Há inclinações
viciosas que evidentemente são mais inerentes ao espírito,
porque têm a ver mais com a moral do que com o físico;
outras mais parecem consequência do organismo e, por este
motivo, a gente se julga menos responsável. Tais são
as predisposições à cólera, à
moleza, à sensualidade, etc.
Está hoje perfeitamente reconhecido
pelos filósofos espiritualistas que os órgãos
cerebrais correspondentes às diversas aptidões devem
o seu desenvolvimento à atividade do espírito; que
esse desenvolvimento é, assim, um efeito e não uma
causa. Um homem não é músico porque tem a bossa
da música, mas tem a bossa da música porque seu espírito
é músico (Revista de julho de 1860 e abril de 1862).
Se a atividade do espírito
reage sobre o cérebro, deve reagir igualmente sobre as outras
partes do organismo. Assim, o espírito é o artífice
de seu próprio corpo, por assim dizer, modela-o, a fim de
apropriá-lo às suas necessidades e à manifestação
de suas tendências. Assim sendo, a perfeição
do corpo nas raças adiantadas seria o resultado do trabalho
do espírito que aperfeiçoa o seu utensílio
à medida que aumentam as suas faculdades. (A Gênese
segundo o Espiritismo, cap. XI, Gênese Espiritual).
Por uma consequência natural desse princípio, as disposições
morais do espírito devem modificar as qualidades do sangue,
dar-lhe maior ou menor atividade, provocar uma secreção
mais ou menos abundante de bile ou de outros fluidos. É assim,
por exemplo, que o glutão sente vir a saliva, ou, como se
diz vulgarmente, vir água à boca à vista de
um prato apetitoso. Não é o alimento que pode superexcitar
o órgão do paladar, pois não há contato;
é, portanto, o espírito, cuja sensualidade é
despertada, que age pelo pensamento sobre esse órgão,
ao passo que, sobre um outro Espírito, a visão daquele
prato nada produz. Dá-se o mesmo em todas as cobiças,
todos os desejos provocados pela visão. A diversidade das
emoções não pode ser compreendida, numa porção
de casos, senão pela diversidade das qualidades do espírito.
Tal é a razão pela qual uma pessoa sensível
facilmente derrama lágrimas; não é a abundância
das lágrimas que dá a sensibilidade ao espírito,
mas a sensibilidade do espírito que provoca a abundante secreção
de lágrimas. Sob o império da sensibilidade, o organismo
modelou-se sob esta disposição normal do espírito,
como se modelou sob a do espírito glutão.
Seguindo esta ordem de ideias, compreende-se
que um espírito irascível deve levar ao temperamento
bilioso, de onde se segue que um homem não é colérico
porque é bilioso, mas que é bilioso porque é
colérico. Assim acontece com todas as outras disposições
instintivas; um espírito mole e indolente deixará
o seu organismo num estado de atonia em relação com
o seu caráter, ao passo que, se ele for ativo e enérgico,
dará ao seu sangue, aos seus nervos, qualidades bem diferentes.
A ação do espírito sobre o físico é
de tal modo evidente, que por vezes se veem graves desordens orgânicas
produzidas por efeito de violentas comoções morais.
A expressão vulgar: A emoção lhe fez subir
o sangue, não é assim despida de sentido quanto
se podia crer. Ora, o que pôde alterar o sangue senão
as disposições morais do espírito?
Este efeito é sensível sobretudo nas grandes dores,
nas grandes alegrias, nos grandes pavores, cuja reação
pode chegar a causar a morte. Vemos pessoas que morrem do medo de
morrer. Ora, que relação existe entre o corpo do indivíduo
e o objeto que causa pavor, objeto que, muitas vezes, não
tem qualquer realidade? Diz-se que é o efeito da imaginação;
seja, mas o que é a imaginação senão
um atributo, um modo de sensibilidade do espírito? Parece
difícil atribuir à imaginação, aos músculos
e aos nervos, pois então não compreenderíamos
por que esses músculos e esses nervos não têm
imaginação sempre; por que não a têm
após a morte; por que o que nuns causa um pavor mortal, noutros
excita a coragem.
Seja qual for a sutileza que usemos para explicar os fenômenos
morais exclusivamente pelas propriedades da matéria, cairemos
inevitavelmente num impasse, no fundo do qual se percebe, com toda
a evidência, e como única solução possível,
o ser espiritual independente, para quem o organismo não
é senão um meio de manifestação, como
o piano é o instrumento das manifestações do
pensamento do músico. Assim como o músico afina o
seu piano, pode-se dizer que o Espírito afina o seu corpo
para pô-lo no diapasão de suas disposições
morais.
É realmente curioso ver o materialismo falar incessantemente
da necessidade de elevar a dignidade do homem, quando se esforça
para reduzi-lo a um pedaço de carne que apodrece e desaparece
sem deixar qualquer vestígio; de reivindicar para si a liberdade
como um direito natural, quando o transforma num mecanismo, marchando
como um boneco, sem responsabilidade por seus atos.
Com o ser espiritual independente, preexistente e sobrevivente ao
corpo, a responsabilidade é absoluta. Ora, para a maioria,
o primeiro, o principal móvel da crença no niilismo,
é o pavor que causa essa responsabilidade, fora da lei
humana, e à qual crê escapar fechando os olhos.
Até hoje essa responsabilidade nada tinha de bem definido;
não era senão um medo vago, fundado, há que
reconhecer, em crenças nem sempre admissíveis pela
razão. O Espiritismo a demonstra como uma realidade patente,
efetiva, sem restrição, como uma consequência
natural da espiritualidade do ser. Eis por que certas pessoas temem
o Espiritismo, que as perturbaria em sua quietude, erguendo à
sua frente o temível tribunal do futuro. Provar que o homem
é responsável por todos os seus atos é provar
a sua liberdade de ação, e provar a sua liberdade
é revelar a sua dignidade. A perspectiva da responsabilidade
fora da lei humana é o mais poderoso elemento moralizador:
é o objetivo ao qual conduz o Espiritismo pela força
das coisas.
Portanto, conforme as observações fisiológicas
que precedem, podemos admitir que o temperamento é, pelo
menos em parte, determinado pela natureza do espírito, que
é causa e não efeito. Dizemos em parte, porque há
casos em que o físico evidentemente influi sobre o moral:
é quando um estado mórbido ou anormal é determinado
por uma causa externa, acidental, independente do espírito,
como a temperatura, o clima, os vícios hereditários
de constituição, um mal-estar passageiro, etc. O moral
do Espírito pode, então, ser afetado em suas manifestações
pelo estado patológico, sem que sua natureza intrínseca
seja modificada.
Escusar-se de suas más ações com a fraqueza
da carne não é senão um subterfúgio
para eximir-se da responsabilidade. A carne não é
fraca senão porque o espírito é fraco,
o que derruba a questão e deixa ao espírito a responsabilidade
de todos os seus atos. A carne, que não tem nem pensamento
nem vontade, jamais prevalece sobre o Espírito, que é
o ser pensante e voluntarioso. É o espírito
que dá à carne as qualidades correspondentes aos instintos,
como um artista imprime à sua obra material o cunho de seu
gênio. Liberto dos instintos da bestialidade, o espírito
modela um corpo que não é mais um tirano para as suas
aspirações à espiritualidade de seu ser; então
o homem come para viver, porque viver é uma necessidade,
mas não vive para comer.
A responsabilidade moral dos atos da vida, portanto, permanece íntegra.
Mas, diz a razão que as consequências dessa responsabilidade
devem ser proporcionais ao desenvolvimento intelectual do Espírito,
pois quanto mais esclarecido ele for, menos escusável será,
porque, com a inteligência e o senso moral, nascem as noções
do bem e do mal, do justo e do injusto. O selvagem, ainda vizinho
da animalidade, que cede ao instinto do animal, comendo o seu semelhante,
é, sem contradita, menos culpável que o homem civilizado
que comete uma simples injustiça.
Esta lei ainda encontra sua aplicação na Medicina
e dá a razão do seu insucesso em certos casos. Considerando-se
que o temperamento é um efeito, e não uma causa, os
esforços tentados para modificá-lo podem ser paralisados
pelas disposições morais do espírito que opõe
uma resistência inconsciente e neutraliza a ação
terapêutica. É, pois, sobre a causa primeira que devemos
agir; se se consegue mudar as disposições morais do
espírito, o temperamento modificar-se-á por si mesmo,
sob o império de uma vontade diferente ou, pelo menos, a
ação do tratamento médico será ajudada,
em vez de ser tolhida. Se possível, dai coragem ao poltrão,
e vereis cessarem os efeitos fisiológicos do medo. Dá-se
o mesmo com as outras disposições.
Mas, perguntarão, pode o médico do corpo fazer-se
médico da alma? Está em suas atribuições
fazer-se moralizador de seus doentes? Sim, sem dúvida, em
certos limites; é mesmo um dever que um bom médico
jamais negligencia, desde o instante que vê no estado da alma
um obstáculo ao restabelecimento da saúde do corpo.
O essencial é aplicar o remédio moral com tato, prudência
e convenientemente, conforme as circunstâncias. Deste ponto
de vista, sua ação é forçosamente circunscrita,
porque, além de ele ter sobre o seu doente apenas uma ascendência
moral, em certa idade é difícil uma transformação
do caráter. É, pois, à educação,
e sobretudo à primeira educação, que incumbem
os cuidados dessa natureza. Quando a educação, desde
o berço, for dirigida nesse sentido; quando nos aplicarmos
em abafar, em seus germes, as imperfeições morais,
como fazemos com as imperfeições físicas, o
médico não mais encontrará no temperamento
um obstáculo contra o qual a sua ciência muitas vezes
é impotente.
Como se vê, é todo um estudo, mas um estudo completamente
estéril, enquanto não levarmos em conta a ação
do elemento espiritual sobre o organismo. Participação
incessantemente ativa do elemento espiritual nos fenômenos
da vida, tal é a chave da maior parte dos problemas contra
os quais se choca a Ciência. Quando ela levar em consideração
a ação desse princípio, verá abrir-se
à sua frente horizontes completamente novos. É a demonstração
desta verdade que o Espiritismo traz.