Evolução Espiritual
do Homem
Na perspectiva da Doutrina Espírita
A Teoria da Evolução
das Espécies, de Darwin, foi rejeitada pela Igreja e pela maioria
das escolas espiritualistas como absurda e humilhante para a Humanidade.
Evidentemente chocante era, para a criatura humana, que pudéssemos
descender das formas hominóides do reino animal. Feriu a suscetibilidade
do homem, milenarmente cultivada no estudo das culturas religiosas,
que nos apresentavam como criação à parte no
Universo, a única dotada de capacidade de abstração
e capacidade de discernimento suficiente, para reconhecer a sua superioridade
ante todos os demais seres. A idéia bíblica e de outras
escrituras sagradas, segundo a qual fomos criados por Deus à
sua imagem e semelhança, conferia-nos uma posição
privilegiada, muito grata do nosso orgulho, e não nos permitia
aceitar a proposição atrevida e insolente de Darwin,
que profanava a nossa natureza divina. Nem mesmo aceitamos a teoria
conciliatória de Roussell Wallace, êmulo de Darwin, que
admitia o elemento espiritual no processo evolucionista.
O próprio mestre francês da Universidade de França,
Professor Denizard Rivail, de tradicional família lionesa,
ao publicar O Livro dos Espíritos,
em que compendiava a Doutrina Espírita, sob o pseudônimo
de Allan Kardec – ocultando os nomes das médiuns que
atuaram nas suas pesquisas –, evitou aprofundar a questão
e definir claramente a sua posição no assunto, preservando
as médiuns, as meninas Boudin, e evitando empecilhos maiores
para a divulgação da Nova Doutrina. Só no quinto
e último volume da Codificação do Espiritismo,
seu livro A Gênese - os milagres e as predições
segundo o Espiritismo, tornou clara e precisa a sua
posição evolucionista quanto ao problema da evolução
das espécies.
Na verdade, ele já havia antecipado a sua posição
em várias passagens dos quatro livros anteriores e livros acessórios.
Mas a declaração chocante de que o ser animal não
se humanizava sem haver passado pela fieira devidamente fatal dos
seres inferiores, constante de uma comunicação de Galileu
pela mediunidade do astrônomo Camille Flammarion, só
então foi incluída na Codificação. Isso
revela, ao mesmo tempo, o cuidado cartesiano de Kardec e as dificuldades
com que ele teve de lutar para sustentar a batalha espírita
na cultura européia do século XIX. Como Descartes, seu
predecessor na visão dos novos tempos, Kardec inscreveu, não
no seu brasão, que não tinha, mas na sua mente, a palavra
Cristo. Apesar disso, o Bispo de Barcelona ateou uma fogueira
em praça pública para incinerar os seus livros, pois
o homem não estava ao seu alcance e na França a Inquisição
já não mais existia.
O religiosismo popular, na França como em toda parte, foi abalado
pela resistência e a insistência de Kardec, absorvendo
os seus princípios básicos. Foi então que ele
se entregou à elaboração secreta de O
Evangelho Segundo o Espiritismo, proporcionando ao povo
os esclarecimentos espíritas. Nesse livro ele amparava e estimulava
a religião do povo, mas sustentando essa religiosidade em termos
racionais. Apoiava-se então no princípio doutrinário
da lei de adoração – lei universal que só
ele descobriu e explicou –, reativando a religião nos
corações abalados. Ainda hoje há espíritas,
não raro ocupando posições de direção
em instituições doutrinárias, que não
compreendem a necessidade e o valor desse livro orientador da intuição
religiosa popular. Não compreendem que o aspecto religioso
do Espiritismo constitui a base inabalável do movimento espírita
no mundo. Outros chegam a criticar Kardec por essa capitulação
e outros, mais ingênuos, chegam ao cúmulo de alegar que
essa tarefa cabia a Roustaing, o infeliz fascinado de Bordeaux, que
lançou a obra de evidente mistificação Os
Quatro Evangelhos, em que os evangelistas se contradizem a si
mesmos e tentam forçar um retrocesso católico do religiosismo
popular. A tese espúria, levantada pela Federação
Espírita Brasileira, de que Roustaing estava incumbido do problema
da fé é simplesmente alucinante. O pobre fascinado não
foi discípulo de Kardec, jamais militou ao seu lado e teve
sua obra rejeitada pelo mestre. A fé de Roustaing não
podia entrosar-se na obra de Kardec, pois era a fé católica
medieval, enquanto a fé espírita, definida por Kardec
como fé racional, não precisava de nenhum assessor místico
e fanático para se implantar na consciência dos novos
tempos.
O Espiritismo rejeita toda mitologia de ontem, de hoje e de amanhã.
Sua função é de transformar os erros em verdades,
como se lê em Kardec, e não em remendar as mitologias
antigas com novos e ridículos mitos, como Roustaing tentou
fazer em sua obra mistificadora, em que a obra kardeciana é
deformada por um trabalho de plágio vergonhoso e de remendos
adulteradores que denunciam a debilidade mental do autor. Por sinal
que este mesmo declara, na introdução de sua obra, que
a obteve mediunicamente (por uma médium, que foi a primeira
a rejeitar a mistificação) após haver saído
de um internamento em hospital de doentes mentais.
Feito esse preâmbulo necessário, convém lembrar
que a religiosidade popular nada tem a ver com as religiões
dos teólogos e, portanto, das igrejas. A religião pura
e natural do povo nasce da lei de adoração e não
das sacristias. É um impulso instintivo do homem, que busca
Deus na natureza. Expusemos esse processo, como base em pesquisas
antropológicas, em nosso livro O Espírito
e o Tempo. O Espiritismo reconhece a legitimidade desse
processo, a naturalidade desse impulso. A lei de adoração
é hoje plenamente reconhecida pelas Filosofias da Existência,
com a designação de impulso de transcendência.
Esse impulso é disciplinado pela razão, na medida do
desenvolvimento cultural da humanidade.
O conceito de Deus se aprimora e refina na mente humana, acompanhando
o desenvolvimento da Civilização. O refinamento intelectual
gera ilações atrevidas que o homem vaidoso e entusiasmado
com o seu progresso transforma em afirmações definitivas,
desencadeando o processo das dogmáticas asfixiantes e intocáveis,
porque sagradas. As revelações sutis de entidades espirituais,
que o homem capta como percepções extra-sensoriais,
acabam cercadas de aparatos materiais imaginários, que reforçam
os dogmatismos exclusivistas. Os fatos da selva, pragmáticos
e funcionais, provindos dos ritos necessários da vida animal,
complicam-se com os adendos da imaginação e a vontade
de potência, o anseio de poder dos homens e das organizações
religiosas naturalmente absorventes. Instaura-se o poder como conquista
humana e desencadeiam-se ações repressivas dos possíveis
cismas e gerados por opiniões contrárias. Acendem-se
as fogueiras inquisitórias e borbulham em sangue os massacres
das dissidências audaciosas e as Noites de São Bartolomeu.
Todo esse processo, contraditório em si mesmo, revela a condição
espiritual do homem no mundo. Desde o instante em que o ser espiritual
se lança na realidade material, a sua estrutura ôntica,
a estrutura espiritual do ser, inverteu todo o seu sistema direcional
e seus vetores psíquicos se voltaram para os alvos terrenos.
Não se trata de uma queda, mas de uma experiência necessária,
em que dominam as forças materiais e prevalecem os instintos
animais; o ser está submetido ao desafio do não-ser.
Esta expressão filosoficamente tão discutida não
se refere a uma possível entidade mitológica (como a
do Anti-Cristo, por exemplo), mas a uma realidade inversa à
que corresponde a natureza do ser.
Ninguém explicou melhor essa inversão do que Frederic
Myers em sua teoria das duas mentes, a subliminar e a supraliminar.
O ser como ser fica soterrado em si mesmo, guardando suas conquistas
da filogênese evolutiva no inconsciente, e o homem se define
na mente consciente, nivelado no plano dos interesses terrenos imediatistas.
A Religião do Homem, para usarmos essa expressão de
Tagore, define-se então como um sistema práxico, ou
seja, integrado na práxis de cada conquista do mundo. Historicamente
essa visão é decepcionante. Tem-se a impressão
de que a evolução humana faliu, voltando ao seu marco
zero.
Os poderes religiosos nada têm de divino, são exclusivamente
humanos. A recente tragédia do Iran, deflagrada friamente pelo
Aiatolá Comeine, num retrocesso brusco e violento à
época das Civilizações Teológicas, com
toda a brutalidade dos processos inquisitoriais, mostra-nos o poder
de reversão dos vetores ou cargas de força da gravidade
terrena. Comeine é o Grão Sacerdote da Era Teocrática,
de Israel, da Mesopotâmia e do Egito ou da antiga Catai, a China
Arcaica, das religiões do homem, ansiosas pela dominação
material do mundo. Apoiado no Corão,
esse Evangelho às avessas, ele ressurge na abertura dos despotismos
desencadeados pelas conflagrações mundiais do século,
numa tentativa perigosa de repetir as audácias islâmicas
do passado.
A atitude agressiva da China invadindo o Vietnã de maneira
brutal, depois de prudente reatamento de relações com
os Estados Unidos, mostra que os telúricos do mandarinato não
estavam extintos, mas apenas ressonando em seus esconderijos subterrâneos.
Por outro lado, a reação russa de apoio ao Vietnã
corresponde às exigências do determinismo histórico
do restabelecimento do Império de Tamerlão. É
evidente que esses fatos atuais se revestem de aparências como
se fossem determinados apenas por circunstâncias do nosso tempo.
Mas são as molas secretas dessa situação, como
no caso dos totalitarismos europeus que romperam o falso equilíbrio
do século com as explosões da barbárie germânica
do passado.
Temos, assim, a demonstração flagrante, no panorama
atual do mundo, da sobrevivência do passado histórico
na conjuntura contemporânea. O princípio espírita
do encadeamento de todos os fatos e todas as coisas no sistema universal
nos permite ver, por trás da roupagem moderna dos conflitos
atuais, a continuidade inevitável da lei de ação
e reação. A lei grega da palingenesia determinava a
repetição contínua dos ciclos históricos
em todas as suas minúcias. Nos períodos de destruição
as civilizações desapareciam, mas nos períodos
de reconstrução tudo se repetia, minuciosamente: renovavam-se
as figuras do passado em suas posições antigas, as cidades
renasciam das cinzas com todos os seus atributos, as situações
arcaicas se restabeleciam, as aldeias ressurgiam em seus antigos lugares
e até mesmo as estradas e os trilhos dos campos eram restabelecidos.
É evidente o exagero absurdo dessa concepção,
mas não menos evidente a intuição das repetições
históricas, necessárias ao encadeamento dos tempos no
processo evolutivo. A repetição não é
nem poderia ser escrita, pois com isso se anularia a sua finalidade
evolutiva.
Levada por Pitágoras, do Egito à Grécia, a lei
da palingenesia adaptou-se a várias concepções
das diversas escolas filosóficas. Hoje o astrônomo J.
Opiki sustenta a teoria do Universo Oscilante, baseada nas observações
dos movimentos das galáxias. De milhões em milhões
de anos o Universo se expande no infinito e depois retorna sobre si
mesmo, num ritmo de sístoles e diástoles. Nesse abrir
e fechar o universo se destrói e se recompõe, marcando
o ritmo assombroso das transformações evolutivas. A
repetição histórica é apenas um detalhe
desse eterno retorno no qual se abre, humílima e fragmentária,
a teoria espírita da reencarnação, hoje submetida
a pesquisas científicas nos grandes centros universitários
do mundo, desde os trabalhos do prof. Wladmir Raikov, na Universidade
de Moscou, aos de Ian Stevenson, na Universidade da Califórnia
e aos de Hamendras Nat Barnejee, na Universidade de Rajastã,
na Índia. O problema pitagórico, egípcio e grego
retorna às cogitações filosóficas e às
pesquisas científicas na nossa civilização.
O processo evolutivo adquire assim dimensões cósmicas,
segundo a proposição espírita: Tudo se encadeia
no universo. Vemos assim que a evolução espiritual
do homem não é um caso específico de transformação
individual, de santificação canônica ou de reforma
íntima de modelagem católica. O homem evolui espiritualmente
na medida em que, amalgamado na experiência cósmica,
é levado por essa experiência incontrolável por
curas e pastores. Por isso Jesus não ensinou nem aprovou as
formalidades do templo de Jerusalém, nem submeteu os seus discípulos
às exigências pretensiosas do rabinato judeu. Sua lição
a respeito se resume na advertência: O que se apega à
sua vida, perdê-la-á, mas o que a perder por amor de
mim, esse a encontrará. Quem vive debruçado sobre
si mesmo, cuidando apenas do seu umbigo, não pode perceber
e muito menos compreender a grandeza espiritual que é a sua
imperecível herança de filho de Deus.
Essa a razão porque o Espiritismo rejeita a alienação
do homem no culto externo, em que os mitos supostamente sagrados servem
apenas aos espíritos em fase primária de evolução.
A lei de adoração não nos obriga a adorar mitos
de qualquer espécie. É uma lei natural que leva o homem
a adorar a Deus em espírito e verdade. O impulso de transcendência
que marca a natureza humana não comporta aparatos de cultos,
nem sacramentos inventados pelas igrejas para o comércio da
simonia. Os vendilhões do templo, condenados pelo Messias,
encontraram mil maneiras de continuar na venda de suas ovelhas inocentes.
Substituíram os animais sacrificiais por palavras, gestos e
cerimônias, evitando complicações fiscais. Transformaram-se
em mascates de palavrórios eletrônicos, vendendo palavras
vazias como faziam em seu tempo os sofistas gregos que Sócrates
desmascarou. Isso mostra que o espiritual caiu num ciclo vicioso,
exibindo o refluir do passado na geena de fogo do Vale do Kidron,
do lixo acumulado na Porta do Monturo. Estamos queimando os resíduos
que impedem o fluxo natural da evolução. Nossa atualidade
trágica brota ameaçadora da fermentação
do lixo histórico às portas de Jerusalém. Não
é Deus quem nos castiga, mas nós mesmos que nos asfixiamos
em nossa incapacidade de compreender, amar e perdoar. Apegados aos
interesses terrenos, não conseguimos ainda abrir os olhos,
doentes de ganância e violência, para a realidade de nossos
próprios impulsos de transcendência.
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