Revista Espírita
Jornal de Estudos Psicológicos
publicada sob a direção de Allan Kardec
Setembro de 1859
A linguagem dos Espíritos sérios e bons
traz um cunho que torna impossível nos enganarmos, por menos
que tenhamos de tato, raciocínio e de hábito de observação.
Por mais que disfarcem as suas torpezas com o véu da hipocrisia,
os maus Espíritos jamais podem representar indefinidamente o
seu papel. Mostram sempre a ponta da orelha. Do contrário, se
sua linguagem fosse imaculada, seriam bons Espíritos. A linguagem
dos Espíritos nos dá, pois, o verdadeiro critério
pelo qual podemos julgá-los. Sendo a linguagem a expressão
do pensamento, tem sempre um reflexo das boas ou más qualidades
do indivíduo. Não é também pela linguagem
que julgamos as pessoas que não conhecemos? Se recebermos vinte
cartas de vinte pessoas que jamais vimos, não ficaríamos
diversamente impressionados por sua leitura? Não será
pelas qualidades do estilo, pela escolha das expressões, pela
natureza dos pensamentos e, até, por certos detalhes de forma,
que reconheceremos naquele que nos escreve o homem rústico ou
bem educado, o sábio ou o ignorante, o orgulhoso ou o modesto?
Dá-se absolutamente o mesmo com os Espíritos.
Suponhamos que sejam homens que nos escrevem, e julguemo-los da mesma
maneira. Julguemo-los severamente, pois os bons Espíritos de
modo algum se sentirão ofendidos com esta escrupulosa investigação,
porque são eles próprios que a recomendam
como meio de controle. Sabemos que podemos ser enganados. Portanto,
nosso primeiro sentimento deve ser o de desconfiança. Os maus
Espíritos, que nos procuram induzir em erro podem temer o exame
porque, longe de o provocar, querem ser acreditados sob palavra.
Deste princípio decorre muito natural e logicamente o meio mais
eficaz de afastar os maus Espíritos e de nos premunirmos contra
as suas maldades. O homem que não é ouvido deixa de falar.
Aquele que vê constantemente descobertas as suas astúcias
vai praticá-las alhures. O ladrão ciente de que permanecemos
em estado de alerta não faz tentativas inúteis. Assim
os Espíritos enganadores deixam a partida quando sabem que nada
podem fazer, ou quando encontram pessoas vigilantes que repelem tudo
quanto lhes parece suspeito.
Para terminar, resta passar em revista os principais caracteres
que denotam a origem das comunicações espíritas.
1.- Como já dissemos em várias ocasiões,
os Espíritos superiores têm uma linguagem sempre digna,
nobre, elevada, sem qualquer mistura de trivialidade. Dizem tudo com
simplicidade e modéstia, jamais se gabam, não exibem
saber nem posição entre os outros. A dos Espíritos
inferiores ou vulgares tem sempre algum reflexo das paixões
humanas. Toda expressão que demonstra baixeza, suficiência,
arrogância, fanfarronada ou acrimônia é indício
característico de inferioridade e de embuste, desde que o Espírito
se apresente com um nome respeitável e venerado.
2.- Os bons Espíritos só dizem o que
sabem. Calam-se ou confessam sua ignorância relativamente ao
que não sabem. Os maus falam de tudo com segurança,
sem se importarem com a verdade. Toda heresia científica notória,
todo princípio que choca a razão e o bom senso revela
fraude, desde que o Espírito se apresente como um esclarecido.
3.- A linguagem dos Espíritos elevados é
sempre idêntica, senão na forma, pelo menos no conteúdo.
Os pensamentos são os mesmos, em qualquer tempo e lugar. Podem
ser mais ou menos desenvolvidos, conforme as circunstâncias,
as necessidades e as facilidades de comunicação, mas
não serão contraditórios. Se duas comunicações
com a mesma assinatura se encontrarem em oposição, uma
delas será evidentemente apócrifa, e a verdadeira será
aquela onde coisa alguma desminta o caráter conhecido do personagem.
Quando uma comunicação apresenta caráter de sublimidade
e de elevação, sem nenhuma falha, emana de um Espírito
elevado, seja qual for o seu nome. Se contiver uma mistura de bom
e de mau será de um Espírito comum. Se ele se apresentar
como é, será de um Espírito impostor, se ele
se apresentar com um nome que não pode justificar.
4.- Os bons Espíritos jamais ordenam, não
impõem. Aconselham e, se não forem ouvidos, retiram-se.
Os maus são imperiosos. Dão ordens e querem ser obedecidos.
Todo Espírito que impõe trai a sua origem.
5.- Os bons Espíritos não adulam. Aprovam
quando se faz o bem, mas sempre com reservas. Os maus fazem elogios
exagerados, estimulam o orgulho e a vaidade, mesmo pregando a humildade,
e procuram exaltar a importância pessoal daqueles a quem querem
apanhar.
6.- Os Espíritos superiores se sobrepõem
às puerilidades formais em todas as coisas. Para eles, o pensamento
é tudo, a forma nada vale. Só os Espíritos
vulgares podem ligar importância a certos detalhes incompatíveis
com as idéias realmente elevadas. Toda prescrição
meticulosa é sinal certo de inferioridade e de embuste da parte
do Espírito que toma um nome importante.
7. – É preciso desconfiar dos nomes bizarros
e ridículos que tomam certos Espíritos, desejosos de
impor-se à credulidade. Seria supremo absurdo levar a sério
esses nomes.
8.- Deve-se igualmente desconfiar daqueles que se
apresentam com muita facilidade com nomes extremamente venerados,
e não aceitar suas palavras senão com as maiores reservas.
Nesses casos, principalmente, é indispensável um severo
controle, porque em geral é uma máscara que adotam para
nos fazer crer em supostas relações íntimas com
Espíritos de grande elevação. Por este meio lisonjeiam
a vaidade, que exploram, a fim de induzir com freqüência
a atitudes lamentáveis ou ridículas.
9.- Os bons Espíritos são muito
escrupulosos no tocante às providências que podem aconselhar.
Em todos os casos estas tem sempre um objetivo sério e eminentemente
útil. Devemos, pois, considerar como suspeitas todas aquelas
que não tiverem esse caráter, e refletir maduramente
antes de as adotar.
10.- Os bons Espíritos só prescrevem
o bem. Toda máxima, todo conselho que não estiver estritamente
conforme a pura caridade evangélica não pode ser obra
de bons Espíritos. O mesmo acontece com toda insinuação
malévola, tendente a excitar ou alimentar sentimentos de ódio,
de ciúme e de egoísmo.
11.- Os bons Espíritos só aconselham
coisas perfeitamente razoáveis. Toda recomendação
que se afaste da linha reta do bom senso ou das leis imutáveis
da Natureza denota um Espírito limitado e ainda sob a influência
dos preconceitos terrenos. Conseqüentemente, pouco digno de confiança.
12.- Os Espíritos maus ou simplesmente imperfeitos
ainda se traem por sinais materiais, com os quais não nos poderíamos
enganar. Sua ação sobre o médium é por
vezes violenta, e provoca na sua escrita movimentos bruscos e sacudidos,
uma agitação febril e convulsiva, que contrasta com
a calma e a suavidade dos bons Espíritos.
13.- Outro sinal de sua presença é a
obsessão. Os bons Espíritos jamais obsediam.
Os maus se impõem em todos os momentos. É por isso que
todo médium deve desconfiar da irresistível necessidade
de escrever que dele se apodera nos mais inoportunos momentos. Jamais
se trata de um bom Espírito, e ele não deve jamais ceder.
14.- Entre os Espíritos imperfeitos, que se
imiscuem nas comunicações há os que, por assim
dizer, se insinuam furtivamente, como para fazer uma brincadeira,
mas que se retiram tão facilmente como vieram, e isto na primeira
intimação. Outros, ao contrário, são tenazes,
agarram-se ao indivíduo e só cedem contra a vontade
e com persistência. Apoderam-se dele, subjugam-no e o fascinam
a ponto de induzi-lo a aceitar os mais grosseiros absurdos, como se
fossem coisas admiráveis. Feliz dele quando criaturas de sangue
frio conseguem abrir-lhe os olhos, o que nem sempre é fácil,
porque esses Espíritos têm a arte de inspirar a desconfiança
e o afastamento de quem quer que os possa desmascarar. Daí
se segue que devemos ter por suspeito de inferioridade e de más
intenções todo Espírito que prescreve o afastamento
das pessoas que podem dar bons conselhos. O amor próprio
vem em seu auxílio, porque nos é difícil confessar
que fomos vítimas de uma mistificação e reconhecer
um velhaco naquele sob cujo patrocínio sentíamos a honra
de nos colocarmos. Essa ação do Espírito é
independente da faculdade de escrever. Em falta da escrita, o Espírito
malévolo tem mil e um modos de agir e enganar. Para ele a escrita
é um meio de persuasão, mas não é uma
causa. Para o médium, é um meio de esclarecer-se.
Passando todas as comunicações espíritas
pelo controle das considerações precedentes, reconheceremos
facilmente a sua origem e poderemos destruir a malícia dos Espíritos
enganadores, que só se dirigem àqueles que se deixam enganar
comodamente. Se nos vissem ajoelhar ante as suas palavras, disso tirariam
partido como o fazem os simples mortais. A nós, pois, cabe provar-lhes
que perdem o tempo. Acrescentemos que para isso a prece é poderoso
auxílio. Por ela atraímos a assistência de Deus
e dos bons Espíritos, aumentando nossa própria força.
É conhecido o preceito: Ajuda-te e o céu te ajudará.
Deus quer assistir-nos, mas com a condição de que, por
nosso lado, façamos aquilo que é necessário.
A esse preceito juntamos um exemplo. Um dia veio ver-me um senhor que
eu não conhecia, e me disse que era médium. Recebia comunicações
de um Espírito muito elevado, que o tinha encarregado de vir
a mim, fazer uma revelação relativa a uma trama que, na
sua opinião, era urdida contra mim, por parte de inimigos secretos
que designou. E acrescentou: "Quer que escreva em sua presença?"
Com prazer, respondi eu. Mas, para começar, devo dizer-lhe que
esses inimigos são menos temerosos do que o senhor supõe.
Sei que os tenho. Quem não os tem? E os mais encarniçados
em geral são aqueles a quem mais beneficiamos. Tenho consciência
de jamais ter feito voluntariamente mal a alguém. Aqueles que
me fizerem mal não poderão dizer o mesmo, e entre nós,
Deus será juiz. Contudo, vejamos o conselho que o Espírito
quer dar-me. Então aquele senhor escreveu o seguinte:
"Ordenei a C... (nome daquele senhor), que é
facho de luz dos bons Espíritos, dos quais recebeu a missão
de a espalhar entre os seus irmãos, que fosse à casa
do Sr. Allan Kardec, o qual deverá crer cegamente no que eu
lhe disser, porque estou entre os eleitos prepostos por Deus para
velar pela salvação dos homens, e porque lhe venho anunciar
a verdade..."
É bastante, disse-lhe eu, não vale a pena
continuar. Este exórdio é suficiente para mostrar o tipo
do Espírito com quem o senhor está tratando. Direi apenas
uma palavra: para um Espírito que quer ser astucioso, ele está
muito desajeitado.
Esse senhor pareceu bastante escandalizado do pouco caso que eu fazia
do seu Espírito, que tivera a ingenuidade de tomar por algum
arcanjo ou, pelo menos, por algum santo de primeira classe, vindo especialmente
para ele. Disse-lhe eu:
"Esse Espírito mostra a ponta das orelhas
nas poucas palavras que acaba de escrever. Convenhamos que sabe muito
mal esconder o seu jogo. Para começar, ordena. Portanto, quer
ter o senhor na sua dependência, o que é característico
dos Espíritos obsessores. Chama-o facho de luz dos bons Espíritos,
linguagem sofrivelmente enfática e ambígua, muito distanciada
da simplicidade que caracteriza a dos bons Espíritos. Por ela
lisonjeia o seu orgulho, exalta a sua importância, o que basta
para torná-lo suspeito. Ele se coloca sem nenhuma cerimônia
entre os eleitos prepostos de Deus. Isto é jactância
indigna de um Espírito realmente superior. Por fim me disse
que devo crer cegamente. Isto coroa a obra. Eis aí o estilo
desses Espíritos mentirosos, que querem que neles acreditemos
sob palavra, pois sabem que num exame sério tudo têm
a perder. Com um pouco mais de perspicácia poderia ter visto
que não me vergo às belas palavras e que agia muito
mal prescrevendo-me uma confiança cega. Daí concluo
que o senhor é joguete de um Espírito que o mistifica
e abusa da sua boa-fé. Aconselho-o a prestar muita atenção
a isto, porque, se o senhor não se guardar, poderá ser
vítima de uma ação prejudicial".
Não sei se o cavalheiro aproveitou o aviso,
porque não o vi mais, nem ao seu Espírito. Eu não
terminaria nunca se fosse contar todas as comunicações
desse gênero que me têm sido submetidas, por vezes muito
seriamente, como emanando dos maiores santos, da Virgem Maria e do próprio
Cristo. E seria realmente curioso ver as torpezas levadas à conta
desses nomes venerados. É preciso ser cego para enganar-se quanto
à sua origem, quando, muitas vezes, uma única palavra
equívoca, um único pensamento contraditório bastam
para fazer descobrir a mentira a quem se dá o trabalho de refletir.
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