Allan Kardec

>   Mais uma carta de Allan Kardec a Amélie Boudet

Allan Kardec
>  Mais uma carta de Allan Kardec a Amélie Boudet

 

 

Revista espírita : periódico de estudos psicológicos. ano 4, 1861.
Anexo especial com os originais fotografados da rara Carta de Allan Kardec a sua esposa Amélie-Gabrielle Boudet.
Lyon, 20/9/1861.


Tradução, do francês para o espanhol, de Enrique Eliseo Baldovino.
Nota explicativa do tradutor n. 399 sobre o Manuscrito, com transcrição e publicação da Carta , e acerca dos mártires de Lyon. Buenos Aires, CEA; Brasília, DF: Edicei.


Lyon, 20 de setembro de 1861. Minha querida Amélie: Escrevo-lhe de novo sob a impressão da emoção da jornada de ontem; são esses eventos que deixam marcas inesquecíveis na vida. Como lhe dizia, era o dia do banquete: havia mais de 160 pessoas, das quais muitas vieram me cumprimentar e abraçar; outras conseguiram falar comigo, e creio que estavam tão felizes como se houvessem falado com um rei; um pouco mais e teria alguém que tivesse ousado beijar a barra do meu casaco, tão grande era o seu entusiasmo.

Ponho-me a pensar se os discursos foram expressivos. O meu tem produzido uma sensação profunda, assim como o de Erasto, que todos aplaudiram e apreciaram com justiça! (Fui forçado a interromper a minha carta e somente pude retomá-la hoje, sábado.)

Voltando ao banquete, era algo admirável e, ao mesmo tempo, comovedor: o delegado de Polícia, que ali fora convidado, chorou de emoção e apertou minhas mãos com efusão. Após os meus discursos, falei abundantemente durante quase três quartos de hora, sem preparativos, sem uma intenção premeditada e sem sentir-me nem um pouco intimidado perante essa numerosa assembleia, formada também por uma assistência que veio especialmente de Mâcon e de outros lugares.

Ontem, sexta-feira, visitei Grupos em diferentes pontos da cidade, distantes uns dos outros em mais de uma légua; lá aconteceu a mesma acolhida, o mesmo entusiasmo. Falei desde as 10 e meia da manhã até às 9 horas da noite, excetuando a interrupção dos trajetos; voltei extenuado.

Esta manhã fui tomar um banho, o que me fez muito bem. Esta noite vou a outra reunião, porém, mais aristocrática, onde ainda terei muitas coisas a dizer.

Já não são mais por centenas que se contam os espíritas em Lyon, senão por milhares. Em toda parte há médiuns e, entre os que tenho visto, existem muito bons. Em um dos Grupos encontrei um guarda municipal que era muito bom médium e muito bom espírita. Depois tinha um ferreiro, de grande constituição física, igualmente muito bom médium: homem sério, inteligente e que, entre os seus, inspira a numerosos adeptos; ele é o chefe de um Grupo em Vaise e, como eu não pude ir lá, ele veio cá – com vários confrades seus – a uma das reuniões na cidade. Em resumo, encontro aqui um progresso que estava longe de esperar e, o que há de particular, é que em toda parte se dedicam ao Espiritismo sob um ponto de vista sério. Todas as vezes que abordei o tema das experiências físicas, notei que isto interessava pouco; mas todos prestavam atenção quando eram tratadas as consequências morais e filosóficas. Minha viagem terá indiscutivelmente uma imensa repercussão e fará um grande bem, inclusive perante as autoridades. Só o partido negro pode estar horrivelmente contrariado!

Estive ocupado de tal modo que não tive tempo para visitar os meus conhecidos. Tinha a intenção de partir amanhã, domingo, mas como desejo ver o Sr. e a Sr.a Rigolet, irei à casa de campo deles, o que transfere minha partida para a segunda-feira. Chegarei a Paris na terça-feira ao meio-dia.

Teu muito amado,

HLDR.” (1)

 

Comentários de Enrique Eliseo Baldovino

a) Observamos que a Carta foi escrita durante dois dias, em 20 (sexta-feira) e em 21 de setembro de 1861 (sábado), já que Allan Kardec interrompeu a missiva por motivos que desconhecemos. Imaginamos que tenha sido pelo grande cansaço físico, uma vez que falou no dia anterior das 10h30 às 21h ante diversos públicos, viajando constantemente de um Grupo a outro por Lyon e arredores. (Entre Paris e Lyon há uma distância aproximada de 400 km.)

b) São muito importantes as conclusões do eminente codificador sobre os diversos assistentes aos seus discursos, público de todas as camadas sociais – principalmente da classe operária –, que se davam as mãos sob a égide do Espiritismo. Observemos também o destaque de Kardec ao se referir às experiências ou manifestações físicas: notou que isto interessava pouco; o interesse maior estava na questão moral e filosófica, ou seja, nas consequências ético-morais, religiosas e educacionais a que a Doutrina Espírita conduz. Esta é também uma grande lição doutrinária para os dias atuais.

c) Allan Kardec faz referência às profundas palavras do Espírito Erasto, muito apreciadas e aplaudidas, epístola que também consta da Revista Espírita, de outubro de 1861, sob o título: “Epístola de Erasto aos Espíritas Lioneses – Lida no banquete de 19 de setembro de 1861”, (2) ditada na Société Parisienne des Études Spirites, especialmente para os espíritas de Lyon, antes de o codificador sair de viagem doutrinária, o que demonstra um excelente planejamento em todos os sentidos, dos encarnados e dos desencarnados. Damos, para os atentos leitores, algumas pinceladas da emotiva epístola:

Não é sem a mais grata emoção que venho entreter-me convosco, caros espíritas do grupo lionês. Sinto-me tomado de simpatia e de ternura num meio como o vosso, onde todas as condições sociais se dão as mãos, e feliz por vos poder anunciar que nós todos, os iniciadores do Espiritismo na França, assistiremos com a mais viva alegria os vossos ágapes fraternais, aos quais fomos convidados por João e Irineu, vossos eminentes guias espirituais. Ah! esses ágapes despertam em meu coração a lembrança daqueles em que todos nos reuníamos, mil e oitocentos anos atrás, quando combatíamos os costumes dissolutos do paganismo romano e já comentávamos os ensinos e parábolas do Filho do Homem, morto pela propagação de uma ideia santa, sobre o lenho da infâmia! Se o Altíssimo, meus amigos, por efeito de sua infinita misericórdida, permitisse que a lembrança do passado pudesse resplandecer um instante em vossas memórias entorpecidas, recordar-vos-íeis dessa época, ilustrada pelos santos mártires da plêiade lionesa: Sanctus, Alexandre, Attale, Episode; a doce e corajosa Blandina; Irineu, o intrépido bispo, dos quais muitos de entre vós então formáveis cortejo, aplaudindo-lhes o heroísmo e entoando louvores ao Senhor; também vos lembraríeis de que vários dos que me escutam regaram com o seu sangue a terra lionesa, esta terra fecunda que Eucher e Gregório de Tours chamaram a pátria dos mártires. Não os mencionarei; mas podeis considerar os que, em vossos grupos, desempenham uma missão, um aposto lado, como já tendo sido mártires da propagação da ideia igualitária, ensinada do alto do Gólgota pelo nosso Cristo bem-amado! […] 2

d) Acerca dos corajosos mártires de Lyon, citados na Epístola de Erasto, discípulo de São Paulo, leia-se também a nota do tradutor nº 399 em nossa tradução da Revista Espírita de 1861, (1) onde elencamos dezenas de mártires lioneses, alguns infelizmente esquecidos na atualidade. Igualmente é digna de nota a alusão que o Espírito Erasto faz da reencarnação de alguns desses mártires de Lyon nas fileiras espíritas: vários dos que me escutam regaram com o seu sangue a terra lionesa. E continua o seguidor do Apóstolo dos Gentios, enunciando profundas palavras que parecem ter sido pronunciadas para os dias atuais:

[…] Hoje, caros discípulos, aquele que foi sagrado por São Paulo vem dizer-vos que vossa missão é sempre a mesma, porquanto o paganismo romano, sempre de pé, sempre vivaz, ainda enlaça o mundo, como a hera enleia o carvalho. Deveis, pois, espalhar entre os vossos irmãos infelizes, escravos de suas paixões ou das paixões alheias, a sã e consoladora doutrina que meus amigos e eu viemos vos revelar, por nossos médiuns de todos os países. […] (2)

e) Já não são mais por centenas que se contam os espíritas em Lyon, senão por milhares. O mestre lionês observa e anota os passos agigantados que o Movimento Espírita iniciante está dando no interior da França, em 1861, e que terá o seu auge na sua terceira grande viagem espírita, em 1862,3 onde visitou doutrinariamente mais de 20 cidades, participando aproximadamente de 50 reuniões, percorrendo um trajeto de 693 léguas, que correspondem – nada mais nada menos – a 3.862 quilômetros, nos parcos transportes da época! Sim, os seus elevados objetivos eram: levar o Espiritismo nascente ao interior da França e depois ao exterior, conhecer o real estado da Doutrina nas várias cidades visitadas e observar a maneira por que era compreendida nos seus diversos aspectos.

f) O grande homem Rivail-Kardec surge nessas laudas de forma cativante e comovedora. Estamos mais acostumados à faceta clássica do codificador Allan Kardec, à sua personalidade austera – por causa da espinhosa e grande missão –, como pesquisador frio e arguto dos fenômenos espirituais e das suas lógicas consequências morais, como investigador totalmente dedicado à Doutrina, à Sociedade de Paris, à organização do Movimento, à Revue Spirite, à compilação e preparo das Obras, entre outros. Por outra parte, vemos no Manuscrito um homem carinhoso, familiar, preocupado com sua esposa Amélie, com a visita aos seus conhecidos e amigos, dedicando-se com bonomia aos irmãos espiritistas e aos convivas, enfim, um pouco mais expansivo, exatamente como quando o casal Kardec se reunia na sua residência da Villa de Ségur com Pierre-Gaëtan Leymarie e demais confrades queridos, atendendo-os com bom humor, sorriso franco, largo e comunicativo, conservando-se sempre digno e sóbrio em suas expressões, segundo o registro da Biographie d’Allan Kardec, de Henri Sausse. Allan Kardec é, portanto, um homem integral, ladeado por uma mulher integral: Amélie-Gabrielle Boudet.


Conclusão

No final da nossa pesquisa, somos imensamente gratos ao codificador pelo seu ingente sacrifício e pela abnegação das suas viagens espíritas, que ensejaram estes documentos históricos de rara beleza, humanos e doutrinários, além da criação e fortalecimento dos grupos espiritistas que ele mesmo ajudou a fundar e, consequentemente, a nutrir, com a sua presença física e a distância, como verdadeiro líder e vanguardista da Doutrina Espírita.

E na retaguarda do Movimento e da família, a corajosa Amélie-Gabrielle Boudet, essa mulher notável, que tanto ofereceu à humanidade no seu anonimato ativo e dinâmico, ensejando ao seu esposo a dedicação total ao Ideal Maior.

Que Allan Kardec e Amélie Boudet recebam, pelo pensamento, a nossa imensa gratidão e respeito, em forma de vibrações de reconhecimento e de sincera reverência dos seus irmãos espíritas de todo o mundo.

 

REFERÊNCIAS:

1 - KARDEC, Allan. Revista espírita : periódico de estudios psicológicos. año 4, 1861. Anexo especial com os originais fotografados da rara Carta de Allan Kardec a su esposa Amélie-Gabrielle Boudet . Lyon, 20/9/1861. Tradução, do francês para o espanhol, de Enrique Eliseo Baldovino. Nota explicativa do tradutor n. 399 sobre o Manuscrito , com transcrição e publicação da Carta , e acerca dos mártires de Lyon. Buenos Aires, CEA; Brasília, DF: Edicei.

2 ____. Revista espírita : jornal de estudos psicológicos. ano 4, n. 10, out. 1861. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 3. ed. 2. reimp. Brasília: FEB, 2010. p. 439-440.

3 ____. Viagem espírita em 1862 e outras viagens de Kardec . Trad. Evandro Noleto Bezerra 2. ed. 2. reimp. Brasília: FEB, 2011.

 

 




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