Narro um caso real para refletir sobre
como aprendemos, vezes muitas, e passamos a cometer equívocos
em novos lugares com a sabedoria adquirida.
Tudo que vou
narrar aqui ocorreu. Interessa-me a “moral da história”
mais do que a identificação. Acompanhem.
Um rapaz trabalha em uma empresa e torna-se o braço direito
do proprietário. O dono atende pelo nome de Francisco. O trabalhador
é inteligente e dedicado. Como acontece por vezes, identifica-se
com o lugar e passa a ter um foco similar ao do chefe. Trabalha mais
de dez horas por dia e, em momentos-chave, atravessa a noite resolvendo
questões. Sobe na hierarquia e cresce aos olhos do dono. Márcio
(vamos chamá-lo assim) é o tipo ideal de colaborador.
O aumento expressivo da carga horária
não é acompanhado de expansão salarial. O jovem,
já casado, decide com a esposa abrir a própria empresa.
Genuinamente preocupado com o vazio de sua saída, comunica
ao dono que terá, em seis meses, outro destino profissional.
Considera o chefe um amigo e quer ajudar a treinar o substituto. Francisco
recebe mal a notícia. O papel que deseja para o empregado é
o de colaborador permanente. Márcio sai como “mais um”
apenas.
Abrindo sua própria marca e
ainda considerando o ex-chefe um amigo, pede conselhos e recebe frieza
e silêncio. Não oferecendo mais seu sangue, torna-se
irrelevante aos olhos do antigo contratante. Com dificuldades, o jovem
segue a jornada. O ex-patrão nega apoio e ainda renega a importância
de Márcio como ex-colaborador.
O tempo flui. Márcio cresce em parceria com Ana, sua companheira.
Passam-se quinze anos. Do nada, recebe uma mensagem do primeiro chefe.
O homem havia entrado em processo terapêutico com um psicólogo.
Em meio a memórias e dores, o profissional recomendou a Francisco
que pedisse perdão por coisas ruins que tivesse feito no passado.
A consciência do ex-chefe é de que não apoiou
o rapaz, explorou-o em excesso e, assim que Márcio decidiu
crescer, abandonou-o como um qualquer. Francisco, mais velho, sente-se
culpado. Na meia-idade, erros anteriores crescem e tornam-se mais
amargos. O retrato de Dorian Gray do sótão fica mais
feio.
Márcio recebe mal a mensagem. Primeiro, porque ainda tem mágoas.
Depois, porque entende o óbvio: o chefe não o via naquela
época e continua não o vendo agora. O egoísmo
de Francisco é o mesmo, querendo apenas a reconciliação
consigo. Como o jovem entende, é uma Des/Culpa, uma tentativa
de expiar a própria culpa, não uma ida ao encontro de
Márcio. Mais: sendo Márcio um sucesso atualmente, Francisco
deseja ser considerado como parte ou alavanca do êxito atual.
Não é uma penitência sobre o passado, é
o mesmo coração duro que só enxerga a si. Francisco
busca seu próprio benefício sempre: antes, como empreendedor;
agora, como psicanalisado.
A resposta de Márcio é ponderada.
Não oferece o perdão balsâmico. Apenas pede que
o outro nunca mais pise em alguém ou abandone um amigo. Relembra
como foi difícil e não concede o teatro do abraço
fraterno, que acalmaria o outro.
Márcio recebe mal a mensagem.
Primeiro, porque ainda tem mágoas. Depois, porque entende o
óbvio: o chefe não o via naquela época e continua
não o vendo agora. O egoísmo de Francisco é o
mesmo, querendo apenas a reconciliação consigo. Como
o jovem entende, é uma Des/Culpa, uma tentativa de expiar a
própria culpa, não uma ida ao encontro de Márcio.
Mais: sendo Márcio um sucesso atualmente, Francisco deseja
ser considerado como parte ou alavanca do êxito atual. Não
é uma penitência sobre o passado, é o mesmo coração
duro que só enxerga a si. Francisco busca seu próprio
benefício sempre: antes, como empreendedor; agora, como psicanalisado.
A resposta de Márcio é
ponderada. Não oferece o perdão balsâmico. Apenas
pede que o outro nunca mais pise em alguém ou abandone um amigo.
Relembra como foi difícil e não concede o teatro do
abraço fraterno, que acalmaria o outro.
A história é absolutamente
real e ensina-nos muito. Francisco errou como eu e você, querida
leitora e estimado leitor. Viver implica errar. Aprendemos, vezes
muitas, e passamos a cometer equívocos em novos lugares com
a sabedoria adquirida. O que vimos aqui é um processo complicado:
é difícil saber se Francisco, de fato, arrependeu-se
ou se, apenas agora, vendo o sucesso do ex-colaborador, quer algum
tipo de mérito na trajetória do outro. Assemelha-se
a um pai que, tendo expulsado o filho do lar, vê o rebento prosperar
enormemente e reflete sobre seu ato pretérito. No fundo, o
genitor gostaria do fracasso do filho, pois isso comprovaria a sabedoria
da exclusão. Quando o mundo acolhe quem eu considerei indigno,
demonstra meu equívoco. Ver afundar quem condenamos (ou não
apoiamos) é um alívio para a maioria.
A primeira lição é:
erros não remediados tendem a virar feridas complexas. Responder
com frieza a quem ofereceu afeto e dedicação tem um
custo alto que, macerado, ulcera. Segundo aprendizado: a desculpa
não pode ser apenas para meu coração atormentado
ou minha consciência inquieta. Deveria ser algo que, enfim,
olhasse para o outro. Ouvi os áudios de Francisco. Sou amigo
de Márcio. Nada havia na voz que indicasse uma transformação
daquele homem. Era um egoísta envelhecendo e com novos receios.
Continuava um canalha. Lembrei-me de uma fala popular: “As cobras
trocam de pele porque ficam maiores, não porque deixam de ser
cobras”. O medo do inferno nunca fez alguém santo; tão
somente o amor faz essa transformação.
Tudo tem seu tempo e sua hora? O momento
de consertar é próximo da dor causada. A hora de refazer
algo envolve entrega genuína e mudança efetiva.
A dúvida é válida: alguém deixa de ser
o que era? De verdade? Não gosto de receitas fixas ou de modelos
universais. Faço a mim, com esperança, a pergunta que
transmito às leitoras e leitores: você mudou? Você
consegue mudar? Você é melhor hoje do que há 20
anos? Boa semana a todos que se incomodam com o passado e ainda conseguem
ter coração humano.
Leandro
Karnal
É historiador, escritor, membro da Academia
Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor
de 'A Coragem da Esperança', entre outros