RESUMO
Este trabalho tem como objetivo
apresentar, a partir da análise dos prontuários de
internamento de uma instituição destinada ao tratamento
de alienados administrada por seguidores do espiritismo, as concepções
particulares sobre saúde, doença e loucura produzidas
por essa doutrina e o modo pelo qual elas eram transpostas para
o interior de uma instituição de caráter asilar,
o Sanatório Espírita de Uberaba, no Brasil da primeira
metade do século XX.
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Em recentes trabalhos acadêmicos
nacionais, pesquisadores têm procurado demonstrar que as atividades
terapêuticas desenvolvidas por grupos espíritas de
orientação kardecista foi uma das principais práticas
concorrentes da medicina acadêmica e de seu projeto para se
tornar o saber hegemônico no campo das artes de curar no Brasil
da primeira metade do século XX (Jabert,
2008; Almeida, 2007; Scoton, 2007).
No que diz respeito à loucura
especificamente, ao mesmo tempo em que se institucionalizava a psiquiatria
brasileira (Engel, 2001), as instituições
espíritas desenvolviam terapêuticas baseadas na crença
de que entidades espirituais teriam a capacidade de intervir no
curso natural de desenvolvimento de uma enfermidade (Giumbelli,
1997). Dentre essas práticas podem ser destacados
os trabalhos de desobsessão espiritual, que procuravam tratar
indivíduos acometidos de acessos de loucura através
da doutrinação espiritual de espíritos obsessores.
Já há algumas décadas
pesquisadores têm recorrido à utilização
de documentos clínicos em investigações sobre
a história da psiquiatria e da loucura no Brasil (Cunha,
1986; Engel, 2001; Facchinetti, Ribeiro, Muñoz, 2008; Facchinetti,
2010; Jabert, 2008; Jabert, 2011; Muñoz, 2010; Santos 2008;
Wadi, 2002). Consideramos os prontuários um instrumento
privilegiado para a análise das atividades das instituições
e de seus agentes terapêuticos. Além da visibilidade
que oferecem acerca das experiências coletivas e individuais
relativas à loucura, a análise deste tipo de documento
auxilia também na identificação de como o fenômeno
da loucura era compreendido pelo grupo social ao qual o louco pertencia,
demonstrando quais interpretações coletivas eram produzidas
acerca da experiência da loucura. Permite também detectar
que atitudes e comportamentos exibidos por um determinado sujeito
eram identificados como sinais e sintomas inequívocos de
sua loucura.
Nos prontuários das instituições
asilares destinadas ao recolhimento de alienados, o discurso sobre
a loucura, seja ele psiquiátrico ou espírita, é
apresentado de uma maneira diversa do que pode ser encontrado nos
textos que tratam do tema sob um ponto de vista estritamente teórico
e que têm por objetivo produzir um sistema interpretativo
que ofereça inteligibilidade para o fenômeno da loucura.
Neste tipo específico de documentação, este
discurso aparece operacionalizado pelo corpo médico-administrativo
da instituição em sua forma prática de análise,
interpretação e controle da loucura, além de
estar atrelado a casos individuais e singulares que exemplificam
a experiência cotidiana da loucura através da aplicação
deste discurso a situações específicas (Jabert,
2011).
Por fim, a escolha pela análise
de prontuários psiquiátricos permite dar visibilidade
à fala mais marginalizada dentre todas as que tratam da experiência
da loucura: a do próprio louco. No entanto, é importante
ressaltar, como aponta Cunha (1986), que nos prontuários
o discurso do louco se encontra abafado e filtrado pelo saber médico-psiquiátrico,
sendo possível resgatar de forma apenas parcial sua voz e
suas experiências.