Allan
Kardec - Revista Espírita
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Revista Espírita
Jornal de Estudos Psicológicos
publicada sob a direção de ALLAN KARDEC
ANOVII - Nº. 2 - FEVEREIRO 1864.
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Vários jornais reproduziram o artigo seguinte:
"O incidente da semana, escreveu-se de Roma
ao Times, é a ordem dada ao Sr. Home, o célebre médium,
de deixar a cidade pontifícia em três dias.
"Convidado a se apresentar diante da polícia romana,
o Sr. Home sofreu um interrogatório segundo as leis. Perguntou-se-lhe
quanto tempo pensava ficar em Roma; se estava entregue às
práticas do Espiritismo desde sua conversão ao catolicismo,
etc., etc. Eis algumas das palavras trocadas nessa circunstância,
tais como o próprio Sr. Home consignou-as em suas notas particulares,
que comunica bastante facilmente, ao que parece.
- Depois de vossa conversão ao catolicismo, tendes exercido
vosso poder de médium? - Nem depois nem antes exerci esse
poder, porque, como não depende de minha vontade, não
posso dizer que o exerço. - Considerais esse poder como um
dom da Natureza? - Considero-o como um dom de Deus. - Que religião
os Espíritos ensinam? - Isso depende. - Que fazeis para fazê-los
vir? Respondi que não fazia nada; mas, no mesmo instante,
pancadas repetidas e distintas se fizeram ouvir sobre a mesa onde
meu interrogador escrevia. "Mas também fazeis as mesas
se moverem?" disse-me. No mesmo instante a mesa se pôs
em movimento."
"Pouco tocado desses prodígios, o chefe da polícia
convidou o mágico a deixar Roma em três dias. O Sr.
Home se abrigando, como era seu direito, sob a proteção
das leis internacionais, referiu isso ao cônsul da Inglaterra,
que obteve do Sr. Matteucci que o muito célebre médium
não fosse inquietado e que poderia continuar sua permanência
em Roma, desde que pensasse em se abster, durante esse tempo, de
toda comunicação com o mundo espiritual. Coisa espantosa!
o Sr. Home acedeu a essa condição, e assinou o compromisso
que se lhe pediu. Como pôde comprometer-se em não usar
de um poder cujo exercício é independente de sua vontade?
É o que procuraremos penetrar."
Não sabemos até que ponto esse relato
é exato em todos os seus detalhes, mas uma carta escrita recentemente
pelo Sr. Home a uma senhora de nosso conhecimento parece confirmar um
fato principal. Quanto às pancadas tão a propósito,
cremos que se pode, sem medo, colocá-las entre os gracejos aos
quais nos habituaram os jornais pouco preocupados em aprofundar as coisas
do outro mundo.
O Sr. Home, com efeito, está em Roma neste momento, e o motivo
é muito honroso para ele para que não o digamos, uma vez
que os jornais creram dever aproveitar esta ocasião para ridicularizá-lo.
O Sr. Home não é rico, e não teme dizer que deve
procurar no trabalho um suplemento de recursos para prover os encargos
aos quais deve recorrer. Pensou em procurar no talento natural que tem
pela escultura, e foi para se aperfeiçoar nesta arte que foi
a Roma. Com a notável faculdade medianímica que possui,
poderia ser rico, muito rico mesmo, se tivesse querido explorá-la;
a mediocridade de sua posição é a melhor resposta
ao epíteto de hábil charlatão que se lhe lançou
à face. Mas ele sabe que essa faculdade lhe foi dada com um objetivo
providencial, para os interesses de uma causa santa, e acreditaria cometer
um sacrilégio se a convertesse em ofício. Ele tem demasiadamente
o sentimento dos deveres que ela lhe impõe para não compreender
que os Espíritos se manifestam pela vontade de Deus para conduzir
os homens à fé na vida futura, e não para fazer
demonstração de um espetáculo de curiosidades,
em concorrência com os escamoteadores, nem para servir à
cupidez daqueles que pretendessem explorá-los. Aliás,
ele sabe também que os Espíritos não estão
às ordens nem ao capricho de ninguém, e ainda menos de
quem quisesse exibir seus fatos e gestos a tanto por sessão.
Não há um só médium no mundo que possa garantir
a produção de um fenômeno espírita num instante
dado; donde é necessário concluir que a pretensão
contrária é a prova de uma ignorância absoluta dos
princípios mais elementares da ciência, e então
toda suposição é permitida, porque, se os Espíritos
não respondem ao chamado, ou não fazem coisas muito espantosas
para satisfazer os curiosos e sustentar a reputação do
médium, é preciso muito encontrar meio de dá-lo
aos espectadores por seu dinheiro, se não se quer lhes restituí-lo.
Não saberíamos muito repetir, a melhor garantia de sinceridade
é o desinteresse absoluto. Um médium é sempre forte
quando pode responder àqueles que suspeitassem de sua boa fé:
"Quanto pagastes para vir aqui?"
Ainda uma vez, a mediunidade séria não pode ser, e não
será jamais, uma profissão; não só porque
estaria desacreditada moralmente, mas porque repousa sobre uma faculdade
essencialmente móvel, fugidia e variável,
que nenhum daqueles que a possui hoje não está
seguro de possuí-la amanhã; só os charlatães
estão sempre certos de si mesmos. Outra coisa é um talento
adquirido pelo estudo e pelo trabalho, que, por isso mesmo, é
uma propriedade da qual é naturalmente permitido tirar partido;
a mediunidade não está neste caso; explorá-la é
dispor de uma coisa da qual não se é realmente senhor;
é desviá-la de seu objetivo providencial;
há mais: não é de si mesmo do que se dispõe,
são os Espíritos, as almas dos mortos cujo concurso é
posto a preço. Este pensamento repugna instintivamente. É
porque em todos os centros sérios onde se ocupa do Espiritismo
santamente, religiosamente, como em Lyon, Bordeaux e tantos outros,
os médiuns exploradores seriam completamente desconsiderados.
Que aquele que, pois, não tem de que viver procure em outra parte
os recursos e nela não consagre, se for preciso, senão
o tempo que pode dar-lhe materialmente; os Espíritos levarão
em conta o seu devotamento e os seus sacrifícios, ao passo que
punem, cedo ou tarde, aqueles que dela esperam se fazerem um degrau,
seja pela retirada da faculdade, afastando-o dos bons Espíritos,
as mistificações comprometedoras, seja por meios mais
desagradáveis ainda, assim como a experiência o prova.
O Sr. Home sabe muito bem que perderia a assistência de seus bons
Espíritos protetores se abusasse de sua faculdade. Sua primeira
punição seria perder a estima e a consideração
das famílias honradas onde é recebido como amigo e onde
não seria mais chamado senão com o mesmo título
que as pessoas que vão dar representações a domicílio.
Quando de sua primeira estada em Paris, sabemos que lhe foram feitas,
por certos círculos, ofertas muito vantajosas para ali dar sessão,
e que sempre recusou. Todos aqueles que o conhecem e compreendem os
verdadeiros interesses do Espiritismo aplaudirão a resolução
que toma hoje. Por nossa conta pessoal, nós lhe somos gratos
do bom exemplo que dá.
Se insistimos de novo sobre a questão do desinteresse dos médiuns,
é que temos razões de crer que a mediunidade fictícia
e abusiva é um dos meios que os inimigos do Espiritismo contam
empregar para procurar desacreditá-lo e apresentá-lo como
uma obra de charlatanismo. É, pois, necessário que todos
aqueles que se interessam pela causa da Doutrina se tenham por advertidos,
a fim de desmascarar as manobras fraudulentas, se isso ocorrer, e mostrar
que o Espiritismo verdadeiro nada tem de comum com as paródias
que dele se poderão fazer, e que ele repudia tudo o que
se afasta do princípio moraliza-dor que é a sua essência.
O artigo acima reportado oferece vários outros assuntos de observação.
O autor crê dever qualificar o Sr. Home de mágico; não
há ali nada senão de muito inocente; mas mais adiante
disse: "O muito célebre médium", expressão
empregada a respeito dos indivíduos que adquiriram uma deplorável
celebridade. Onde estão, pois, os defeitos e os crimes do Sr.
Home? É uma injúria gratuita, não só para
ele, mas ainda para todas as pessoas respeitáveis e altamente
colocadas que o recebem e que parecem assim patrocinar um homem de má
fama.
A última frase do artigo é mais curiosa, porque ela encerra
uma dessas contradições flagrantes das quais nossos adversários
se inquietam muito pouco, de resto. O autor se admira de que o Sr. Home
haja consentido no compromisso que se lhe impôs e se pergunta
como pôde prometer de não usar de um poder independente
de sua vontade? Se se prendesse em sabê-lo, o remeteríamos
ao estudo dos fenômenos espíritas, de suas causas e de
seu modo de produção, e saberia como o Sr. Home pode tomar
um compromisso que, de resto, não pode concernir às manifestações
que obtém na intimidade, fosse mesmo sob os ferrolhos da inquisição.
Mas parece que o autor nisso não se prende tanto, porque acrescenta:
"É o que procuraremos penetrar." Por essas palavras
dá insidiosa-mente a entender que esses fenômenos não
são senão da fraude.
No entanto, a medida tomada pelo governo pontifício prova que
este tem medo das manifestações ostensivas; ora, não
se tem medo de um malabarismo. Esse mesmo governo interditaria os supostos
físicos que se fazem muito em imitar essas manifestações?
Não, certamente, porque em Roma permitem-se muitas outras coisas
muito menos evangélicas; por que, pois, interditá-las
ao Sr. Home? Por que querer expulsá-lo do país se não
é senão um encenador? É no interesse da religião,
dir-se-á; seja; mas é, pois, tão frágil
essa religião que pode ser tão facilmente comprometida?
Em Roma, como em outra parte, os escamoteadores executam com mais ou
menos habilidade o jogo da garrafa encantada, e a água se transforma
em todas espécies de vinhos, e do chapéu mágico,
onde se multiplicam os pães e outros objetos; e, no entanto,
não se teme que isso desacredite os milagres de Jesus Cristo,
porque se sabe que não são senão imitações.
Se se teme o Sr. Home, há, pois, de sua parte, alguma coisa de
sério, e não jogo de habilidades.
Tal é a conseqüência que disso tira todo homem que
reflete um pouco; não entrará no pensamento de nenhuma
pessoa sensata que um governo, que uma corte soberana, composta de homens
que, com razão, não passam portelos, se amedronte com
um mito.
Esta reflexão, não seremos os únicos a fazê-la,
seguramente, e os jornais que se apressaram em dar conta desse incidente,
tendo em vista torná-lo em ridículo, vão provocá-la
muito naturalmente; de sorte que o resultado será, como o de
tudo o que já se fez para matar o Espiritismo, de popularizar-lhe
a idéia. Assim, um fato insignificante, em aparência, terá
conseqüências mais sérias do que não se o havia
pensado. Não duvidamos que não haja sido suscitado para
apressar a eclosão do Espiritismo na Itália, onde já
conta com muitos numerosos representantes, mesmo no clero. Não
duvidamos, não mais, que a corte de Roma não se torne,
cedo ou tarde, sem o querer, um dos principais instrumentos de propagação
da Doutrina nesse país, porque está no destino que seus
próprios adversários devem servir para difundi-la por
tudo que farão para destruí-la. Cego, pois, aquele que
não vê ali o dedo da Providência. Esse será,
sem contradita, um dos fatos mais consideráveis da história
do Espiritismo; um daqueles que melhor atestam o poder de sua origem.
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