regenerar, e só então se compreende que, para o meio
onde ele vivia, seu código religioso era um progresso real. Lancemos,
primeiro, uma vista d’olhos sobre a região.
Em tempos imemoriais a Arábia era povoada por uma multidão
de tribos, quase todas nômades, e perpetuamente em guerra umas
contra as outras, suprindo pela pilhagem a pouca riqueza que proporcionava
um trabalho penoso, sob um clima abrasador. Os rebanhos eram seus principais
recursos; algumas tribos se davam ao comércio, que era feito
por caravanas, partindo anualmente do Sul, para ir à Síria
ou à Mesopotâmia. Sendo quase inacessível o centro
dessa quase ilha, as caravanas pouco se afastavam do litoral; as principais
seguiam o Hidjaz, região que forma, nas margens do mar Vermelho,
estreita faixa de quinhentas léguas de extensão, separada
do centro por uma cadeia de montanhas, prolongamento das da Palestina.
A palavra árabe Hidjaz significa barreira e se dizia
da cadeia de montanhas que ladeia essa região e a separa do resto
da Arábia. O Hidjaz e o Iêmen ao sul, são as partes
mais férteis; o centro não passa de um vasto deserto.
Essas tribos haviam estabelecido mercados para onde se dirigiam de todas
as partes da Arábia; lá se regulavam os negócios
comuns; as tribos inimigas trocavam os seus prisioneiros de guerra e
muitas vezes decidiam as suas diferenças por arbitragem. Coisa
singular, essas populações, por mais bárbaras que
fossem, apaixonavam-se pela poesia. Nesses lugares de reunião
e durante os intervalos de lazer, deixados pelos cuidados dos negócios,
havia disputa entre os poetas mais hábeis de cada tribo; o concurso
era julgado pelos assistentes e, para uma tribo, era uma grande honra
conquistar a vitória. As poesias de mérito excepcional
eram transcritas em letras de ouro e pregadas nos muros sagrados da
Caaba, em Meca, de onde lhes veio o nome de Moudhahbat, ou
poemas dourados.
Como para ir a esses mercados anuais e deles voltar com segurança
era preciso certo tempo, havia quatro meses do ano em que os combates
eram interditos e nos quais não se podia perturbar as caravanas
e os viajantes. Combater durante esses meses reservados era olhado como
um sacrilégio, que provocava as mais terríveis represálias.
Os pontos de estação das caravanas, que paravam nos lugares
onde encontravam água e árvores, tornaram-se centros onde,
pouco a pouco, formaram-se cidades, das quais as duas principais, no
Hidjaz, são Meca e Yathrib, hoje Medina.
A maior parte dessas tribos pretendia descender de Abraão, razão
por que esse patriarca era tido em grande honra entre eles. Sua língua,
por suas relações com o hebraico, atestava, com efeito,
uma comunidade de origem entre o povo árabe e o povo judeu. Mas
não parece menos certo que o sul da Arábia tenha tido
seus habitantes nativos.
Entre essas populações havia uma crença, tido como
certa, de que a famosa fonte de Zemzem, no vale do Meca, era a que tinha
feito jorrar o anjo Gabriel, quando Agar, perdida no deserto, ia perecer
de sede com seu filho Ismael. A tradição referia igualmente
que Abraão, tendo vindo ver seu filho exilado, havia construído
com suas próprias mãos, não longe dessa fonte,
a Caaba, casa quadrada, de nove côvados de altura por
trinta e dois de comprimento e vinte e dois de largura (16).
Esta casa, religiosamente conservada, tornou-se um lugar de grande devoção,
que faziam um dever visitar e que foi transformada em templo. As caravanas
aí paravam naturalmente e os peregrinos aproveitavam sua companhia
para viajar com mais segurança. Foi assim que a peregrinação
a Meca existia desde tempos imemoriais. Maomé não fez
senão consagrar e tornar obrigatório um uso estabelecido.
Para tanto teve um objetivo político, que veremos mais tarde.
(16) O côvado
equivale a cerca de 45 centímetros. É uma medida natural
das mais antigas, que tinha por base a distância entre o cotovelo
e a extremidade dos dedos. (Nota de Kardec, do texto original)
Num dos ângulos externos do templo
estava incrustada a famosa pedra negra, trazida dos céus,
dizem, pelo anjo Gabriel, para marcar o ponto onde deviam começar
os giros em que os peregrinos deviam fazer sete vezes ao redor da Caaba.
Pretendem que, na origem, esta pedra era de uma brancura deslumbrante,
mas que os toques dos pecadores a enegreceram. No dizer dos viajantes
que a viram, ela não tem mais de seis polegadas de altura por
oito de comprimento. Pareceria um simples pedaço de basalto,
ou talvez um aerólito, o que explicaria sua origem celeste, segundo
as crenças populares.
Construída por Abraão, a Caaba não tinha porta
que a fechasse e era ao nível do solo. Destruída pela
irrupção de uma torrente lá pelo ano 150 da era
cristã, foi reconstruída e elevada acima do solo, para
abrigá-la de semelhantes acidentes. Cerca de cinqüenta anos
mais tarde, um chefe de tribo do Iêmen aí pôs uma
cobertura de estofos preciosos e colocou uma porta com fechadura para
pôr em segurança as dádivas valiosas acumuladas
incessantemente pela piedade dos peregrinos.
A veneração dos árabes pela Caaba e o território
que a circundava era tão grande que não tinham ousado
aí construir habitações. Essa área tão
respeitada, chamada Haram, compreendia todo o vale do Meca, cuja circunferência
é de cerca de quinze léguas. A honra de guardar esse templo
venerado era muito cobiçada; as tribos a disputavam e o mais
das vezes essa atribuição era um direito de conquista.
No século quinto, Cossayy, chefe da tribo dos coraicitas, quinto
antepassado de Maomé, tendo-se tornado senhor do Haram e tendo
sido investido do poder civil e religioso, mandou construir seu palácio
ao lado da Caaba, permitindo aos de sua tribo que ali se estabelecessem.
Assim foi fundada a cidade de Meca. Parece ter sido ele o primeiro que
colocou uma cobertura de madeira na Caaba. A Caaba está hoje
na área de uma mesquita, e Meca é uma cidade de aproximadamente
quarenta mil habitantes, depois de ter tido, ao que se diz, cem mil.
No princípio, a religião dos árabes consistia na
adoração de um Deus único, a cujas vontades o homem
deve submeter-se completamente. Essa religião, que era a de Abraão,
chamava-se Islã e os que a professavam diziam-se muçulmanos,
isto é, submissos à vontade de Deus. Mas, pouco a pouco
o puro Islã degenerou em grosseira idolatria; cada tribo teve
os seus deuses e os seus ídolos, que defendia com exagero pelas
armas, para provar a superioridade de seu poder. Muitas vezes estas
foram, entre outras, as causas ou o pretexto de guerras longas e encarniçadas.
A fé de Abraão, apesar do respeito que conservavam por
sua memória, havia desaparecido entre esses povos, ou pelo menos
tinha sido de tal modo desfigurada que na realidade não mais
existia. A veneração pelos objetos considerados sagrados
tinha caído no mais absurdo fetichismo; o culto da matéria
tinha substituído o do espírito; atribuía-se um
poder sobrenatural aos objetos mais vulgares consagrados pela superstição,
a uma imagem, a uma estátua. Tendo o pensamento abandonado o
princípio pelo seu símbolo, a piedade não passava
de uma série de práticas exteriores minuciosas, das quais
a menor infração era encarada como um sacrilégio.
Contudo, ainda se encontravam em certas tribos alguns adoradores do
Deus único, homens piedosos que praticavam a mais inteira submissão
à sua vontade suprema e repeliam o culto dos ídolos; eram
chamados Hanyfes. Eram os verdadeiros muçulmanos, os
que tinham conservado a fé pura do Islã; mas eram pouco
numerosos e sem influência sobre o espírito das massas.
Desde muito tempo colônias judias se haviam estabelecido no Hydjaz
e tinham conquistado um certo número de prosélitos ao
judaísmo, principalmente entre os hanyfes. O Cristianismo também
aí teve os seus representantes e propagadores nos primeiros séculos
de nossa era, mas nem uma nem outra dessas duas crenças aí
produziram raízes profundas e duráveis. A idolatria tinha
se tornado a religião dominante; convinha melhor, por sua diversidade,
à independência turbulenta e à divisão infinita
das tribos, que a praticavam com o mais violento fanatismo. Para triunfar
dessa anarquia religiosa e política, era preciso um homem de
gênio, capaz de impor-se por sua energia e firmeza, bastante hábil
para participar dos costumes e do caráter desses povos, e cuja
missão fosse revelada aos seus olhos pelo prestígio de
suas qualidades de profeta. Este homem foi Maomé.
Maomé nasceu em Meca no dia 27 de agosto de 570 d.C., no ano
dito do elefante. Não era, como se crê vulgarmente, um
homem obscuro. Ao contrário, pertencia a uma família poderosa
e considerada da tribo dos coraicitas, uma das mais importantes da Arábia,
e a que então dominava em Meca. Fazem-no descender em linha reta
de Ismael, filho de Abraão e de Agar. Seus últimos antepassados,
Cossayy, Abd-Menab, Hachim e Abdel-Moutalib, seu avô, se haviam
ilustrado por eminentes qualidades e altas funções que
tinham desempenhado. Sua mãe, Amina, era de nobre família
coraicita e descendia também de Cossayy. Tendo seu pai Abd-Allah
morrido dois meses antes de seu nascimento, ele foi educado com muita
ternura por sua mãe, que o deixou órfão com a idade
de seis anos; depois por seu avô Abd-el-Moutalib, que se afeiçoou
muito a ele e se comprazia muitas vezes em lhe predizer altos destinos,
mas que, ele próprio, morreu dois anos depois.
Não obstante a posição que tinha ocupado sua família,
Maomé passou a infância e a juventude num estado vizinho
ao da miséria; sua mãe lhe havia deixado por toda herança
um rebanho de carneiros, cinco camelos e uma fiel escrava negra, que
o havia cuidado e pela qual ele conservou sempre um vivo apego. Depois
da morte de seu avô, foi acolhido pelos tios, cujos rebanhos pastoreou
até a idade de vinte anos; acompanhou-os também em suas
expedições guerreiras contra outras tribos; mas, sendo
de humor suave e pacífico, nelas não tomava parte ativa,
sem, contudo, fugir ou temer o perigo, limitando-se a ir apanhar suas
flechas. Quando chegou ao apogeu da glória, gostava de lembrar
que Moisés e Davi, ambos profetas, tinham sido pastores como
ele.
Tinha o espírito meditativo e sonhador; seu caráter, de
uma solidez e maturidade precoces, aliados a uma extrema retidão,
a um perfeito desinteresse e a costumes irrepreensíveis, lhe
granjearam tal confiança da parte de seus companheiros que o
designavam pelo sobrenome de El-Amin, “o homem seguro,
o homem fiel.” E, conquanto jovem e pobre, convocavam-no às
assembléias da tribo para os negócios mais importantes.
Fazia parte de uma associação formada entre as principais
famílias coraicitas, tendo em vista prevenir as desordens da
guerra, proteger os fracos e lhes fazer justiça. Vangloriava-se
de ter concorrido para isto e, nos últimos anos de sua vida,
sempre se via ligado pelo juramento que, neste sentido, havia prestado
na mocidade. Dizia que estava pronto a responder ao apelo que lhe fizesse
o homem mais obscuro em nome desse juramento, e que não queria,
pelos mais belos camelos da Arábia, faltar à fé
que jurara. Por esse juramento os associados juravam, diante de uma
divindade vingadora, que tomariam a defesa dos oprimidos e se bateriam
pela punição dos culpados enquanto houvesse uma gota de
água no oceano.
Quanto ao físico, Maomé era fortemente constituído
e de estatura pouco acima da média; a cabeça muito grande;
a fisionomia, marcada de suave gravidade, era agradável sem ser
bela e transpirava calma e tranqüilidade.
Com a idade de vinte e cinco anos casou-se com sua prima Cadija, rica
viúva, no mínimo quinze anos mais velha que ele, cuja
confiança havia conquistado pela inteligente probidade que desenvolvera
na condução de uma de suas caravanas. Era uma mulher superior.
Essa união, que durou vinte e quatro anos e só terminou
pela morte de Cadija, aos sessenta e quatro anos, foi constantemente
feliz. Maomé tinha, então, quarenta e nove anos e essa
perda lhe causou profunda dor.
Depois da morte de Cadija seus costumes mudaram. Desposou várias
mulheres; teve doze ou treze em casamentos legítimos e, ao morrer,
deixou nove viúvas. Incontestavelmente isto foi um erro capital,
cujas lamentáveis conseqüências veremos mais tarde.
Até os quarenta anos sua vida pacífica nada oferece de
extraordinário. Só um fato o tirou um instante da obscuridade;
tinha, então, trinta e cinco anos. Os coraicitas resolveram reconstruir
a Caaba, que ameaçava desabar. Só com muito trabalho se
apaziguaram, pela repartição dos trabalhos, as contendas
suscitadas pela rivalidade das famílias que nela queriam participar.
Esses conflitos ressurgiram com extrema violência quando se tratou
de recolocar a famosa pedra negra. Ninguém queria ceder seu direito,
os trabalhos tinham sido interrompidos e de todos os lados corriam às
armas. Por proposta do decano concordaram em aceitar a decisão
da primeira pessoa que entrasse na sala das deliberações:
foi Maomé. Logo que o viram, cada um gritou: “EL-Amin!
El-amin! o homem seguro e fiel.” E esperavam o seu julgamento.
Por sua presença de espírito resolveu a dificuldade. Tendo
lançado o manto no chão, nele pôs a pedra e pediu
a quatro dos principais chefes facciosos que o tomassem, cada um por
uma ponta, e o levantassem, todos juntos, até à altura
que a pedra devia ocupar, isto é, a quatro ou cinco pés
acima do solo. Então a tomou e a colocou com suas próprias
mãos. Os assistentes se declararam
satisfeitos e a paz foi restabelecida.
Maomé gostava de passear sozinho nos arredores de Meca e, anualmente,
durante os meses sagrados de trégua, retirava-se para o monte
Hira, numa gruta estreita, onde se entregava à meditação.
Tinha quarenta anos quando, num de seus retiros, teve uma visão
durante o sono. O anjo Gabriel lhe apareceu, mostrando-lhe um livro
e ordenando que o lesse. Três vezes Maomé resistiu a essa
ordem, e só para escapar ao constrangimento exercido sobre ele
é que consentiu em o ler. Ao despertar disse ter sentido “que
um livro tinha sido escrito em seu coração.” O sentido
dessa expressão é evidente; significa que havia tido a
inspiração de um livro. Mais tarde, porém, ela
foi tomada ao pé da letra, como muitas vezes acontece com as
coisas ditas em linguagem figurada.
Um outro fato prova a que erros de interpretação podem
conduzir a ignorância e o fanatismo. Em algum lugar do Alcorão
diz Maomé: “Não abrimos teu coração
e não tiramos o fardo de teus ombros?” Estas palavras,
relacionadas com um acidente ocorrido a Maomé quando era criança,
deram lugar à fábula, acreditada entre os crentes e ensinada
pelos sacerdotes como um fato miraculoso, de que dois anjos abriram
o ventre do menino e tiraram de seu coração uma mancha
negra, sinal do pecado original. Deve-se acusar Maomé por esses
absurdos, ou os que não o compreenderam? Dá-se o mesmo
com uma imensidade de contos ridículos, sobre os quais o acusam
de ter apoiado sua religião. Eis por que não vacilamos
em dizer que um cristão esclarecido e imparcial está em
melhores condições de dar uma sã interpretação
do Alcorão do que um muçulmano fanático.
Seja como for, Maomé foi profundamente perturbado em sua visão,
que se apressou a contar à sua mulher. Tendo voltado ao monte
Hira, presa da mais viva agitação, julgou-se possuído
por Espíritos malignos e, para escapar ao mal que temia, ia precipitarse
do alto de um rochedo, quando uma voz, vinda do céu, se fez ouvir
e lhe disse: “Ó Maomé! tu és o enviado de
Deus; sou o anjo Gabriel.” Então, levantando os olhos,
viu o anjo sob forma humana, desaparecendo, pouco a pouco, no horizonte.
Esta nova visão não fez senão aumentar a sua perturbação;
comunicou-a a Cadija, que se esforçou por o acalmar; mas, pouco
segura de si mesma, foi procurar seu primo Varaka, ancião afamado
por sua sabedoria e convertido ao Cristianismo, que lhe disse: “Se
o que acabas de dizer-me é verdade, teu marido foi visitado pelo
grande Nâmous, que outrora visitou Moisés; ele
será o profeta deste povo. Anunciai a ele, e que se tranqüilize.”
Algum tempo depois Varaka, tendo encontrado Maomé, fez que lhe
contasse suas visões e lhe repetisse as palavras que havia dito
à sua mulher, acrescentando: “Tratar-te-ão como
impostor; expulsar-te-ão; combater-te-ão violentamente.
Que eu possa viver até essa hora para te assistir nessa luta!”
O que resulta deste e de muitos outros fatos é que a missão
de Maomé não foi um cálculo premeditado de sua
parte; estava confirmada por outros, mas ainda não o estava por
ele; demorou muito tempo para persuadir-se disto; mas desde que o ficou,
tomou-a muito a sério. Para ele próprio se convencer,
desejava uma nova aparição do anjo que, segundo uns, demorou
dois anos e, segundo outros, seis meses. É a esse intervalo de
incerteza e de hesitação que os muçulmanos chamam
o fitreh. Durante todo esse tempo seu espírito foi presa
de perplexidades e dos mais vivos temores. Parecia-lhe que ia perder
a razão, e era também a opinião de alguns que o
cercavam. Era sujeito a desfalecimentos e síncopes, que os autores
modernos atribuíram, sem outras provas além de sua opinião
pessoal, a ataques de epilepsia, e que antes poderiam ser o efeito de
um estado extático, cataléptico ou sonambúlico
espontâneo. Nesses momentos de lucidez extracorpórea, muitas
vezes se produziam, como se sabe, fenômenos estranhos, dos quais
o Espiritismo se dá conta perfeitamente. Aos olhos de certa gente,
ele devia passar por louco; outros viam nesses fenômenos, para
eles singulares, algo de sobrenatural, que colocava o homem acima da
Humanidade. “Quando se admite a ação da Providência
nos negócios humanos, diz o Sr. Barthélemy Saint-Hilaire,
não se pode deixar de a encontrar, também, nessas inteligências
dominadoras que aparecem de longe em longe para esclarecer e conduzir
o restante dos homens.”
O Alcorão não é uma obra escrita por Maomé,
com a cabeça fria e de maneira continuada, mas o resumo feito
por seus amigos das palavras que pronunciava quando estava inspirado.
Nesses momentos, dos quais não era senhor, ele caía num
estado extraordinário e muito assustador; o suor corria-lhe da
fronte; seus olhos tornavam-se vermelhos de sangue, soltava gemidos
e, no mais das vezes, a crise terminava por uma síncope que durava
mais ou menos tempo, o que por vezes lhe acontecia em meio à
multidão, e mesmo quando montado em seu camelo, tanto quanto
em casa. A inspiração era irregular e instantânea,
e ele não podia prever o momento em que seria dominado.
Segundo o que hoje conhecemos desse estado por uma multidão de
exemplos análogos, é provável que, sobretudo no
princípio, ele não tivesse consciência do que dizia,
e que se suas palavras não tivessem sido recolhidas, teriam ficado
perdidas; mais tarde, porém, quando tomou a sério seu
papel de reformador, é evidente que falava mais com conhecimento
de causa e misturasse às inspirações o produto
de seus próprios pensamentos, conforme os lugares e as circunstâncias,
as paixões ou os sentimentos que o agitavam, tendo em vista o
objetivo que queria atingir, acreditando, talvez de boa-fé, falar
em nome de Deus.
Esses fragmentos isolados, recolhidos em diversas épocas, em
número de 114, formam no Alcorão outros tantos capítulos
chamados suratas; ficaram esparsos durante sua vida, e só
depois de sua morte foram reunidos oficialmente num corpo de doutrina,
pelos cuidados de Abu-Becr e de Omar. Dessas inspirações
súbitas, recolhidas à medida que ocorriam, resultou uma
falta absoluta de ordem e de método; os mais disparatados assuntos
aí são tratados a esmo, muitas vezes na mesma surata,
e apresentam tal confusão e tão numerosas repetições
que uma leitura seguida é penosa e fastidiosa para quem quer
que não seja um fiel.
Segundo a crença vulgar, tornada artigo de fé, as páginas
do Alcorão foram escritas no céu e trazidas prontas a
Maomé pelo anjo Gabriel, porque numa passagem se diz: “Teu
Senhor é poderoso e misericordioso, e o Alcorão é
uma revelação do Senhor do Universo. O Espírito
fiel (o anjo Gabriel) o trouxe do Alto e o depositou em teu coração,
ó Maomé, para que fosses apóstolo.” Maomé
se exprime da mesma maneira em relação ao livro de Moisés
e ao Evangelho; diz (surata III, versículo 2): “Ele fez
descer do Alto o Pentateuco e o Evangelho, para servir de direção
aos homens”, querendo dizer por isso que esses dois livros tinham
sido inspirados por Deus a Moisés e a Jesus, como lhe havia inspirado
o Alcorão.
Suas primeiras prédicas foram secretas durante dois anos, e nesse
intervalo ele se ligou a uma centena de adeptos entre os membros de
sua família e seus amigos. Os primeiros convertidos à
nova fé foram Cadija, sua mulher; Ali, seu filho adotivo, de
dez anos; Zeid, Varaka e Abu-Becr, seu mais íntimo amigo, que
devia ser o seu sucessor. Tinha quarenta e dois anos quando começou
a pregar publicamente e desde esse momento realizou-se a predição
que lhe havia feito Varaka. Sua religião, fundada na unidade
de Deus e na reforma de certos abusos, sendo a ruína da idolatria
e dos que dela viviam, os coraicitas, guardas da Caaba e do culto nacional,
levantaram-se contra ele. A princípio o trataram de louco; depois
o acusaram de sacrilégio; amotinaram o povo; perseguiram-no e
a perseguição tornou-se tão violenta que, por duas
vezes, seus partidários tiveram de buscar refúgio na Abissínia.
Entretanto, aos ultrajes ele sempre opunha a calma, o sangue-frio e
a moderação. Sua seita crescia e seus adversários,
vendo que não a podiam reduzir pela força, resolveram
desacreditá-la pela calúnia. A zombaria e o ridículo
não lhe foram poupados. Como se viu, os poetas eram numerosos
entre os árabes; manejavam a sátira habilmente e seus
versos eram lidos com avidez; era o meio empregado pela crítica
mal-intencionada e não deixavam de a empregar contra ele. Como
ele resistisse a tudo, seus inimigos, enfim, recorreram aos complôs
para o matar e ele só escapou pela fuga ao perigo que o ameaçava.
Foi então que se refugiou em Yathrib, depois chamada
Medina (Medinet-en-Nabi, cidade do Profeta), no ano
622, e é dessa época que data a Hégira,
ou era dos muçulmanos. Ele tinha mandado antecipadamente, a essa
cidade, em pequenas tropas para não provocar suspeitas, todos
os seus partidários de Meca, retirando-se por último,
com Abu-Becr e Ali, seus discípulos mais devotados, quando soube
que os outros estavam em segurança.
Dessa época data também para Maomé uma nova fase
em sua existência; de simples profeta que era, foi constrangido
a fazer-se guerreiro.
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Fonte:
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