O caso da menina de 10 anos abusada
e estuprada ao longo de parte de sua infância e engravidada
como ápice do ciclo de violência sofrida escancara uma
situação que é vivida por milhares de mulheres
de todas as idades e milhares de crianças de todos os gêneros
em nosso país. Esse cenário é diuturnamente denunciado
por entidades de defesa dos direitos da criança e pelo fim
da violência contra a mulher.
Tão chocante quanto a situação
em si, é ver que uma criança brutalizada e engravidada
contra a vontade não é o centro da questão. As
entidades pró-vida que aparentemente não se importam
com a vida dessa criança montaram um circo para questionar
não a violência, mas o direito dessa criança não
conviver com consequências permanentes da violência sofrida.
Essa criança deveria ser acolhida, receber serviço médico
ágil e objetivo para a realização do aborto legal
e um pedido de desculpas em nome da nossa sociedade que se mostrou
incapaz de protegê-la. Ao invés disso foi exposta publicamente
e precisou aguardar por uma decisão judicial.
A Associação Médico-Espírita,
que até agora não se pronunciou sobre o comportamento
genocida do Presidente da República frente a pandemia, deveria
se envergonhar em colocar o peso de seu julgamento sobre uma menina
de 10 anos. Afirmar em uma nota pública que “médicos
ofereceram gratuitamente infraestrutura de pré-natal, parto
e pós-parto, visando dar opção à gestante
de não matar o bebê” é nauseante. Uma nota
de tal forma contaminada pelo lobby antiaborto que chega ao ponto
de falsear o texto basilar do Espiritismo, O Livro dos Espíritos.
A entidade cita a questão 359
do Livro dos Espíritos sugerindo que em seu conteúdo
esteja dito que “o aborto só se justifica em caso de
risco à vida da mãe”. Isso não é
verdade. A dita questão 359 questiona objetivamente se há
crime no aborto em caso de risco de vida da mãe, para o que
a resposta é negativa. Textualmente, diz que “é
preferível sacrificar o ser que não existe, ao ser que
existe”. É bem diferente do que insinua a nota. Na realidade,
sendo a obra absolutamente omissa sobre estupro, a única coisa
que a questão 359 aproxima é que, à luz do Espiritismo,
temos ainda muitos tabus e falsas premissas a desconstruir, inclusive
sobre aborto.
Só há uma vítima
nessa história, ela tem 10 anos de idade e já sofreu
abusos demais. Essa criança não escolheu ser abusada.
Não escolheu ter sua infância violada. Não escolheu
ser engravidada. Empatia, solidariedade e compreensão gerais
e irrestritas seriam as únicas manifestações
humanamente aceitáveis. Nem ela, nem as milhares de mulheres
e crianças abusadas todos os anos precisam das fogueiras medievais
de entidades cuja prática deveria ser condizente com o discurso
de amor e tolerância que pregam.
Como espírita e como ser humano,
meu compromisso é com um mundo livre de toda forma de violência
contra as mulheres, um mundo de proteção às crianças
e de respeito às religiões, mas também um mundo
livre de toda forma de manipulação religiosa e intolerância
disfarçada.
(*) Espírita e Secretário de Comunicação
do PT de Porto Alegre.