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A posição filosófica de Kardec
• Uma lição de Casirer
• A moral espírita decorre dos ensinos do Cristo.
Kardec foi ou não foi um filósofo?
O Espiritismo é ou não é uma filosofia, um sistema
filosófico? Essas indagações vêm sendo
formuladas ultimamente, em alguns meios espíritas, diante da
alegação de alguns adversários da doutrina, em
sentido contrário. Justo, pois, que alguns leitores nos interpelem
a respeito, tanto mais quando ainda há pouco houve uma referência
ao assunto, neste mesmo jornal. Por outro lado, o problema é
realmente de interesse doutrinário.
A propósito de Kardec, a primeira
coisa a considerar é que ele jamais se disse filósofo
ou pretendeu entrar para a galeria dos filósofos. Sua especialidade
era a pedagogia. Foi discípulo emérito de Pestalozzi
e interessou-se a fundo pelos problemas pedagógicos, deixando,
na França, numerosos livros didáticos. Apesar de sua
vasta cultura, e de ser constantemente solicitado pelos meios culturais
da época, o interesse de Kardec não se voltava para
as glórias humanas. Preferiu colocar o seu saber e a sua inteligência
a serviço da espiritualidade.
Quanto ao Espiritismo, é indiscutível
a existência de uma filosofia espírita, cujo tratado
fundamental é O Livro dos Espíritos.
Nesse ponto, poderíamos ver uma contradição com
o que dissemos acima. Basta lembrarmos, porém, que O Livro
dos Espíritos não é de Kardec, mas dos Espíritos,
para vermos que não há contradição. O
próprio mestre fez sempre questão de esclarecer que
a filosofia espírita não fora elaborada por ele, mas
pelas entidades espirituais que, sob a égide do Espírito
da Verdade, transmitiram- lhe a nova revelação.
Há pouco, alguém declarou,
em entrevista a um jornal do norte do país, que O
Livro dos Espíritos não pode ser considerado
um livro filosófico, porque não está vazado na
linguagem técnica. Seria o caso de perguntarmos se filosofia
é uma técnica de linguagem ou um processo de indagação
da verdade através do pensamento. Parafraseando conhecida passagem
evangélica, podemos dizer que a filosofia é senhora
da linguagem técnica e não o contrário. O que
importa em O Livro dos Espíritos
é a filosofia contida nas suas páginas, e não
qualquer espécie de vocabulário técnico, da mesma
maneira que o que importa no Evangelho é a sua filosofia de
vida, não as suas formas de expressão.
Outra coisa de que devemos nos lembrar
é que O Livro dos Espíritos
não se destinava a criar uma nova escola filosófica,
mas a fazer uma nova revelação. Assim como, sobre a
revelação do Cristo, os homens trabalharam para construir
sistemas filosóficos, assim também, sobre a revelação
do Espírito da Verdade, os filósofos poderão
construir os seus sistemas. Mas, da mesma maneira por que existe uma
filosofia cristã, representada pelos princípios evangélicos,
que transformaram o mundo, também existe uma filosofia espírita,
orientando as novas transformações por que o mundo tem
de passar, para que o Reino de Deus nele se estabeleça.
Ainda hoje se discute se existe ou
não uma filosofia cristã. Não é, pois
de estranhar que se pergunte pela filosofia espírita. Entretanto,
no próprio O Livro dos Espíritos encontramos uma explicação
de Kardec a respeito deste assunto. Diz o mestre: "Ele foi
escrito por ordem de (e ditado pelos) Espíritos Superiores,
para estabelecer os fundamentos de uma filosofia racional, livre dos
prejuízos do espírito de sistema".
Como se vê, não interessava
a Kardec formular um sistema filosófico no estilo clássico,
aliás, já superado inteiramente hoje em dia, quando
se compreende que a verdade não pode ser encerrada na melhor
das sistematizações humanas.
Os que não vêem filosofia
no Espiritismo e não reconhecem a Kardec uma posição
filosófica, em virtude de questões puramente formais
e, portanto, convencionais, deviam lembrar-se de que Jesus também
não formulou um sistema filosófico, ao gosto da época,
e que o verdadeiro pai da filosofia grega, Sócrates, também
não se interessou por isso. Ernst Casirer, em sua Antropologia
Filosófica, acentuando a inconveniência dos sistemas
clássicos, declara: "Cada teoria se converte num leito
de Procusto (*), em que os fatos empíricos
são obrigados a se acomodar a um padrão preconcebido".
Como se vê, a opinião de Kardec, sobre os inconvenientes
do "espírito de sistema", é referendada por
um dos maiores pensadores atuais.
Uma das coisas que se aponta, em
O Livro dos Espíritos, como antifilosófico,
é a forma didática e, particularmente, a forma dialogada.
Devemos lembrar, porém, que o diálogo é uma forma
tradicional de exposição filosófica, em que os
grandes filósofos sempre foram mestres. A pedagogia é
uma parte da filosofia, e a própria filosofia é também
pedagógica, segundo assinala René Hubert, acentuando:
"Toda filosofia aspira a difundir-se, a ser uma propaganda.
Ter a mão cheia de verdades e conservá-la fechada é
de espíritos tacanhos. O que seria, pois, uma verdade que não
quisesse comunicar-se?"
De tudo o que ficou dito, conclui-se
que a posição filosófica de Kardec é inegável,
embora ele nunca se dissesse filósofo; que o Espiritismo possui
uma filosofia, racional e livre do espírito de sistema; e,
por fim, que o problema filosófico do Espiritismo é
o mesmo do Cristianismo. Quando à existência de uma ética
espírita, negada por ilustre opositor da doutrina, repetimos
que a moral espírita é a do Cristo, como se vê
em O Evangelho segundo o Espiritismo, e
que a terceira parte de O Livro dos Espíritos
é inteiramente dedicada ao estudo das leis morais.
(*) Na mitologia grega há
um mito que se chama Leito de Procusto, que relata o seguinte:
"Procusto era um bandido que vivia em
uma floresta e ele tinha uma imensa cama. Todos os que passavam
pela floresta eram presos e colocados por ele em sua cama. Dos que
eram muito grande, Procusto cortava os pés e dos que eram
muito pequeno, Procusto os esticavam. A tamanho da cama era o padrão
utilizado por Procusto."